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Contributos dos estudos de prevalência do fenómeno

VIOLÊNCIA CONJUGAL CONTRA AS MULHERES

1 Individualização e conjugalidade

3.2 Contributos dos estudos de prevalência do fenómeno

Gelles e Straus dedicaram-se à pesquisa sociológica da violência contra as mulheres pouco depois de o movimento de mulheres maltratadas ter trazido o assunto para o domínio público (Heyman e Slep, 2001). Foi em 1980 (com a publicação da obra

7 A United Nations Population Fund (UNFPA, 2008) distingue entre: poder manifesto coercivo, em que

os mais poderosos usam a sua posição para obrigar os outros a agirem de formas que estes preferiam não agir; poder oculto coercivo, em que os mais poderosos agem nos bastidores e de forma eficaz, normalmente através de normas que obrigam os outros a agir em conformidade; poder manifesto não- coercivo, em que as pessoas fazem uso do poder de forma não conflitante nem coerciva constituindo acordos que lhes permitem alcançarem os resultados pretendidos e poder oculto não coercivo, que se verifica nas situações em que existe um consenso tácito e as relações de poder são mantidas de forma não

Behind Closed Doors: Violence in the American Family) que Gelles, Straus e Steinmetz apresentaram dados de prevalência do fenómeno na sociedade americana8. A partir do conhecimento da prevalência do fenómeno, os autores sugeriram que o conceito violência na família seria mais apropriado do que o conceito de violência contra as mulheres proposto pelo movimento feminista. Os resultados do estudo tinham revelado que todos os membros da família eram potenciais agentes e vítimas de violência9.

A pesquisa revelou que uma em quatro mulheres e um terço dos maridos entrevistados concordou com a afirmação de que ‘num casal dar um estalo um ao outro é, de algum modo, necessário, normal e bom’10. Daqui, os autores definiram as normas sociais como principal factor explicativo da violência no seio da família. As causas principais para a violência nas famílias americanas deduzidas pelos autores eram de três tipos:

deliberada, isto é, podendo não haver consciência disso. Estão nesta dimensão todos os grupos sociais ou categorias de pessoas que aceitam arranjos hierárquicos desvantajosos e que os mantêm e defendem.

8 Esta pesquisa pioneira foi baseada na aplicação da Conflict Tactics Scale (CTS) concebida por Straus.

Actualmente esta escala é usada na sua versão original de 1979 ou na versão revista (a CTS2, de Strauss, Hamby, Boney-McCoy e Sugarman, de 1995). Para consulta das alterações na CTS, veja-se: Straus, M.; Hamby, S.; Boney-McCoy, S. e Sugarman, D. (1996) The Revised Conflict Tactics Scales (CTS2): Development and preliminary psychometric data, Journal of Family Issues, 17:283-316. Para mais detalhes acerca da CTS, veja-se Barnett, 1997:34 e seguintes. Esta escala tem sido usada em inquéritos nos EUA (por exemplo, o National Family Violence Survey de 1975, que consistiu num inquérito face to face realizado a uma amostra com a dimensão de 2 143 sujeitos; o National Family Violence Re-Survey de 1985, administrado pelo telefone a uma amostra com uma dimensão de 6002 sujeitos). O instrumento compreende várias escalas e é aplicado a um dos membros do casal que refere o número de vezes em que desempenhou determinada acção violenta no período antecedente de doze meses. Além dos conflitos, o inquérito recolhe dados sobre o que foi feito pelo sujeito para resolver os conflitos, aferindo o recurso a tácticas não violentas (como a discussão calma, por exemplo) e o recurso a tácticas violentas (como uso de uma arma de fogo ou de uma faca, por exemplo).

9 O estudo concluiu que 12,8% dos maridos cometiam actos de violência contra as suas esposas e que

11,7% das mulheres cometiam actos de violência contra os seus maridos. Entre os casais que declaravam algum tipo de comportamento violento, em 49% dos casos ambos eram violentos. Foi na sequência deste estudo de prevalência que Steinmetz definiu a ‘síndroma dos maridos maltratados’. O autor foi criticado conceptual e metodologicamente pelos cientistas sociais de orientação feminista que chamaram a atenção para que as situações de violência da mulher sobre o seu marido ocorriam nos casos de legítima defesa e para a menor gravidade dos danos resultantes da violência, quando se compara a violência usada pelas mulheres e usada pelos homens.

