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Os anéis burocráticos e a interpenetração entre interesses públicos e privados

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CAPÍTULO III. A ANÁLISE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS: UM CAMPO INCIPIENTE

CAPÍTULO IV AS LEITURAS ELITISTAS E PLURALISTAS NOS ESTUDOS BRASILEIROS

4.1. As Leituras Elitistas: o Estado e a Agricultura

4.1.1. Os anéis burocráticos e a interpenetração entre interesses públicos e privados

Talvez a contribuição teórica e analítica da literatura brasileira mais importante para a compreensão da interpenetração entre o Estado e interesses privados, nos processos de formulação e implementação de políticas públicas, seja a que se desenvolve em torno da categoria de “anéis burocráticos”, formulada por Cardoso (1970). Segundo essa leitura, as atividades de planejamento e a inércia burocrática durante o período nacional-populista eram mecanismos políticos para que a administração suplementasse os interesses privados, fluindo os últimos através de teias de cumplicidades pessoais, que não representavam lobbies2. Essas teias eram mais difusas e orientadas para relações e lealdades pessoais que tornavam cúmplices diferentes tipos de elites políticas locais e estaduais, elites do setor privado (como industriais, comerciantes e banqueiros), burocráticas governamentais e, às vezes, até os próprios ministros. Na falta de sistemas mais amplos de partidos de classe, sindicatos e associações de classe significativos, a organização dos interesses e as decisões sobre políticas públicas e outras ações governamentais eram tomadas a partir desses sistemas de “anéis burocráticos”. Isto é, múltiplos círculos baseados em relações pessoais que ligariam de forma perpendicular interesses em subsistemas, englobando partes do governo, da burocracia, de empresas privadas, de sindicatos, entre outros (Cardoso, 1970: 179-80).

Os anéis burocráticos não seriam lobbies – sob o aspecto de formas organizadas de influência que supõem maior racionalização do Estado e uma sociedade civil mais estruturada – mas uma espécie de círculos de troca de informação, e de pressão. Ou seja, círculos de poder que, como tais , se constituem em mecanismos para permitir a articulação entre setores do Estado e setores das classes sociais, pelo geral, as suas elites. O pertencimento a um “anel”, entretanto, não implicava na necessidade de existência de solidariedades entre os seus membros, nem também na possibilidade de busca de recursos comuns entre grupos sociais ou frações de classe mais amplas. O pertencimento diz respeito à definição, nos quadros dados

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O isolamento da burocracia, como sua lógica específica de articulação e de reprodução de poder presente na proposta de Cardoso, tem como referência as teorias de Riggs (1968) sobre as especificidades da administração pública nas sociedades em transição, isto é, as “sociedades prismáticas” (ver o comentário ao respeito, no capítulo 2).

pelo regime, de um interesse específico que pode unir por um período indeterminado de tempo, mas não permanentemente, um “círculo de interessados” na solução de um problema, envolvendo este políticas públicas específicas, como também encaminhamentos eleitorais de uma sucessão estadual (Cardoso, 1975).

Segundo essa leitura, com o golpe de 1964 e a implantação do regime autoritário, começaria a se dar a quebra do sistema de anéis burocráticos típicos do populismo. Desde inícios dos 70, já vinham se desenvolvendo análises visando desvendar a natureza das relações entre as instituições da sociedade civil e um Estado que assumiu um formato “burocrático-autoritário” (O'Donnell, 1975). Nesse Estado, se por um lado o autoritarismo é excludente, e conseqüentemente particularista, ao mesmo tempo também é burocrático, isto é, concentra e centraliza poder, condicionando o seu exercício às normas impessoais de racionalidade instrumental. A retórica autoritária tende a despolitizar os issues, através de procurar demonstrar a articulação entre os critérios de racionalidade na formulação e implementação de políticas, reafirmando a exclusão política, já que altos níveis de participação, com a conseqüente inflação de demandas e a generalização do “populismo demagógico”, induziriam à irracionalidade na formulação de políticas públicas (na linha da análise shumpeteriana do elitismo democrático). Acima de interesses privados egoístas, a exclusão possibilitaria e emergência de objetivos e valores coletivos, como princípio de coerência das ações públicas (Castro Santos, et al, 1989: 223).

Ao mesmo tempo, na leitura se lembra que o caráter básico do Estado, nesse período, foi o de um Estado autoritário, porém que visava o desenvolvimento capitalista, isto é, orientado para a acumulação de capital, a industrialização e a modernização. Para conseguir esses objetivos, teve a necessidade de estabelecer pontes com elites de grupos e classes sociais específicos, envolvendo-os nas suas políticas públicas. Isto é, as políticas que emanavam do Estado resultavam também da interação de um conjunto complexo de grupos, dentre os quais se destacam as grandes empresas (privadas e estatais), a alta classe média, facções militares e segmentos da burocracia (Mueller, C. 1982: 99). Assim, a partir das novas evidências, a leitura sobre o papel dos “anéis burocráticos” se modifica, considerando que esses anéis não só estariam presentes no período nacional populista, mas que, além disso, caracterizariam a forma de fazer política pública também durante o Estado burocrático autoritário.

De fato, o Estado moderno capitalista, ao crescer e se complexificar, leva, em nome de sua eficiência, à diferenciação e fragmentação da sua própria estrutura burocrática. A fragmentação induz ao conflito e à competição entre agências burocráticas, desorganizando, assim, as relações de interdependência dentro do próprio aparelho de Estado. No caso do Estado burocrático-autoritário – que se legitima ideologicamente no mito da racionalidade – a fragmentação que, ao nível da formulação e implementação de políticas, convive com o controle central e autoritário sobre premissas decisórias (orçamento e tributação, por exemplo), permitiria ao aparelho do Estado receber ecos ou demandas da sociedade civil (Castro Santos et al, 1989: 223/4).

Segundo essa leitura, nem os lobbies e nem o corporativismo seriam suficientes – nem adequados – para dar conta do tipo de filtro que se manifestava no Estado burocrático- autoritário. No regime militar, a especificidade do relacionamento das empresas privadas com o Estado continuaria associada aos anéis burocráticos. Estes seriam mais adequados e eficazes que os lobbies, pois não seriam mais abrangentes e não só econômicos; ao mesmo tempo, seriam mais heterogêneos ao incluir diversos tipos de atores, como funcionários, empresários ou políticos. Também, diferentemente que os lobbies, para eles terem vigência no contexto político-institucional brasileiro, necessitariam estar centralizados ao reder do detentor de algum cargo. Ou seja, quanto aos anéis burocráticos, não se trataria de instrumentos de pressão da sociedade sobre o Estado. Eles seriam uma forma de articulação que, sobre a égide da “sociedade política”, asseguraria ao mesmo tempo um mecanismo de cooptação para integrar nas cúpulas decisórias membros da elite de diferentes classes e grupos. Estes se tornariam participantes da arena política, mas integrando-se em termos pessoais e não como “representantes” de suas corporações de classe (Cardoso, 1975).

Finalmente, como já mencionado, a proposta teórica e analítica de anéis burocráticos e sua leitura que ressalta a interpenetração entre interesses públicos e privados se transformaram numa referência, explícita ou não, das outras leituras que a posteriori foram elaboradas sobre os processos de formulação e implementação de políticas públicas, no Brasil.

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