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As propostas do feminismo para lidar com a violência conjugal

VIOLÊNCIA CONJUGAL CONTRA AS MULHERES

1 Individualização e conjugalidade

4.3 As propostas do feminismo para lidar com a violência conjugal

A violência conjugal é um fenómeno que se definiu como problema social pela mão de feministas que o perspectivam como passível de mudança, pressupondo que é

socialmente construído a partir de concepções de género que distinguem homens e mulheres levando a que em sociedades patriarcais as desigualdades se reflictam nos diferenciais de poder e no uso abusivo de poder. Quando o poder é usado de forma autoritária, torna-se numa relação de domínio dos homens (detentores de legitimidade tradicional que lhes atribui poder patriarcal, Weber, 1971) sobre as mulheres, gerando uma obediência que se mantém em grande medida incontestada em ordem à preservação de valores que são considerados evidentes na sociedade patriarcal (Johnson, 2005; Yllo e Bograd, 1990).

Para alterar esta concepção da sociedade, a teoria feminista começou por dar visibilidade pública aos abusos masculinos desocultando as práticas de maus-tratos que aconteciam no seio familiar. Ao mesmo tempo, começou a consolidar uma perspectiva que, em termos gerais, implica uma mudança de paradigma. A sociologia crítica foi importante por ter suportado a ideia de uma pseudo-neutralidade na interpretação da realidade social, facilitando a afirmação de que a ideologia patriarcal influencia aquela interpretação do ponto de vista dos homens. Em segundo lugar, a sociologia crítica facilitou a apresentação pela teoria feminista de uma perspectiva crítica da experiência humana centrada nas mulheres (Bacchi, 1999; Dobash e Dobash, 1992).

O principal objecto de estudo da teoria feminista é a experiência das mulheres na sociedade, permitindo compreender a experiência humana do ponto de vista das mulheres. Sendo uma teoria crítica e activista, tem como fim construir um mundo melhor para a humanidade a partir da desconstrução da ideologia patriarcal em que assenta a maior parte das relações sociais e que suporta o domínio masculino. Metodologicamente, a compreensão crítica da sociedade presta-se a esta dupla vertente crítica e orientada para a acção geradora de mudança (activista). Nos anos 1990 o movimento feminista converteu-se num fenómeno internacional (Ritzer, 2002) e teoricamente mais consolidado que nos anos 1970, beneficiando de uma produção académica que entretanto aumentou e se diversificou aplicando a teoria feminista a diversas áreas da vida em sociedade.

O tema da violência conjugal constituiu desde sempre preocupação das feministas e progressivamente tornou-se um dos temas sociológicos apropriado pela perspectiva feminista. O seu contributo para esta matéria é incontornável gerando uma alteração na interpretação do processo de violência na relação conjugal.

Entre as propostas teóricas feministas, o feminismo liberal sustenta a concepção de que a mulher pode reclamar a igualdade tendo como base uma capacidade humana (comum a homens e mulheres): a autodeterminação. De acordo com esta perspectiva, a mulher é conceptualizada como um sujeito de direito autónomo e não definida a partir da família (como filha de...), nem da sua conjugalidade (como esposa de...) e/ou maternidade (como mãe de...) (Radford, 2002).

De acordo com o feminismo liberal, a mudança social pode ser produzida através do reconhecimento legal e da garantia de acesso das mulheres aos direitos universais. Sendo o Estado o único capaz de o fazer, as activistas reivindicam que seja o Estado a produzir igualdade de género redefinindo as estratégias políticas e fazendo mudanças legislativas no sentido de garantir a igualdade no acesso a direitos sociais e de eliminar a discriminação (na educação, no emprego e na família). O exercício de pressão social sobre o Estado envolve a criação de agências encarregues de controlar a actuação pública, quer na produção legislativa, quer na sua aplicação.

A situação ideal de género para as feministas liberais é que todos os indivíduos possam eleger o modo de vida que mais lhes convém e que essa escolha seja respeitada (Ritzer, 2002). Este é o discurso dominante nos organismos internacionais, com destaque para as Nações Unidas, produzido a partir da ideia de que a igualdade é um direito humano fundamental.

