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A análise de setor

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CAPÍTULO II. REDES E OUTROS ENFOQUES, TEORIAS E MODELOS NO ESTUDO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

2.1. Enfoques, Teorias e Modelos que Recuperam a Questão Política nas Análises das Políticas Públicas

2.1.2. A análise de setor

Este modelo de análise, centrado na noção de setor, tem sido amplamente utilizado em estudos franceses7. Também tem influenciado estudos do neocorporativismo, em particular através das análises do “corporativismo setorial”. Ao procurar analisar o “Estado em ação”, rejeitam a idéia de um Estado unificado, racional ou capturado por classes dominantes. A ação do Estado estaria marcada por contradições e impasses resultantes das características da estrutura estatal e dos diferentes tipos de respostas que são dadas desde as diversas agências às questões colocadas pela sociedade. Os desajustes entre os diferentes sistemas sociais e entre os sujeitos para com os sistemas de valores que legitimam a ordem social colocam em risco a coesão social. Cabe à ação estatal o restabelecimento da coesão social, através de ações de regulação e de legitimação.

As ações de regulação visam o reequilíbrio em cada sistema social e a compatibilidade entre os diversos sistemas. A intervenção pública reguladora assume diferentes formas, segundo as lógicas prevalecentes na estruturação da sociedade. Em linhas gerais, a intervenção pública se organiza em torno de duas lógicas – a lógica territorial e a lógica setorial – cada uma com racionalidade própria. Através da lógica territorial, o sistema social a ser regulado pela ação do Estado é uma circunscrição espacial (seja uma unidade político- administrativa como um município, estado ou região), uma zona com status particular (como a floresta) ou também um componente territorial de uma política global (como a política de descentralização). Através da lógica setorial, o Estado procura regular a reprodução de uma entidade algo mais abstrata constituída por um domínio de atividade delimitado verticalmente (como a indústria, a saúde ou a agricultura) (Muller, P. 1985: 166).

Essas duas lógicas de intervenção seriam diferentes, porque remetem a duas dialéticas sociais diversas. No primeiro caso, diz respeito à relação entre centro e periferia e está no cerne da intervenção estatal. No segundo, refere-se à dialética global-setorial. Assim, através das políticas setoriais, a intervenção estatal procura ajustar a reprodução de cada setor

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específico com os objetivos mais globais que se referem à reprodução da sociedade como um todo (Muller, P. 1985: 166).

A categoria “setor”, com significado distinto do econômico8, é definida como uma articulação de papéis sociais estruturados em torno de uma lógica vertical e autônoma de reprodução. Como totalidades sociais, os setores procurariam, ao mesmo tempo, estruturar os papéis sociais em torno de uma lógica de reprodução “aterritorial” e conferir aos indivíduos novas identidades, isto é, identidades profissionais em substituição às identidades locais. Tomando o caso do setor agrícola, teríamos a passagem de uma racionalidade familiar e territorial – que constrói o “camponês” como um chefe de uma unidade familiar de reprodução inserida num local específico – a uma lógica cada vez mais profissional e menos dependente de constrangimentos locais, e que constrói o “chefe de uma exploração agrícola”, que conduz sua empresa em função das regras do mercado. Dessa forma, as “sociedades rurais” cedem lugar ao “setor agrícola”, ao mesmo tempo em que a política agrícola tradicional (isto é, a regulação do espaço rural) transforma-se numa política de modernização da agricultura como setor. Diferentemente de um território tradicional, cada setor reagrupa só um aspecto da vida social. Através de uma lógica profissional, os atores, idéias e práticas são agrupados em setores (Muller, P. 1985: 166-167).

Por sua vez o Estado, através de ações legitimadoras, visa aumentar a aceitação das regras e valores das diferentes hegemonias presentes na sociedade. Isso se manifesta tanto no trato diferenciado para com os diferentes grupos dominados, como também na gestão da heterogeneidade entre os diferentes grupos sociais. Essas ações legitimadoras manifestam-se ao mesmo tempo em que as ações reguladoras e não necessariamente de forma coerente, devido às relações de força e às hegemonias dominantes em cada setor. Pelo contrário, a ação estatal sofre as tensões da falta de convergência das mesmas (Marques, 1997: 84).

Assim, o resultado das políticas é imprevisível, seja porque o processo de produção dos atores sociais é variado, não podendo sempre transformar as tensões sociais em problemas políticos a serem tratados por políticas específicas. Ou também porque não é possível prever com exatidão a reação dos atores a essas políticas. Finalmente, pela diferença entre as capacidades de planejar as políticas e as capacidades de implementá-las. A presença de

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Como Marques relembra, no campo da economia, o uso da categoria “setor” também designa um segmento econômico controlado pelo setor privado (Marques, 2000: 42).

burocracias diferentes a cargo do planejamento e da implementação aumenta os riscos de conflito e a imprevisibilidade do resultado das políticas (Marques, 1997: 84).

