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A formação de políticas agrícolas: o papel dos grupos intragovernamentais

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CAPÍTULO III. A ANÁLISE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS: UM CAMPO INCIPIENTE

CAPÍTULO IV AS LEITURAS ELITISTAS E PLURALISTAS NOS ESTUDOS BRASILEIROS

4.1. As Leituras Elitistas: o Estado e a Agricultura

4.1.2 A ênfase no poder: caráter dos regimes, setores e confrontos intraburocráticos

4.1.2.2. A formação de políticas agrícolas: o papel dos grupos intragovernamentais

Tendo como base esse marco geral, a leitura apresenta um esboço do processo de formação de políticas agrícolas no Brasil, no período pós-guerra. Nesse processo, ressaltam-se

os grupos que, em decorrência da variante de políticas da corte que caracterizaria principalmente o governo autoritário instalado pelos militares, estavam formados pela tecnoburocracia governamental e por executivos e dirigentes de organizações governamentais influentes. Esses grupos visavam estabelecer estratégias e políticas que favorecessem certas concepções de modo a atingir a visão de boa qualidade do regime, além de melhorar suas posições relativas (Mueller, C. 1982: 114). Assim, embora o contexto de análise do modelo privilegie a interação entre o regime e os setores, na sua maioria externos ao regime, se enfatizaria o papel de grupos setoriais intra-governo, devido à sua importância na determinação e implementação das estratégias e das políticas agrícolas (Mueller, C. 1984: 11/2).

Uma vez que o alinhamento setorial e o desempenho dos burocratas e tecnocratas de alto nível imprimiram características especiais ao processo de formação de políticas, afetando a agricultura, a leitura examina como esses atores se organizaram e atuaram no contexto das inter-relações entre setores e o regime, das quais emanavam políticas públicas. Essas “eminências” (burocratas e tecnocratas) teriam um papel duplo no processo de formação de políticas. Por um lado, faziam parte do aparato de decisão de políticas e sobre elas recaía parte das pressões dos setores que pretendiam verem satisfeitas suas demandas. Por outro, tinham suas concepções, objetivos e demandas e participavam do processo de formação de políticas como setores. A distribuição de poder pelas eminências seria assimétrica e elas possuíam diferentes visões em relação à forma como o regime devia alcançar a boa sociedade, o que originava conflitos intra-corte (Mueller, C. 1982: 115; 1984: 12).

Especificamente, em relação às políticas agrícolas, se identificariam dois grupos setoriais intragovernamentais conformados por tecnoburocratas que, enfocando de forma diferente a agricultura, com freqüência divergiam em relação às políticas para o setor: os “condutores da modernização” e os “administradores da agricultura”.

A leitura pretende mostrar que as origens dos freqüentes confrontos entre os dois grupos intragovernamentais sobre a condução da política agrícola não estaria na natureza autoritária do regime pós-1964. Com a alteração na estratégia econômica por ele promovida, os confrontos só se intensificaram. Mas suas raízes remontavam às mudanças na visão de boa sociedade e, conseqüentemente, eles continuaram presentes na estratégia de desenvolvimento introduzida a partir de meados da década de 30, e que se consolidou no pós-guerra, na fase de

auge do modelo apoiado na industrialização por substituição de importações (Mueller, C. 1984: 22).

Segundo essa leitura, seria apenas em 1937 que se começaria a alterar a visão de boa sociedade do regime. A nova estratégia do regime apoiava-se no desenvolvimento manufatureiro e na remoção de estrangulamentos à modernização do país. Contudo, essa visão de boa sociedade modernizante do regime e a estratégia de desenvolvimento que a acompanhava não foram precedidas de substanciais mudanças institucionais. O regime fortaleceu-se com o golpe do Estado Novo, com o fechamento do Congresso e com a repressão e os controles introduzidos. Mas a nova estratégia não estaria claramente delineada e o Estado não se encontraria organizado nem preparado para atuar eficazmente na sua implantação (Mueller, C. 1984: 23/4).

