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VIOLÊNCIA CONJUGAL CONTRA AS MULHERES

1 Individualização e conjugalidade

3.3 Contributos da perspectiva individual

3.3.1 Porque é que elas ficam na relação?

As análises do fenómeno social pela Sociologia da família tornaram-se mais complexas perante a necessidade de se perceber porque permanecem as mulheres numa relação violenta? Esta é a ‘eterna pergunta’ (Garrido, 2002:246) cuja resposta se revela mais complexa do que sugeriam as abordagens psicopatológicas.

A permanência de uma mulher vítima de violência conjugal no relacionamento pode ser explicada a partir da interacção de um conjunto de factores de ordem social e psicológica. A literatura tem identificado a dependência económica da vítima em relação ao agressor e/ou a garantia de estabilidade financeira da família, a dependência emocional, sobretudo ligada ao medo de ficar sozinha, a responsabilidade e a culpa por privar os filhos do contacto com o pai e com a família de orientação do pai, a esperança de que o agressor mude (o comportamento, a personalidade, a atitude em relação à violência) podendo a permanência da mulher ser justificada com o seu empenho pessoal na mudança do agressor ou do relacionamento, investindo no projecto conjugal a partir da crença na sua capacidade para ‘recuperar’ o matrimónio. Culturalmente, a responsabilidade pela construção e manutenção de um lar harmonioso recai sobre as mulheres (Amâncio, 1998; Barbosa, 2008). A família, rede de suporte primário da mulher (Vicente, 2005), pode reforçar esta atribuição de género imputando à mulher a responsabilidade pelo sucesso do relacionamento conjugal. No limite, esta atribuição

pode contribuir para que a mulher se afaste destes potenciais prestadores de ajuda e se sinta isolada.

Apesar das críticas em relação ao pendor individual das explicações trazidas pela tese da vulnerabilidade da mulher envolvida num ciclo de violência, o contributo de Lenore Walker foi fundamental. Este modelo permitiu progressos na compreensão das reacções do agressor, da vítima e na análise da interacção entre os dois.

Aprofundando o contributo de Walker, em 1991, a psicóloga Dana Crowley apresentou a teoria do auto-silenciamento. A teoria define que uma vez que o envolvimento numa relação íntima contribui para a formação do self, quando essa relação é posta em causa, a auto-estima e a identidade pessoal são sentidos sob ameaça. A reacção psicológica elementar consiste em proteger a identidade pessoal tentando manter a relação de intimidade. As estratégias cognitivas usadas nessa protecção é que podem envolver esquemas distorcidos, entre os quais o auto-silenciamento. Este conceito refere um silenciamento do self que aumenta conforme as mulheres se acomodam aos esquemas culturais associados aos papéis de género. Assim, há um reforço cultural do auto- silenciamento na medida em que os papéis tradicionalmente femininos implicam que as mulheres reprimam ou desvalorizem as suas próprias emoções e se ajustem ao padrão feminino. Ao adoptarem os comportamentos esperados, a sujeição das mulheres nas relações de intimidade fica consolidada, aumentando a desigualdade nas relações mantendo-se a subalternidade feminina.

Neves (2008), num estudo sobre o auto-silenciamento com mulheres vítimas de maus- tratos que se encontravam numa casa-abrigo, encontrou uma relação entre vivências crónicas de violência e os significados atribuídos pelas mulheres ao amor, à identidade pessoal e ao poder. Os discursos das mulheres indicaram que algumas se sentiam compelidas a submeter-se ao poder exercido de forma violenta sobre elas. As mulheres tentavam criar obstáculos à violência, por exemplo modificando o seu comportamento, mas mantendo praticamente inalteradas as funções sociais correspondentes ao papel de esposa, mãe, nora, entre outros. O estudo revelou ainda que as mulheres que mais se

auto-silenciaram eram tendencialmente mulheres mais velhas com parceiros também mais velhos. As mulheres demonstravam tendência para colocar as necessidades dos outros acima das suas e para fazerem a sua auto-avaliação recorrendo à imagem que os outros constróem sobre elas.

