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VIOLÊNCIA CONJUGAL CONTRA AS MULHERES

1 Individualização e conjugalidade

3.1 Contributos da perspectiva feminista

O livro de Dobash e Dobash (Violence Against Wives) publicado em 1979 é considerado o marco a partir do qual a pesquisa sociológica da violência contra as mulheres adopta uma perspectiva feminista (Bacchi, 1999; Kurz, 1993; Yllo e Bograd, 1990). Nesta

obra, os autores referem que os estudos sociológicos existentes se limitavam a descrever a ocorrência de violência compilando comportamentos de forma descontextualizada. Como alternativa sugerem que para caracterizar a violência nas famílias é importante conhecer a interacção da situação violenta, designadamente quem e como a inicia, quem e como reage, quem e com que gravidade sai violentado e quem é mais vulnerável aos efeitos da violência.

O seu estudo, baseado em entrevistas realizadas a 109 mulheres que estavam em refúgios para mulheres maltratadas, demonstrou que ao longo do casamento os agressores (exclusivamente homens) aumentavam as práticas de controlo e o exercício de poder sobre as suas mulheres recorrendo a tácticas como o isolamento e a ameaça ou intimidação. O recurso à violência é interpretado como estratégia ou mecanismo de controlo do outro (a mulher que é agredida) levando-o, de forma coerciva, a agir de acordo com a vontade do detentor de poder. A finalidade de quem detém o poder é demonstrar que o tem e aumentá-lo, reforçando a sua posição de domínio e reflectindo a estrutura patriarcal da sociedade.

A tese que explica os maus-tratos às mulheres é a da motivação dos homens para o exercício do poder e do controlo, sendo a violência um mecanismo para alcançar esse propósito. Esse mecanismo é justificado pelos agressores como legitimado pelas normas culturais e pela necessidade de modificar (corrigir ou disciplinar) o comportamento das mulheres (Kurz, 1989).

O contributo da perspectiva feminista foi central na negação da tese segundo a qual a violência conjugal seria uma situação de algumas famílias, atribuída quer à transmissão inter-geracional de normas desviantes, quer a comportamentos patológicos que ocorreriam em famílias disfuncionais. A perspectiva feminista afirma que a aceitação cultural e a tolerância social em relação à violência sobre as mulheres levam a uma permanência do sistema patriarcal. A análise das estruturas sociais e dos papéis sociais evidencia a subalternidade das mulheres.

As dimensões comuns às perspectivas teóricas feministas com interesse directo para o estudo do maltrato de mulheres são (Bograd, 1990):

- A análise da família enquanto instituição social historicamente situada, sendo um produto da evolução cultural da sociedade.

- A importância de compreender e validar a experiência das mulheres, com reflexos metodológicos na valorização da perspectiva interpretativa nos estudos sociológicos. - A expectativa de desenvolver os estudos sobre as mulheres como área científica

autónoma.

- A utilidade explicativa dos conceitos de poder e de género.

Entre as perspectivas teóricas feministas, as que têm dedicado mais atenção ao estudo da violência conjugal são a perspectiva radical e a liberal (Johnson, 2005). A perspectiva radical (sobretudo as abordagens marxista e socialista) adopta métodos históricos para provar que as relações sociais contemporâneas têm origem nos arranjos ancestrais da vida em sociedade. Assumindo uma visão critica tem como objectivo evidenciar os obstáculos criados à mulher na sociedade patriarcal. A perspectiva liberal parte mais da análise das oportunidades para as mulheres na sociedade do que dos limites à sua auto-realização e promoção individual. A perspectiva liberal enfatiza as ideias de que a garantia legal de igualdade no acesso a bens e serviços e a participação das mulheres nas estruturas e nas instituições da sociedade representam a principal via para que estas (ob)tenham um estatuto social em igualdade ao dos homens.