Em linhas gerais, apesar desses desencontros e até contradições, a ação estatal tende a apresentar certa coerência interna e estabilidade, devido principalmente a dois fatores. Por um lado, o Estado influencia na produção dos próprios atores da sociedade, através da alocação diferencial de recursos públicos e de interlocução. Isso se manifesta exemplarmente através dos pactos corporativos ou do corporativismo setorial, onde o Estado, através de alocações preferenciais, traz para dentro de si a concertação social, reduzindo os riscos e aumentando a previsibilidade9. Por outro lado, a ação estatal seleciona e enquadra questões e atores, através da inclusão na agenda política de temas e problemas que podem ser resolvidos (Marques, 1997: 84).

Em termos de análise das políticas, esses autores identificam três grandes “chaves” de análise: a relação global-setorial; o referencial do setor e a questão dos mediadores. Em termos da relação global-setorial, se parte de que os setores se conformam como um recorte da realidade global, comportando atores e questões pertinentes. Os setores se hierarquizam na sociedade e no Estado, segundo a importância na divisão social do trabalho e o poder de suas lideranças hegemônicas na sociedade. Essa hierarquia implica na alocação diferencial de recursos por parte do Estado, através das políticas públicas (Marques, 1997: 85).

Os setores se interpenetram e se superpõem, sendo definidos por papéis sociais. Cada indivíduo se insere em diferentes setores, segundo seus papéis sociais (como agricultor, como militante, como consumidor, etc.). Junto à lógica profissional interna de cada setor, também se manifesta uma lógica administrativa. A lógica profissional predomina na sociedade civil, criando corporações profissionais setoriais que, construindo sua hegemonia, visam impor sua visão de mundo e de setor. Por sua vez, a lógica administrativa que rege a ação do Estado – estruturada de acordo com os limites do setor estabelecidos na relação global-setorial – propicia a formação de burocracias especializadas nos temas do setor. Nas burocracias também se dá uma luta pela hegemonia. Essas burocracias competem pelo controle

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Segundo Muller, os corporativismos seriam, ao mesmo tempo, uma fatalidade e um perigo mortal para sociedades setorializadas. Eles seriam a expressão da setorialização em termos de grupos sociais, representando a cristalização desses grupos em torno de uma identidade profissional segmentada, e não mais de um território. As estratégias do “corporativismo setorial” pretendem transformar seus objetivos setoriais no interesse geral, mas dependem dos recursos do Estado para isso (Muller, P., 1985: 169).

administrativo do setor e pela redefinição da relação global-setorial. Os sujeitos profissionais e administrativos dominantes – isto é, os mediadores das políticas – tentam reconformar o setor, em função dos seus interesses e representações. O estabelecimento e a acomodação entre ambas hegemonias é uma condição fundamental para o bom andamento de uma política pública (Marques, 1997: 85).

O referencial do setor estaria conformado por um referencial global (a representação da sociedade), por um referencial setorial (a representação do setor) e pela articulação entre ambos. O referencial global, múltiplo e contraditório, está composto por um conjunto hierárquico de normas e valores sobre a sociedade, integrados ao modelo cultural e aos valores dominantes, e associado a um tipo de projeto de sociedade resultado dos projetos dos diferentes mediadores globais ou atores hegemônicos da sociedade como um todo. O referencial setorial reflete também de forma contraditória e não racional as normas e valores com respeito ao setor, expressos pelo grupo profissional dominante em suas lutas internas pela hegemonia. Ambos os referenciais estão articulados. Assim, a possibilidade de um projeto de um grupo corporativo dentro de um setor se transformar em hegemônico nesse setor depende, em grande medida, de sua adequação aos elementos centrais do referencial global (Marques, 1997: 86).

O último elemento-chave para a análise das políticas públicas são os mediadores setoriais e globais. Isto é, um tipo de “intelectuais orgânicos” que elaboram um projeto sociocultural. Os tecnocratas seriam os mediadores globais na sociedade moderna. No caso dos mediadores setoriais, esse projeto contempla principalmente uma representação do setor que, sendo hegemônica, visa construir uma normativa própria para o mesmo. Os mediadores podem estar no interior do Estado ou na sociedade, desenvolvendo estratégias diferenciadas, mas que sempre visaram tanto a decodificação do referencial global como a recodificação do seu projeto político e da setorialização do referencial global no setorial (Marques, 1985: 86)

Assim, o quadro conceitual associado à análise setorial não se restringe ao estudo das políticas e seus atores, levando em conta também os projetos e as estratégias, integrando políticas públicas, projetos e cultura (Marques, 2000: 42/3).

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