Tendo a violência uma origem social, baseada nas relações de género e na desigualdade de género nas sociedades patriarcais, as mulheres vítimas de violência conjugal são vítimas de um problema social que representa uma violação dos direitos humanos mais elementares, como a liberdade e a autodeterminação.

A proposta conceptual de Cantera (2002) colhe as principais mudanças promovidas na conceptualização de violência conjugal enquanto fenómeno sociológico perspectivando a violência conjugal como um processo influenciado pelo meio, que não é gerado na relação conjugal (o que o definiria como privado). Este modelo de interpretação, que a autora designa como ‘de ciclo aberto’ precisamente para assinalar a necessidade de interpretar a violência conjugal como um problema social (estrutural) e não relacional (individual), absorve a dimensão crítica da teoria feminista e estabelece a orientação para a acção, em consonância com a interpretação do fenómeno como relacional e influenciado pelo meio. Assim, as relações sociais constituem o principal objecto de intervenção, com o objectivo do empoderamento da mulher com vista à igualdade entre os géneros. Nesta medida, e recorrendo ao paradigma sistémico como referencial teórico, a intervenção é orientada para o contexto das relações sociais ao nível comunitário e não ao nível familiar. O pressuposto subjacente é o de que os processos de intervenção directa com as vítimas de violência conjugal que ficam por uma intervenção individual demonstram a negação de que o que está em causa são relações de domínio. Mesmo que se assuma o domínio masculino, nega-se o domínio promovido pela sobrevalorização dos conhecimentos dos especialistas, em detrimento da avaliação das experiências das mulheres. Este domínio define a sua protecção (paternalista) como intervenção adequada, manifestando uma concepção assistencialista de apoio social.

Acolhendo a construção da violência conjugal num enquadramento de género, Cantera (2002) propôs que a família seja interpretada como um sistema aberto, com trocas intensas com o meio. As implicações desta mudança de interpretação fazem-se sentir desde logo na necessidade de questionar que mulheres e homens têm condutas adscritas pelo papel social de género, mas colocam também a necessidade de questionar as atribuições da família (funções sociais e expectativas de desempenho que recaem sobre ela), definindo o que é permitido e o que é socialmente tolerado à família. Interpretando a família como um sistema aberto, os limites do privado não se confundem com a intimidade (conjugal) e a interferência colectiva nas situações de violência passa a ser apenas mais uma dimensão de troca com o meio.

Esta mudança na interpretação da violência conjugal serve-nos para encetar, no capítulo seguinte, o tema da intervenção dirigida à violência conjugal enquanto parte de uma política social que se define num novo paradigma - com flexibilidade suficiente para adequar esta reconceptualização do fenómeno.

Para que fique mais evidente a proposta de mudança de interpretação da família proposta por Cantera (2002) optamos por mater o formato em tabela usado no original pela autora.

Tabela n.º 1 Elementos centrais na interpretação da violência conjugal

Elementos

Modelo de Ciclo Fechado Modelo de Ciclo Aberto

Interpretação do Processo de Violência

Endógeno à relação (conjugal) Unidireccional:

. do agressor sobre a vítima

. do casal sobre a sociedade (pelo impacto das relações interpessoais sobre a organização social).

Aberto ao meio e influenciado pelas relações sociais em geral

Bidireccional, correlacionando:

. Violência social e Violência interpessoal . Relações interpessoais e a organização social.

Representação da vítima

Indefesa; Vulnerável

Afectada nas suas capacidades

Competente; Activa Afectada pelo problema Origem da

Violência

Individual Patológica

Social

Relações sociais de género Representação

da Violência

Manifestação de Desvio(s). Violação de Direitos Humanos. Perspectiva de

Intervenção

Relacional (microssocial), sobre relações conjugais.

