• Nenhum resultado encontrado

ECONÔMICA, MUDANÇAS NO PADRÃO TECNOLÓGICO E OS PAÍSES PERIFÉRICOS

III.3 A globalização econômica: a periferia capitalista

deixam-se consumir em nome da integração que desintegra a raiz do ser e do viver.

(CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, Entre Noel e os índios)

Até os anos 80 a América Latina foi capaz de sustentar altas taxas de crescimento econômico e incorporou em suas “forças produtivas” boa parte da base técnica gerada e amadurecida nos países desenvolvidos. Foi o período em que os organismos internacionais chamavam suas economias de “em desenvolvimento”, conceito que, embora respondesse a pudores diplomáticos e necessidades político-ideológicas, guardava relação com a realidade vivida pelos países. Seguramente é um eufemismo muito mais ancorado na realidade que o atual “economias emergentes”. É nossa convicção que, apesar dos pesares, que foram muitos, aquele foi um período de afirmação regional e de construção de políticas com um grau de autonomia superior a qualquer outro período de sua história.

A partir dos anos 80, esse quadro se reverte, e a região passa a ver-se enredada em uma fase de sucessivas crises, que resultaram em duas décadas perdidas na estagnação primeiro e na regressão posterior. Evidentemente, as raízes da reversão foram plantadas no período anterior, mas a crise da dívida externa, a globalização financeira e as mudanças provocadas pelo novo paradigma tecnológico, fenômenos associados entre si, como se viu, constituem seus aspectos essenciais. Quanto aos “fatores internos”, articulados aos interesses externos, como se viu no capítulo anterior (II.2), conseguiram se estruturar de modo a alterar a regra do jogo, ao contrário das chamadas economias de industrialização recente da Ásia, que têm conseguido de algum modo resistir e controlar, por força de seus arranjos políticos e sociais internos, a avalanche de determinações (neo)liberalizantes que vêm do centro capitalista mundial; e que não se esqueça,

pela via dupla da “mão livre” do mercado e do “pulso firme” do império e dos organismos internacionais que controla.

A globalização foi perversa para a América Latina: a renda concentrou-se ainda mais; não houve praticamente crescimento econômico; as condições da vida social se embruteceram; o Estado foi desaparelhado; e nas suas relações externas debate-se em crônicas crises cíclicas. Tendo seguido seus cânones e exercitado seus “fundamentos”, a maioria dos países da América Latina tem marchado para a miséria, e todos, sem exceção, têm se tornado mais desiguais, o que, já apontavam os textos sobre a região que discutimos no capítulo anterior, foi o veículo para a insuperação. Os resultados da adesão aos “fundamentos” do Consenso de Washington têm sido desastrosos, a ponto de interlocutores e funcionários, que outrora defenderam aquela política, em nome das instituições internacionais responsáveis pelos “bastões e cenouras”, serem hoje críticos de seus resultados e proponentes de correções de rumos, alguns em nome do consenso, outros contra elei. Nesta seção vamos examinar alguns aspectos da globalização que examinamos nas seções anteriores e como repercutiram na periferia capitalista e na América Latina, em particular.

III.3.1 Periferia e centro no processo de globalização

Afirmou-se anteriormente que o processo de globalização esteve associado ao aprofundamento sem precedentes das desigualdades: entre pessoas, países e empresas. Foi, paralelamente, um período de enormes conquistas científicas e tecnológicas, não somente na esfera da produção mas também no avanço do conhecimento em um número enorme de áreas – comunicações, informação, biotecnologia, materiais, ciências médicas, formas de produzir e,

voilà, bens de consumo. O conceito schumpeteriano de “destruição criadora” talvez nunca tenha

sido tão adequado, uma vez que a velocidade das mudanças espaçou as distâncias dos que não conseguiram acompanhar a evolução no mesmo ritmo. Entretanto, a crise prolongada da periferia capitalista, onde a ampliação das heterogeneidades foi mais profunda e ameaçadora, nos leva a perguntar se não foi este, para ela, um período de “criação destrutiva”ii, em que, mais que um jogo de palavras, pretende-se enfatizar que os aspectos mais perversos do capitalismo, particularmente a concentração econômica e a exclusão social têm superado em muitas realidades seus aspectos “progressivos” (Mazzuchelli, 1985) como o progresso técnico e o efeito riqueza.

