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A perspectiva de género na conceptualização da violência conjugal

VIOLÊNCIA CONJUGAL CONTRA AS MULHERES

1 Individualização e conjugalidade

4.2 A perspectiva de género na conceptualização da violência conjugal

A perspectiva de género recuperou os postulados das teorias feministas e adequou-os à modernidade. Esta perspectiva enfatiza as desigualdades de género mais persistentes nas sociedades, interpretando-as como desigualdades que se mantêm na actualidade por estarem profundamente enraizadas nas culturas e nos modos de vida das sociedades. Funcionando como arquétipos sociais, reforçam e renovam uma construção social que mantém práticas de diferenciação de género ao nível individual, nas famílias, no trabalho, na produção cultural e de conhecimento. Este feminismo de construção social (Barnes, 1992) ou feminismo pós-moderno (Johnson, 2005) propõe uma desconstrução das categorias de género cuja finalidade é a criação de uma ordem social em que não haja distinção em função do género, mantendo a distinção entre as pessoas (o que lhes confere identidade, Buttler, 1990). Assim, o movimento feminista no século XXI, a partir de uma multiplicidade de combinações identitárias, está menos focalizado na identidade feminina e mais noutras pertenças (como a cultural por exemplo, Badinter, 2005).

O conceito de género é de origem anglo-saxónica e o seu aparecimento situa-se nos anos 1960 (Leandro, 2001) com a finalidade dar conta das características socialmente

construídas a partir das diferenças biológicas entre os sexos (Amâncio, 1994; Covas, 2006; Torres, 2002). O conceito permite ancorar a criação de identidades sociais em construções culturais nas três dimensões que o integram: a identidade de género (que permite ao sujeito identificar-se com uma categoria social), o estatuto social (definindo a posição social relativa dessa categoria de sujeitos na sociedade) e a dimensão cultural (na qual se inscrevem os valores, os mitos e os símbolos associados ao género que permitem distingui-lo em termos gerais) (Amaro, 2006).

A construção social do estereótipo feminino é produzida em torno do binómio expressividade/ submissão e a construção social do estereótipo masculino é produzida em torno do binómio dominância/ instrumentalidade. O estereótipo, ao actuar como fundamento de mecanismos de selecção e de atribuição de comportamentos, configura o sexo feminino como afectivo e dependente do sexo masculino e o sexo masculino como autónomo e orientado para o domínio das situações (Amâncio, 1994; Barbosa, 2008; Nunes, 2007). Estas diferenças são interpretadas como inevitáveis da Natureza, decorrentes do sexo dos indivíduos. Os estudos de Margaret Mead (nas Ilhas Samoa e na Nova Guiné) demonstraram a importância do relativismo cultural implicando que os conceitos sejam culturalmente enraizados e contextualizados para se compreender os processos através dos quais as categorias sociais se tornam prescritivas de comportamentos. O seu estudo abalou as bases da identificação entre o sexo (atribuição natural) e o género (construção social) demonstrando que os homens são definidos como afeminados e as mulheres como masculinas, a partir de uma interpretação dos desvios do seu comportamento feita em relação a estereótipos. Daqui que seja forçoso reconhecer que o processo normativo de definição de papéis sociais de género é mais influenciado pelos significados atribuídos a cada categoria social do que pelas características (factos objectivos) dos sujeitos que são classificados em cada uma delas (Nunes, 2007).

Amâncio (1994) explica a construção social da diferença de género por um processo em que a produção de sentido colectivo (traduzida nos discursos) se transforma numa

ideologia amplamente consensual, com efeitos ao nível das relações sociais e dos modelos de comportamento no quotidiano.

A lógica de complementaridade das características de homens e de mulheres ficou sublinhada pela perspectiva estrutural-funcionalista nos anos 1950 quando acentuou a organização da família moderna em torno do modelo dicotómico de homem-provedor/ mulher-cuidadora (Claes, 1999), influenciando a separação da vida em sociedade em duas esferas (pública e privada). Superar esta perspectiva é o grande desafio de mudança para uma cultura partilhada por homens e mulheres (Touraine, 2008).