10 Em 1982 num estudo de opinião realizado junto da população portuguesa (Vicente, 1985:349-362 in

Costa, 2005; Violência, 1982) 80% dos sujeitos referiu nunca ser admissível os maridos baterem ns esposas; 16% consideram ser admissível em certas circunstâncias e 2% dizem nunca ser admissível. Os sujeitos que o admitem em determinadas circunstâncias são sujeitos com idades acima dos 55 anos (27%), residentes em localidades com menos de 2000 habitantes (22%) em regiões do litoral (22%) e no interior Norte (20%). Os estratos socioeconómicos baixo e médio-baixo estão mais representados do que os restantes.

- A estrutura da família, que a predispõe a situações de tensão originadas pelo desemprego, pelas difíceis condições de trabalho, pela insegurança financeira, por problemas de saúde, entre outros. Estas situações de tensão, externas à família, afectam o relacionamento entre os membros da família favorecendo o recurso à violência. Depois, o uso da violência seria potenciado pelo amplo espaço de privacidade que a família americana tinha vindo a conquistar, favorecendo uma ausência de vigilância e de controlo externos.

- A aceitação por parte da família das normas culturais dominantes, de acordo com as quais se tolera genericamente a violência como meio de resolução de problemas ou conflitos. Esta aceitação cultural teria manifestações diversas e dispersas por elementos com grande divulgação, desde a programação da televisão, ao folclore, passando pelos contos infantis.

- A socialização das crianças, desenvolvida num contexto familiar em que existiam práticas de violência, revela a aceitação generalizada de práticas punitivas. O castigo físico das crianças transmite-lhes uma mensagem de que a violência é algo legítimo e aceitável. Para além do argumento teórico desenvolvido a partir daqui sobre a ideia lógica de que a violência gera violência, como referimos supra, a socialização das novas gerações consolidava-se sobre a ideia de que o uso da violência é legítimo quando feito por quem detém mais poder, usando-o sobre outro(s) que possui(em) poder inferior. A violência é explicada às crianças como meio ou mecanismo de legitimação da posição dominante que uma pessoa ocupa numa interacção e é incentivado o seu uso nas situações em que as crianças estão em interacção com outros tendo elas mais poder.

Tal como as pesquisas feministas demonstravam, a análise dos dados por sexo também revelou diferenças entre homens e mulheres em relação ao significado dos comportamentos violentos e à experiência pessoal de violência. Apesar de os resultados incluírem casos de violência das mulheres sobre os maridos, os autores consideram que as mulheres como vítimas de violência conjugal devem constituir a principal

preocupação da política social (Straus, Gelles e Steinmetz, 1980). Vão mais longe que o contributo feminista dizendo que uma mudança do padrão sexista da sociedade e da família, tal como era defendido pelas feministas, não passaria de uma medida de médio alcance. O que estava em causa do seu ponto de vista era algo mais profundo, envolvendo a alteração de normas culturais legitimadoras da violência.

Um dos principais contributos desta abordagem sociológica com uma vertente epidemiológica (de quantificação e distribuição estatística do fenómeno) foi a ‘desmitologização dos espaços familiar e intimo como espaços idílicos, aparentemente despovoados de histórias de coacção e de violência’ (Neves, 2008:162). O foco analítico foi centrado na família, na sua organização e nos modos como realiza as funções básicas para a vida em sociedade (com destaque para a socialização das crianças).

Estes estudos enunciaram uma mudança de paradigma na interpretação de violência conjugal ao acentuarem a ideia de que os valores morais, que na transição dos anos 1980 para os anos 1990 eram sentidos como estando ameaçados na sociedade afectando a qualidade das relações sociais, passaram a ser procurados pelos indivíduos ao nível das relações de intimidade.