i

Nota da OIT, Cepal, Stiglitz... pelas reformas no consenso.

ii

Entendemos que o processo de globalização representou uma re-hierarquização no concerto das nações que aprofundou a dependência da maioria dos países periféricosi. Com isso queremos dizer que alguns dos elementos centrais da análise de R. Prebisch e da teoria da dependência, apresentados anteriormenteii devem ser recolocados no contexto das mudanças ocorridas, em particular nas duas últimas décadas. Comecemos por relembrar uma crítica de vários autores ao significado atribuído à globalização (Chesnais, 1995 e 1998; Batista Jr., 2000; Carneiro, 1999; Lastres, 1997; Coutinho, 1996; Fiori, 1995, 1997 e 1999; Tavares, 1997, por exemplo). A globalização está longe de ser “global”. Na verdade, esteve largamente concentrada nos países da chamada Tríadeiii. A recuperação dos países atrasados para os mercados financeiros como foco de aplicações e investimentos verificou-se apenas em meados da década de 90, quando alguns dos países periféricos se tornam “mercados emergentes”. Note-se que, sinal dos tempos de dominação ideológica do neoliberalismo, são antes os mercados que os países que “emergem”, numa criação semântico-conceitual que se difunde rapidamente absorvida pelos “fazedores de opinião” e propagada pela mídia.

O período da globalização significou, na verdade, a marginalização de boa parte dos países do globo que “submergiram” em estagnação, atraso relativo e, em muitos casos, de regressão econômica e social, como em muitos países africanos. Poucos passaram por esse período sem mergulhar nessa condição, exceções, vale lembrar, constituídas por países que conseguiram manter um maior grau de “autonomia”iv, como a China, a Coréia do Sul e a Índia, diante do conjunto de pressões econômicas e políticas dos países centrais e do mercado financeiro internacional. Dados históricos trabalhados por A. Maddison (1995) sobre o PIB per

capita mostram que, para algumas áreas do globo, a “era da globalização” foi a pior do século

XX. A América Latina entre 1980 e 1992 viu sua renda per capita cair 0,6% ao ano; a Europa Oriental, 2,4%; e a África 0,8% (Quadro A.7).

i

Mais uma vez à exceção de países do leste asiático que conseguiram permanecer com maior grau de autonomia com relação às Finanças comandadas a partir dos Estados Unidos e promover estratégias estatais de desenvolvimento industrial, científico e tecnológico.

ii

Capítulo II, seção II.2

iii

Europa, Japão e Estados Unidos.

iv

Lembrando que o conceito de autonomia utilizado neste trabalho parte das noções apresentadas às notas de fim 28 do capítulo II, seção II.2, e 3 da seção III.1 do presente capítulo.

O baixo ritmo de crescimento foi generalizado, apenas parte da Ásia escapou do padrão em razão de sua estrutura e políticas de maior autonomia, mas a periferia capitalista foi particularmente atingida. Nos anos seguintes, embora apenas a África apresente queda dos níveis de renda per capita, a Ásia do Sudeste cresce em valores superiores à Europa e, principalmente, aos Estados Unidosi.

Quadro III.7. Crescimento do PIB per capita por regiões globais: 1820-1992 (a dólares Geary-Khamis de 1990)

O comércio exterior dessas regiões também apresentou comportamentos heterogêneos. As economias “em desenvolvimento”, ainda uma vez com exceção dos países asiáticos do Sudesteii, apresentam taxas de crescimento das importações muito mais expressivas que das exportações na década de 90, enquanto as economias desenvolvidas mostram um equilíbrio, ou uma pequena diferença a favor das exportações. Na América Latina, embora apresentasse números expressivos com respeito à elevação das exportações, o crescimento das importações os superou em muito (Quadro III.8). A tendência, portanto, foi de elevação da pressão sobre seus balanços de pagamentos, pressão esta advinda das transações comerciais. O comércio exterior mostra ainda uma vez que a “globalização” está longe de ser “global”.

i

A partir de dados que elaboramos a partir de ONU (1999): a renda per capita da África caiu 0,5% ao ano entre 1992 e 1999; os EUA cresceram 2,4% aa; a União Européia, 1,7%; a América Latina, 1,5%, e a Ásia do Sudeste, 5,1%.

ii

E das “economias de transição”, países ex-socialistas que sentiram, da mesma forma, o “peso” da globalização, mas que apresentam um comportamento mais anômalo e heterodoxo.