Após alguns anos de indefinição que se seguiram à queda do Estado Novo e ao fim da Segunda Guerra, problemas agudos de balanço de pagamento voltaram a se fazer sentir, o que teria levado o regime a retornar à visão de boa sociedade modernizadora de cunho autárquico. Foi gradualmente, também, que se delineou e se consolidou a estratégia de industrialização por substituição de importações. Mas essa visão de boa sociedade não estaria sendo partilhada pelo Congresso Nacional, que continuava sob o domínio dos setores agrários. Não seria, então, de esperar que aprovasse alterações na legislação tributária, para possibilitar a necessária mobilização de recursos, nem que concordasse em introduzir uma estrutura tarifária protecionista. O regime foi assim forçado a encontrar caminhos menos convencionais, e foi nesse contexto de busca que se firmaram os condutores da modernização (Mueller, C. 1984: 24/5).

Dessa forma, a ascensão dos condutores da modernização, no pós-guerra, teria a ver com as mudanças econômicas e de visão de boa sociedade e com o ambiente institucional rígido e inadequado, existente nessa época. Por um lado, a nova visão de boa sociedade exigia a implantação de estratégias que não se afinavam com a estrutura institucional. Por outro, não existiam condições políticas para uma rápida reforma. Na busca de instrumentos alternativos de atuação, abriu-se caminho para elementos com capacitação e conhecimento técnico em sua concepção e administração. Na implantação da estratégia de desenvolvimento, o governo foi confrontado com problemas econômicos cada vez mais difíceis e complexos, que já não podiam ser resolvidos com “improvisação e diletantismo”, tornando-se progressivamente

necessária a intervenção de técnicos com certa formação e experiência. Teria sido assim que “se abriu a porta” à tecnoburocracia9 (Mueller, C. 1984: 31/2)

Os condutores da modernização influíram, não só na elaboração da estratégia de desenvolvimento seguida, como também no próprio delineamento da visão de boa sociedade compartilhada pelo regime e por setores urbanos emergentes. Adicionalmente, a atuação dos condutores da modernização ajudou a dar ao processo decisório certa estabilidade interna. Assim, as linhas gerais da estratégia de desenvolvimento no pós-guerra, até o início da década de 1960, permaneceram relativamente inalteradas apesar da considerável instabilidade política que caracterizou o período (Mueller, C. 1984: 33).

A visão de boa sociedade do regime pós-1964 era a do Brasil como grande potência, o que requeria um maior envolvimento da tecnoburocracia. O regime militar encontrou em funcionamento um sistema de formulação e implementação de políticas econômicas que se adaptou bastante bem às suas necessidades. Ele conseguiu então mobilizar e aprimorar a estrutura dentro da qual vinham operando os condutores da modernização para, numa primeira fase, promover a recuperação da economia e, em seguida, implantar o milagre brasileiro, com a permanência dos técnicos (Mueller, C. 1984: 34).

Concomitantemente, no período pós-1964 se manifestaria uma considerável ampliação do poder dos condutores da modernização. Segundo essa a leitura, se reduziram muito as pressões de políticos clientelísticas e foram afastadas as limitações institucionais que antes levaram os condutores da modernização a procurar alternativas não convencionais de atuação. Os militares lhes delegaram poder considerável, demandando apenas dos componentes do grupo fidelidade estrita à visão de boa sociedade que procuravam implantar. Assim, até 1980, a modernização urbano-industrial tornou-se amplamente prioritária e a ela se submeteu quase tudo, inclusive as políticas agrícolas, o que se tornou mais forte com a crise dos anos de 1980 (Mueller, C. 1984: 34-35).

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Uma organização-chave no aperfeiçoamento e no intercâmbio de idéias entre técnicos que depois viriam a se constituir os condutores da modernização teria sido a Fundação Getúlio Vargas. Essa organização e, depois, a Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC), do Banco do Brasil, e o BNDE serviram de base institucional para as carreiras de muitos desses técnicos e ofereceram-lhes crescentes oportunidades de envolvimento na formação da política econômica. Embora nem todos os técnicos envolvidos no processo pensassem da mesma maneira, todos aceitavam como essencialmente correta a nova visão de boa sociedade do

Por sua vez, os administradores da agricultura eram praticamente inexistentes antes da Segunda Guerra, e mesmo na fase áurea da industrialização por substituição de importações, na década de 50, a agricultura recebeu do regime atenção limitada. Essa atenção aumentava apenas em ocasiões em que o mau desempenho da agricultura poderia afetar o sucesso da estratégia de desenvolvimento. Apenas nos anos 80, devido à necessidade de melhorar o desempenho da agricultura, foi que o setor agrícola se expandiu e aperfeiçoou (Muller, C. 1984: 35).