Sabemos que nas representações sociais polémicas (Jodelet, 1989)17

17 As representações sociais, enquanto saber do senso-comum, agem como uma forma de pensar prática e

orientada para a interacção no meio social (Jodelet, 1989). As representações sociais podem apresentar-se como hegemónicas (ou colectivas para Moscovici, 1988), ao serem partilhadas pelos membros de um grupo. Ainda que não tenham sido produzidas por eles, prevalecem implicitamente nas práticas afectivas ou simbólicas. São representações uniformes e coercivas. As representações sociais emancipadas surgem como novas a partir da circulação de conhecimentos e de ideias. Estas resultam da troca de significados acerca de um objecto (Moscovici, 1988) podendo, deste modo, constitui-se como formas de

conhecimento autónomas. As representações sociais polémicas têm origem na controvérsia social em relação às representações hegemónicas. Segundo Moscovici (1988) estas são geradas no decurso de conflitos sociais a partir das posições antagónicas dando origem a pontos de vista distintos acerca de um objecto.

o processo de mudança é lento, resistindo ao consenso social. Perante o consenso enraizado sobre as atribuições de género, mesmo quando as imposições externas à igualdade são abolidas (seja formalmente, através de mecanismos legais, e/ou informalmente através das alterações nas normas sociais dominantes) e as liberdades estão adquiridas de um ponto de vista formal (estabelecendo-se para homens e mulheres o direito ao voto, à educação, ao acesso a todas as profissões e a posições de poder económico e político), a auto- exclusão das mulheres torna-se uma ‘exclusão expressa’ (Bourdieu, 1999:35). Na prática, as mulheres excluem-se a si mesmas do ágora ou dos lugares públicos porque esses são simbolicamente representados como lugares masculinos. Para as mulheres ultrapassar esta representação social hegemónica torna-se ‘uma prova terrível’ que implica ultrapassar ‘uma espécie de agorafobia social’ (idem:35). Para além disto, o facto de ‘os relacionamentos entre mulheres e homens serem vividos de uma forma não reflexiva nem problematizada’ (Vicente, 1998:65), leva-nos a assumir que as relações

de poder entre homens e mulheres ligados por laços afectivos ‘não são das que se podem suspender por meio de um simples esforço da vontade, assente numa tomada de consciência libertadora’ (Bourdieu, 1999:33).

A igualdade de género, como estratégia para combater a violência conjugal, corresponde a um ‘objecto de manipulação’ (Bourdieu, 2001:43). Isto significa que é ao mesmo tempo um ideal, que não é fácil de atingir na prática, uma norma ética, que as pessoas concebem em abstracto poder ser quebrada em determinadas circunstâncias, e uma atitude ou orientação meramente recomendada pelo normativo social.

As teorias da desigualdade de género assentam em quatro pressupostos. O primeiro é o de que os homens e as mulheres ocupam posições sociais não só diferentes mas desiguais, traduzindo-se em menos recursos materiais, menos poder e menos oportunidades, definindo assim um estatuto social inferior para as mulheres comparativamente aos homens que se encontrem numa posição social idêntica. O segundo é o de que a causa para aquela desigualdade é a organização da sociedade, rejeitando explicações de cariz individual. O terceiro é o de que homens e mulheres têm as mesmas necessidades de auto-realização mas adaptam os níveis de liberdade que precisam para se auto-realizarem aos constrangimentos com que são confrontados. O quarto pressuposto define que esta capacidade de adaptação, que constitui uma desvantagem, também representa uma possibilidade de mudança da situação.

Em suma, assumir que as diferenças de género são socialmente produzidas e não se devem a características do sexo feminino nem do sexo masculino, permite assumir que a situação é passível de mudança. A correcção das desigualdades compete à sociedade, implicando desconstruir a concepção dominante em que assenta a sociedade patriarcal.