Mundo Europa América do Europa Europa América Asia e Africa

Ocidenta Norte do Sul Oriental Latina Oceania

1820-1870 0.6 1.0 1.4 0.6 0.7 0.2 0.1 0.1 1870-1900 1.2 1.3 1.7 1.2 0.8 1.2 0.5 0.1 1900-1913 1.5 1.4 2.1 0.8 1.6 2.3 0.7 1.1 1913-1929 1.0 1.1 1.5 1.3 0.2 1.5 0.9 0.9 1929-1950 0.8 0.7 1.6 -0.3 2.0 1.5 -0.5 1.1 1950-1960 2.7 4.1 1.6 3.4 3.5 2.2 3.6 1.9 1960-1970 3.0 3.7 2.9 6.1 3.5 2.4 4.1 2.4 1970-1980 1.1 1.7 1.3 1.9 -2.4 -0.6 3.6 -0.8 1980-1992 2.3 4.0 1.2 3.7 3.2 2.1 2.5 1.9

A abertura comercial promovida nos países periféricos, a partir das necessidades dos países centrais, longe de contribuir para sua maior participação como exportadores, significou antes um declínio dos seus termos de troca, fenômeno que R. Prebisch observara com respeito à América Latina no período pré-industrialização, e uma elevação da propensão a importar. M. Khor aponta que, “de acordo com dados das Nações Unidas, os termos de troca de commodities não-petróleo vis-à-vis produtos manufaturados caiu de 147 em 1980 para 100 em 1985, para 80 em 1990 e para 71 em 1992” (Khor, 2000: 10), provocando o seguinte comentário: “as perdas de renda derivadas da queda nos termos de troca constituiu provavelmente o maior mecanismo isolado de transferência de recursos reais do Sul para o Norte” (idem, ibidem: 11).

Quadro III.8. Crescimento do comércio exterior por região econômica na década de 90

No seu conjunto, entretanto, os mecanismos de transferência de recursos financeiros foram ainda mais perversos. Os países periféricos que têm escapado a esse retorno parcial à divisão de trabalho internacional nos anos anteriores à Segunda Guerra Mundial, são aqueles que evoluíram em sua capacidade endógena de gerar as condições financeiras mais adequadas para impulsionar o desenvolvimento industrial escalando na produção de setores mais nobres quanto à tecnologia e à posição na estrutura industrial como é o caso de alguns países do Leste Asiático.

Regiões 1991-1999 1991-1995 1995-1999

(%aa) (%aa) (%aa)

Exportações Mundo 5.5 8.3 5.3 Economias desenvolvidas 4.8 7.1 5.2 Economias em transição 6.4 8.4 8.5 Países em desenvolvimento 7.2 11.4 5.5 América Latina 8.4 10.6 8.6 África 0.6 0.5 3.0 Ásia Ocidental -0.3 3.0 -1.1 Sudeste Asiático 8.5 15.1 4.6 China 12.8 19.1 8.7 Importações Mundo 5.4 8.0 5.3 Economias desenvolvidas 4.6 5.8 5.9 Economias em transição 5.9 5.9 10.9 Países em desenvolvimento 7.9 14.0 4.5 América Latina 12.2 16.3 8.2 África 4.2 5.7 6.0 Ásia Ocidental 6.9 8.0 8.8 Sudeste Asiático 7.1 15.7 2.2 China 12.3 19.3 5.5

Por outra parte, no novo ambiente competitivo, o acesso a tecnologias modernas, geradas ainda no contexto dos países avançados, por parte dos países mais atrasados, tornou-se mais difícil por várias razões. Em primeiro lugar, por causa da própria crise econômica dos anos 80, gerada em boa parte pelas crescentes massas de recursos que vazavam tanto para o exterior em nome da dívida externa, como do setor público em nome da dívida pública, uma vez que o Estado se constituía, nesses países, com exceção, em parte, dos países de industrialização recente do Sudeste Asiáticoi, no grande responsável pelos gastos em desenvolvimento científico e tecnológicoii.