Ainda que a origem dos administradores da agricultura possa remontar à República Velha, o caráter secundário de Ministério de Agricultura apontaria para que só no caso do café e do açúcar, como produtos de exportação, poderiam ser identificados atores tecnoburocráticos que defendiam o setor. Com a instalação do Estado Novo e sua proposta de modernização urbano- industrial que desembocou no processo de substituição de importações, passou a conformar-se o setor público agrícola e, dentro dele, o grupo dos administradores da agricultura. Esse grupo tinha seus interesse ligados tanto à agricultura de exportação como à destinada a abastecer o crescente mercado interno (Mueller, C. 1984: 37-39).

Como já mencionado, a visão de boa sociedade que evoluiu no período do pós-guerra até 1964 era a de um Brasil moderno e industrializado, e a estratégia adotada na tentativa de atingir esse objetivo e simultaneamente reduzir as restrições de balanço de pagamentos foi a da industrialização por substituição de importações. Os condutores da modernização concentraram sua atenção nessa tarefa e a agropecuária foi levada a desempenhar certos papéis básicos no processo. Porém, de fato as políticas de maior impacto agrícola não estiveram sob controle dos administradores da agricultura. Esses técnicos e funcionários, como o subsetor mais numeroso do setor público agrícola, apresentavam um baixo nível de qualidade, o qual influenciava nas inconsistências e no caráter imediatista e errático da política agrícola (Mueller, C. 1984: 40-41).

A mudança de regime, após 1964, pouco alterou essa situação, tendo o sistema de apoio à agricultura e o elenco de políticas agrícolas, de início, permanecido praticamente os mesmos. Foi com a constatação da necessidade de um melhor desempenho da agricultura para implementar a visão de boa sociedade que, durante os anos 70 e, sobretudo, os 80, se alterou o

regime (década de 50) e concordavam com as linhas gerais da estratégia de desenvolvimento adotada para tentar alcançá-la (Mueller, C. 1984: 32/3).

cenário. Ampliou-se, então, a base técnica do Ministério da Agricultura, contrataram-se elementos de alto nível e implantaram-se, com a colaboração de programas de ajuda externa, programas de treinamento e capacitação. Surgiram ou se aprimoraram autarquias, empresas e outras organizações – como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) e a Comissão de Financiamento da Produção (CFP) – que, operando sob a égide do Ministério da Agricultura, tiveram ativa participação na política agrícola (Mueller, C. 1984: 42).

Porém, embora a base técnica e o arcabouço institucional tivessem melhorado substancialmente, continuou limitado o campo de atuação que os condutores da modernização deixaram aos administradores da agricultura, até no que diz respeito à própria concepção e implementação das políticas agrícolas. Não só permaneceram fora do âmbito do Ministério da Agricultura a política de produtos-chave (café, açúcar, trigo, algodão), como continuou sendo limitada sua participação na política de crédito rural. A criação do Ministério Extraordinário para Assuntos Fundiários, para tratar de problemas relacionados com a estrutura agrária, também reduziu a influência do Ministério da Agricultura (Mueller, C. 1984: 42-44).

Os setores rurais, mesmo os mais influentes, encontraram-se, assim, numa posição débil face ao processo de formação de políticas públicas. Por um lado, as ligações que os setores rurais influentes dispunham eram principalmente com os administradores da agricultura, cujo campo de manobra continuou sendo relativamente restrito, não lhes permitindo, por mais que o desejassem, atender às suas maiores reivindicações. E, mesmo no caso em que os setores rurais tivessem acesso a conectores influentes no grupo dos condutores da modernização, as características desse grupo e seu compromisso com a visão de boa sociedade, na qual os interesses dos setores rurais tinham um peso reduzido, não lhes abriu maiores possibilidades para que seus pleitos fossem atendidos (Mueller, C. 1984: 47).

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