Sem escamotear a importância desta via para a construção de igualdade, a análise histórica tem revelado os limites de colocar a tónica na igualdade de acesso a um sistema ‘sem questionar que tipo de sistema é esse e de que forma produz o privilégio e a opressão masculina’ (Johnson, 2005:118). As sociedades contemporâneas definem-se como estando organizadas num sistema igualitário entre homens e mulheres, presumindo-se que se superou o sistema patriarcal. Esta ideia é fundamentada em evidências de base estatística, como por exemplo o aumento do número de mulheres na estrutura profissional assalariada, porém, a divisão de poder e de autoridade no sistema social e as dinâmicas relacionais no seio da família revelam assimetrias entre homens e

mulheres (tanto na esfera profissional como na familiar). Esta passagem de um gender gap tradicional para um gender gap moderno (Vala e Torres, 2007) faz com que se defina um paradoxo entre uma imagem de cidadãos que vivem em igualdade de oportunidades, com respeito pela diferença (Torres e Brites, 2007) mas que convivem com práticas no quotidiano que nem sempre evidenciam a persistência de desigualdades. Um dos efeitos deste paradoxo é precisamente a invisibilidade da desigualdade de género. Uma vez que na actualidade as mulheres gozam de um estatuto social melhor, comparativamente à geração anterior, nem sequer sentem que tenham que ‘questionar os termos patriarcais em que vivem’ (Johnson, 2005:124).

Mantendo a tese de que as normas sociais reproduzem o sistema patriarcal, as abordagens feministas mais recentes partem do pressuposto de que o sistema patriarcal se manifesta de uma forma selectiva e que não é contínua. Assim, as ‘visões feministas mais contemporâneas’ (Neves, 2008:160) não se limitam a demonstrar a influência do género na manutenção de desigualdades entre os sexos mas criticam também a perspectiva homogeneizadora em que todas as mulheres são incluídas numa única categoria social (a feminina). Esta ideia tem sido amplamente explorada nos trabalhos de feministas como Buttler (sobretudo a partir dos anos 1990) e Mills (1985 in Kurz, 1989), que afirmou que o universo das mulheres é diversificado e que as diferenças entre elas se manifestam ao nível da percepção e da atribuição de valor e de significado aos vários factos sociais, incluindo a violência que os maridos exercem sobre elas. Esta tese tem vindo a ser empiricamente sustentada por estudos provando que as mulheres desvalorizam os aspectos que consideram como problemáticos do seu relacionamento, valorizando aqueles que consideram positivos. Mesmo que objectivamente reconheçam que são dominadas em determinadas áreas de vida em sociedade e que isso constitui um problema, atribuem-lhe um significado relativo, que lhes permite tolerar essas situações.

A interpretação diferencial em relação ao relacionamento conjugal também se verifica em relação à opressão de género nas estruturas sociais. Porém, na esfera íntima das relações sociais, que ‘tem a ver com a percepção que temos de nós mesmos, com a autoconfiança e com a relação que temos com o corpo e a saúde’ (Neves, 2008:41), a

experiência de ter poder e de usar poder de uma forma abusiva torna-se mais subjectiva. Isto faz com que, na análise sociológica, o número de variáveis com as quais temos que lidar aumente, ao mesmo tempo que tem que se considerar que a situação de cada elemento num casal pode ser entendida como subordinação ou resistência, de uma forma ambivalente (Johnson, 1995).

Na esfera privada do poder, em que se incluem os relacionamentos familiares, tem sido mais difícil à perspectiva feminista demonstrar como é que determinadas interacções conjugais têm na sua base o exercício de ‘poder oculto e coercivo’ (UNFPA, 2008:34). Na esfera pública do poder é mais fácil demonstrar os efeitos da falta de poder das mulheres. É como se nas relações de proximidade e intimidade o poder e a sua acção fossem invisíveis, dificultando a compreensão da sua origem e a interpretação das consequências que decorrem do seu abuso. Isto explica-se porque a lógica e as manifestações de domínio subjacentes ao uso abusivo de poder estão internalizadas (Bourdieu, 1999) fazendo com que sejam subjectivamente entendidas. O poder oculto ou invisível é considerado a mais insidiosa das dimensões do poder7 sendo difícil de conhecer sobretudo quando as mulheres interiorizam percepções negativas sobre si e positivas ou de valorização do outro. Nestas situações, as mulheres podem estar a validar relações de poder prejudiciais de uma forma que não é intencional mas que produz efeitos perniciosos (UNFPA, 2008).