Relacional (macrossocial), sobre relações sociais. Paradigma teórico Funcionalista Sistémico Objectivo da Intervenção

Reparação dos danos causados na vítima. Fortalecimento da vítima;

Prevenção da violência em termos gerais. Modelo de Intervenção Assistencialista; Terapêutico e Individual; Reactivo; Reparador. Preventivo;

(de âmbito) Comunitário; Pro-activo;

Interventivo (promovendo uma mudança individual nas relações sociais e na organização das comunidades).

Papel da Intervenção

Determinante/ reparador Facilitador/ moderador Relação Profissional/ Vítima Assimétrica; Directiva. Simétrica; Participativa.

Síntese

‘Violência de género’ é o termo veiculado pelos organismos internacionais que pretende tornar claro que a violência conjugal decorre de uma opressão de género, em que há domínio masculino e submissão feminina. De acordo com esta interpretação, as mulheres são colocadas e mantidas em relações de desigualdade social cuja origem é ancestral, fazendo com que as sociedades tenham que se envolver num esforço intencional para reconhecerem situações de opressão feminina com as quais convivem há muito tempo e que já integraram a cultura.

A violência conjugal como problema social deve muito da sua construção à teoria feminista, que situa o fenómeno na desigualdade de género entre homens e mulheres não enquanto indivíduos isolados, mas enquanto sujeitos de categorias sociais. Esta perspectiva permitiu criticar o quadro funcionalista de interpretação da violência conjugal como um fenómeno patológico, estabelecendo definitivamente na teoria sociológica os homens como opressores e as mulheres como oprimidas. Esta relação de poder desigual consigna às mulheres uma posição social de vulnerabilidade nas estruturas sociais que reforça a sua dependência em relação aos homens na família, dificultando a sua saída de uma relação em que são maltratadas e contribuindo para que o fenómeno da violência conjugal se mantenha nas sociedades modernas, sem que se saiba como intervir sobre o mesmo.

A proposta de intervenção definida pelo feminismo implica a libertação da mulher através de estratégias de empoderamento como via para a sua autonomização e afirmação da condição feminina. O paradigma na interpretação da violência conjugal tem vindo a alterar-se deixando às sociedades o ónus pela resolução deste problema social.

Capítulo 3

No capítulo anterior salientámos como a interpretação da violência conjugal se mantém arreigada ao padrão cultural de género, que define normas e expectativas de comportamento associados aos papéis sociais de cada de cada um dos cônjuges nas relações familiares. Neste capítulo enquadramos a violência conjugal no conjunto de princípios, estratégias e medidas que, no plano político, orientam os objectivos e as práticas de intervenção. Apresentamos vários modelos de organização da intervenção, entre eles, o modelo de parceria - alvo da nossa atenção.

1 Influências do quadro internacional dos direitos humanos

O enquadramento dos direitos humanos tem vindo a ocupar espaço na interpretação da violência conjugal estabelecendo a legitimidade e a necessidade de os Governos lidarem com o problema social. Pelo menos desde 1945 que a Carta fundadora das Nações Unidas estabelece como objectivo do direito internacional a igualdade de direitos entre homens e mulheres. A partir de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos refere que homens e mulheres são livres e iguais em dignidade e direitos. Apesar disto, o reconhecimento explícito da violência contra as mulheres como violação dos direitos humanos só aconteceu em 1993, na Conferência Mundial dos Direitos Humanos, que teve lugar em Viena18 com a adopção da Declaração das Nações Unidas contra a Violência contra as Mulheres (habitualmente designada Declaração de Viena). Foi apenas nesta Conferência que ficou estabelecido, de forma inequívoca, a responsabilidade dos Estados em relação à prevenção da violência contra as mulheres e à sanção dos agressores, independentemente do facto de a violência ser cometida em contexto privado ou público.

