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Patronagem, clientelismo e políticas públicas

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CAPÍTULO II. REDES E OUTROS ENFOQUES, TEORIAS E MODELOS NO ESTUDO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

2.2. As Redes e o Estudo das Políticas Públicas

2.2.1. A análise das relações de patronagem e clientelismo

2.2.1.5. Patronagem, clientelismo e políticas públicas

No que diz respeito às políticas públicas, a patronagem e o clientelismo – da mesma maneira que o corporativismo – apresentam-se, por um lado, como um fenômeno político e social que se faz presente em diversos tipos de relações entre o Estado e a sociedade. Por outro, as teorias e modelos da patronagem e do clientelismo que, como vimos, vêm se desenvolvendo há décadas nas ciências sociais – particularmente na antropologia e na ciência política – apontam para problemas, questões e dimensões políticas e sociais não enfrentados ou tratados marginalmente nas análises das políticas públicas.

Como fenômeno político e social presente nas políticas públicas, a patronagem e o clientelismo podem ser considerados como uma forma hierarquizada de representação de interesses e de apresentação de demandas, centrada no intercâmbio entre clientes demandantes e patrões com poder e influência nas agências que administram o acesso a recursos públicos.

Também o clientelismo seria um bem político particular. As políticas públicas produzem bens “políticos”, classificáveis em termos de sua natureza, tanto no sentido do seu consumo como de sua produção. Os bens políticos seriam aqueles bens materiais ou simbólicos socialmente valorizados que se fazem presentes no processo de troca e cuja destinação é regulada pela autoridade governamental (Bahia, 2003: 273). Em geral, os bens políticos são públicos, mas existe uma forma híbrida representada pelos bens clientelísticos. Os bens clientelísticos seriam bens políticos produzidos pelo Estado e consumidos de forma privada22.

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Esse tipo de bens políticos são bens coletivos por serem fornecidos pelo Estado e, conseqüentemente, seus custos são difusos, já que todos pagam a produção do bem. Ao mesmo tempo são bens privados, devido a que o seu consumo exclui outras pessoas ou grupos, implicando em benefícios concentrados (Bahia, 2003: 274).

Essa dupla propriedade consolida, por sua vez, a intermediação da apropriação privada do público (Bahia, 2003: 337)

Em termos analíticos, podemos distinguir três áreas onde vêm se manifestando as contribuições do clientelismo. Desde chamar a atenção para problemas específicos e dimensões de análises difusas das políticas públicas, passando pelo enriquecimento de marcos conceituais de outros modelos, teorias e enfoques, até a formulação de propostas e hipóteses próprias

Em relação aos problemas e dimensões, por exemplo, temos que a estrutura piramidal das relações patrão/clientes abre a possibilidade de articular a análise das políticas nos diferentes planos – desde o local até o nacional – nos quais ela se manifesta. Ou, como se comentou anteriormente, o clientelismo chama também a atenção para uma noção de interesse que não se reduz às dimensões materialistas ou utilitaristas. O uso dessa noção não-reducionista do interesse abre pistas para superar o risco de uma análise das políticas públicas na qual predomine a sua mercantilização, deixando de lados aspectos políticos (como o das relações de poder, lealdade ou afinidades eletivas) e sociais (como dignidade, honra, prestígio ou solidariedade).

Outros conceitos e modelos usados na análise de políticas públicas, como o de rent- seeking, apresentam vários traços essenciais da troca política assimétrica clientelística. Também a análise dos lobbies exercidos por grupos de interesse para a formulação de políticas tem tido que incorporar a reflexão sobre clientelismo para dar conta dos casos onde as políticas, ao pender para o interesse privado, introduzem nelas a troca clientelística (Bahia, 2003: 337). Os aportes do clientelismo também estão presentes no desenvolvimento das formas que assumem as redes de política pública elaboradas no marco do pluralismo reformado.

Desde a clássica tipologia de políticas de Lowi (1964 e 1972), é recorrente considerar que o fenômeno do clientelismo estaria associado às políticas distributivas. Porém, com os desdobramentos dos estudos vem sendo apontado que o clientelismo também se faz presente nas políticas regulatórias. Isto é, de forma semelhante às políticas distributivas, um bem clientelístico pode ser o resultado de uma política regulatória, ao serem ambos dois decorrentes do processo de rent-seeking. Porém, os bens clientelísticos não seriam produzidos

nas políticas redistributivas, características das situações de conflito ou de jogo soma zero (Bahia, 2003: 178 e 293).

Também a partir das trocas clientelísticas, foram levantadas hipóteses para a análise de políticas públicas específicas. Por exemplo: haverá maior interação clientelística numa política pública se houver um sistema decisório concentrado, um padrão de demanda desconcentrado, baixo padrão de competição entre grupos que demandam, acesso restrito e forte hierarquia vertical (Bahia, 2003: 338).