Esta análise tem sido feita pela Sociologia da família a partir do ponto de vista da mulher, sem estudar o ponto de vista dos prestadores de ajuda (informal e formal) e a sua influência sobre a permanência da mulher num relacionamento violento ou como elementos actuantes sobre a necessidade de ela sair dele.

O contributo das feministas para este tema estabeleceu que algumas mulheres vivem num mundo de resignação e não conseguem vislumbrar outra opção para a sua vida. A vontade de ocultarem a situação tem na base o estigma a ela associado12. Para além da violência, as mulheres têm que lidar com a vergonha de serem submetidas à pergunta sobre os motivos da sua permanência junto do agressor (Dobash e Dobash, 1992) e de assumir aos outros que são maltratadas (Casimiro, 1998).

Cantera (2002:73) fala em ‘crenças desmobilizadoras’ associadas à definição dos papéis de género. A decisão da mulher de denunciar a violência acarreta descrédito para a família e efeitos negativos sobre as crianças, fazendo-a sentir-se culpada. A imagem de vítima presente na sociedade portuguesa é a de uma mulher que permanece num relacionamento violento devido à falta de coragem, dependência do agressor e falta de recursos (Monteiro, 2000) - inclusive recursos morais, por não ser capaz de aceitar o destino, e falta de força, física ou anímica, para acabar com a situação (Barbosa, 2008).

A capacidade heurística de abordagens racionalistas (como a teoria do custo / benefício) revela-se insuficiente (Yllo e Bograd, 1990). Para explicar a permanência da mulher num relacionamento violento é preciso convocar várias perspectivas teóricas. O fenómeno manifesta-se correlacionado com características de personalidade da mulher e do agressor, com o tipo de relação entre eles e com o tipo de abuso sofrido (Hasselt et

al., 1988). A complexidade envolvida provoca nos cientistas sociais a sensação de desconhecimento por causa da diversidade de factores associados à permanência das mulheres num relacionamento que elas reconhecem como abusivo. Algumas ficam por causa de convicções religiosas, outras para manterem o seu nível de vida, outras pelos filhos, outras por pensarem que é a última vez que sofrem a agressão, outras porque já foram tão maltratadas que a sua capacidade para fazer frente à violência se encontra bastante debilitada. Daqui se depreende que os valores e crenças subjacentes às razões cientificamente encontradas podem ser muito variados.

Na realidade, as razões são complexas e não podem ser analisadas fora do seu contexto cultural. O debate científico tem sido elaborado a partir do conceito de auto- determinação. Ao centrar o debate numa capacidade individual pode contribuir-se para o reforço de um ‘dever-ser’, ao ficar sugerido que a mulher deve abandonar uma relação violenta em que se encontre. Partindo deste pressuposto, assente num juízo de valor, questionam-se as razões pelas quais ela não sai ou pelas quais ela fica no relacionamento (fazendo da questão da permanência das mulheres maltratadas no relacionamento violento uma tentação quase irresistível para os autores, Dias, 2004). Outro efeito perverso é o reforço do argumento de que ‘às mulheres lhes falta sempre alguma coisa’ (Barbosa, 2008). A interpretação de falta de recursos para mudar, condiciona a intervenção que escolhe orientar-se para objectivos que permitam suprir o que falta às mulheres.

Enfim, salientamos que a pergunta formulada poderá contribuir para a persistência de falta de resposta. Mesmo as perspectivas feministas têm questionado mais a permanência da mulher num relacionamento violento do que a interferência, sobre o agressor ou sobre a família, nas situações em que a sociedade tem conhecimento de violência conjugal. A perspectiva macrossociológica e a importância das variáveis socioestruturais levam à identificação da falta de factores de protecção da mulher. Mantendo-se o pressuposto de que ela quer sair da relação, identificam-se os obstáculos que a impedem de o fazer.