Na sequência desta Declaração, várias declarações internacionais aprofundaram esta ideia da responsabilidade dos Estados quanto ao desenvolvimento de políticas e de

18 A Declaração de Viena e o Programa de Acção foram adoptados a 25 de Junho de 1993 na Conferência

Mundial sobre Direitos Humanos (realizada na cidade de Viena entre 14 e 25 de Junho). Em 1993 as Nações Unidas avençaram a sugestão que o Dia Internacional das Mulheres servisse para reflectir acerca dos direitos humanos e, dentro destes, dos direitos das mulheres e do significado que tem a violência contra as mulheres enquanto infracção dos Direitos Humanos. Este reforço colocou-se a partir do reconhecimento de que se avançara pouco em matéria de promoção dos direitos humanos para as

programas destinados a erradicar a violência contra as mulheres e a providenciar recursos adequados ao cumprimento desse objectivo (Hayes in Reiter, 2007). Um dos marcos neste processo é a Plataforma para a Acção de Pequim (saída da IV Conferência Mundial sobre as Mulheres, que teve lugar de 04 a 15 de Setembro de 199519) em que se estabeleceu que os Governos estão obrigados a dar resposta às exigências das mulheres de viverem uma vida livre de violência, a actuar na prevenção da violência e a adoptar medidas de sanção dos perpetradores de violência nas situações em que os direitos humanos (das mulheres) sejam violados.

A Declaração de Pequim e a Plataforma de Acção de Pequim abandonaram o léxico que remetia para a igualdade entre homens e mulheres e adoptaram um discurso que defende a necessidade de reconhecer e valorizar de igual forma as semelhanças e as diferenças entre homens e mulheres. No ano 2000 teve lugar a reunião de avaliação dos cinco anos da Plataforma de Acção de Pequim (Pequim+5) concluindo-se que alguns Estados se demitem da obrigação de prevenir e de sancionar a violência contra as mulheres em geral e a violência conjugal em particular. A tradição é usada por alguns Estados como argumento para justificarem na sociedade a persistência de actos que constituem violações dos direitos humanos e para argumentarem sobre a sua tolerância (política) em relação à punição desses actos.

Não obstante ter passado mais de uma década sobre a Declaração de Viena e sobre o Plano de Acção de Pequim, o que se continua a verificar é que a implementação das directrizes aí estabelecidas não está realizada. Mesmo assim, no ano 2005, a avaliação dos dez anos da Plataforma de Acção de Pequim (Pequim+10) conclui um notável progresso na promoção da consciencialização em relação à igualdade de género em termos públicos, isto é, por parte dos Governos e da opinião pública em geral. Esta

mulheres. Desde a CEDAW (1979) que o tema estava inscrito na agenda das Nações Unidas mas, mesmo essa Convenção não menciona a violência contra as mulheres de forma explícita.

19 A primeira Conferência Mundial das Nações Unidas sobre a Mulher teve lugar na cidade do México em

1975. Os compromissos aí assumidos pelos Governos, pela sociedade civil e pelas Nações Unidas foram sendo prosseguidos ao longo da década das Nações Unidas para a Mulher (1976-1985). Em 1979 a Assembleia-geral das Nações Unidas adoptou a Convention on the Elimination of all forms of

Discrimination Against Women (CEDAW) – ratificada pelo Estado português em 1981. Remetemos para o Anexo 1 onde apresentamos uma sinopse das iniciativas internacionais e nacionais.

conclusão alimentou as propostas fundamentais para a definição dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio. Entre estes, o objectivo 3 é explicitamente dedicado à promoção de igualdade de género e empoderamento20 da mulher, sob o pressuposto de que a desigualdade de género é mais evidente nos países com índices de pobreza maiores e nos lares mais pobres (UNPFA, 2008), a desigualdade de género passa a ser entendida como factor de bloqueio no desenvolvimento social mundial.

Progressivamente os documentos internacionais vêm demonstrando o consenso em relação à associação entre igualdade de género e empoderamento da mulher, associando-o à plena participação da mulher em todas as esferas da vida em sociedade, incluindo o acesso ao poder e tomada de decisão. A compreensão da violência conjugal neste enquadramento implica considerá-la, em simultâneo, causa e consequência das desigualdades de poder nas relações sociais entre homens e mulheres.