Finalmente, as relações de patronagem e clientelismo vêm sendo consideradas como uma variável significativa em diferentes modelos de avaliação de políticas, tanto pelo fato de sua identificação como fenômeno político e social recorrente em quase todas as fases da análise das políticas públicas, como pelo constante risco das distorções dos fenômenos da corrupção a elas associadas.

2.2.2. Individualismo relacional e relações sociais nos estudos norte-americanos sobre redes

Uma outra forma de análise que recupera a importância das redes sociais nas políticas públicas se desenvolveu nos Estados Unidos. A literatura norte-americana sobre análise de redes sociais23 é diversificada, sendo o traço comum entre todos os trabalhos a ênfase central nas relações sociais e no “individualismo relacional”24.

Em linhas gerais, a análise de redes desenvolveu-se em duas grandes vertentes ou leituras. A primeira focava os vínculos entre entidades ou indivíduos diferentes e a sua distribuição em redes25. Até o início dos anos 70, os estudos exploravam a conectividade em redes de menores proporções utilizando, em sua maioria, sociogramas26. Tinham como foco as relações egocentradas, com apenas algumas tentativas de estudo das posições e do conjunto de redes

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Como exemplo, temos os estudos sobre mercados de trabalho (Granovetter, 1973), políticas públicas (Lauman e Knoke, 1987), padrões de citação de notícias entre jornais de todo o mundo (Kim e Barnett, 1996), ação coletiva (Gould, 1989, 1993; Rosenthal et al., 1985) e discursos sobre pobreza (Mohr, 1994), entre outros.

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Para Marques, a força da análise de redes sociais está na possibilidade de construir estudos muito precisos nos aspectos descritivos, sem impor uma estrutura a priori à realidade e aos atores, criando um tipo muito particular de individualismo relacional (Marques, 2000: 36).

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Por exemplo, os trabalho de redes na antropologia presentes em Mitchell (1969), na linha de abordagem aberta por Radcliffe-Brown.

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maiores. Já a partir do início dos anos 70, devido a inovações técnicas e desenvolvimentos metodológicos, foi possível realizar análises centradas também nas posições e nas estruturas de redes (Marques, 2000: 34).

A outra vertente analítica estaria contribuindo na construção do que Tilly (1992) denomina de “sociologia estrutural”. Essa leitura marca os atuais estudos norte-americanos de redes. Segundo Marques, nela parte-se do estudo de uma série de situações concretas, para investigar a interação entre as estruturas presentes e as ações, estratégias, constrangimentos, identidades e valores que se desenvolvem. As redes constrangeriam as ações e as estratégias, mas elas também as construiriam e reconstruiriam continuamente. Da mesma forma, redes e identidades se constituiriam mutuamente, abrindo um novo campo de estudo entre cultura política e análise de redes (Marques, 2000: 34/5)

Esses esforços analíticos recentes nos debates norte-americanos utilizando redes reforçam a ênfase relacional, recuperando em outras bases técnicas as preocupações originais de clássicos da sociologia, como George Simmel27. Ou também, visando integrar economia e sociedade de uma forma que recupera a melhor tradição de autores, como Max Weber e Karl Polanyi28. Através da ênfase relacional dessas análises, critica-se, de forma explícita ou implícita, a elaboração de estudos que tentam explicar ou compreender os fenômenos da sociedade através da observação de atributos de categorias sociais, em vez de informações referentes às suas relações29. Os dados relacionais envolvem contatos e conexões que vinculam os agentes entre si, e não podem ser reduzidos às propriedades dos agentes individuais30. Para essa literatura, a matéria-prima das análises seria o conjunto das relações, vínculos e trocas entre entidades e não os seus atributos (Marques, 2000: 33/4).

Junto à sua ênfase nas relações sociais, o enfoque de redes avança na questão da compreensão da racionalidade dos indivíduos e grupos, em relação tanto às análises estruturalistas (nas quais se tende a um constrangimento radical da ação dos atores a suas posições estruturais) como às abordagens radicais de escolha racional (que, de forma oposta, supervalorizam a liberdade das ações dos indivíduos em relação aos contextos). As redes constrangem os movimentos, alteram as suas preferências, restringem e moldam a

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Seria o caso dos trabalhos de Emirbayer (1997) e Emirbayer e Goodwin (1992).

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Ver Granovetter (1973 e 1985) e White (1981).

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Por exemplo, como em Smith D. e Timberlake (1995) e Marques e Torres (2000).

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racionalidade e ajudam na construção de identidades, mas são ao mesmo tempo conformadas continuamente pelos atores e pelos fenômenos sociais. O lançamento de elos por cada entidade individual segue uma racionalidade restrita que é pautada apenas esporadicamente por cálculo maximizador31 (Marques, 2000:35).

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