Em segundo lugar, ao contrário do que avaliaram Perez e Soete (1988), como se viu anteriormenteiii, nos períodos de aceleração do progresso tecnológico, as “janelas de oportunidade”, via de regra, não se abrem para os países mais atrasados. Ao contrário, as empresas pertencentes aos países mais desenvolvidos, cujos sistemas nacionais de inovação estão mais bem constituídos e gozam de mais recursos, apresentam melhores condições para o aproveitamento das oportunidades abertas ao desenvolvimento tecnológico, uma vez que possuem o que G. Dosi chamou de um “conjunto estruturado de externalidades”, ou seja, “experiências e qualificações incorporadas às pessoas, organizações, capacitações e ‘memórias’ que fluem de uma para outra atividade econômica” (Dosi, 1990: 133). Como exceções importantes, de modo geral, os países periféricos de industrialização tardia progrediram, estreitando as distâncias tecnológicas ao operar, como observou J. Katz, “em setores industriais em que a fronteira tecnológica não havia experimentado saltos muito dramáticos [...] permitindo assim uma redução gradual do hiato relativo que os separava dos padrões técnicos internacionais” (Katz, 1984: 130-131).

Em terceiro lugar, o novo ambiente competitivo no plano global ficou mais complexo e difícil, tornando mecanismos que possibilitavam a geração – endógena aos países mais atrasados

i

A que muitos autores denominam de “novas economias industriais”, ora incluindo o Brasil, o México e outros países que nos anos 80 e 90 deixaram de crescer, ora excluindo-os, para deixar apenas países como Coréia do Sul, Taiwan, Cingapura e Hong Kong (Ernst, 1992).

ii

Ainda que na maioria desses países, com exceção ainda uma vez dos NEIs do Sudeste Asiático, a distância entre seus sistemas nacionais de ciência e tecnologia e as empresas privadas fosse grande. Não se pode esquecer, entretanto, do papel das empresas estatais no desenvolvimento tecnológico na esfera produtiva, particularmente nos maiores países da América Latina: México, Argentina e Brasil. Ver a este respeito Katz (2000) e no Brasil, Erber & Amaral (1995).

iii

– de desenvolvimento tecnológico de processos já dominados em processos conhecidos como “engenharia reversa”, imitação, cópia, etc. Há várias razões para isso: a variedade crescente de barreiras regulatórias (patentes, por exemplo) e as pressões para seu atendimento; a importância maior dos elementos intangíveis e dos investimentos associados à sua criação que dependem de sistemas nacionais propícios e de grandes e permanentes dispêndios das empresas; os custos e riscos crescentes associados à inovação que requerem maior mobilização de recursos, por mais tempo e com maiores riscos; a complexidade crescente da tecnologia que requer combinações de diversos elementos dentro e fora das empresas para o domínio dos conhecimentos genéricos e tácitos; e, por fim, o acirramento da concorrência em razão da rapidez com que avança a oligopolização dos mercados no plano mundial, com toda sorte de acordos, redes, fusões e aquisições entre empresas visando a adquirir controle dos mercados e ampliação das barreiras à entrada. Esses mecanismos, de fato, conduzem a uma “privatização crescente dos fluxos internacionais de tecnologia”, como afirma D. Ernst (1992: 99).

Por fim, as estratégias quanto às atividades de pesquisa e desenvolvimento das empresas multinacionais conduzem à renovação da exclusão, senão a redução do papel da periferia nessas atividades. As EMNs, como se viu na seção anterior, caminharam velozmente na direção de internacionalizar, dentro da Tríade, as atividades de C&T, embora mantendo seus vínculos com os países de origem. Desse processo fortemente interativo com os sistemas de inovação dos países, entretanto, a periferia ficou ausente. As filiais da EMNs se limitam a alimentar suas sedes com conhecimentos adquiridos na periferia e realizar atividades de adequação de produtos, aprendizado dos novos produtos e processos e manutenção de padrões de fabricação e qualidade que envolvem nível restrito de conhecimento e qualificação. Reserva-se, assim, a capacitação para inovar, em sentido mais restrito, aos países centrais. Na periferia, resta principalmente o desenvolvimento da capacitação para fabricar.

Assim conclui um relatório da OCDE sobre as entre tecnologia e economia no âmbito das diferentes possibilidades dos países:

[...] todos os indicadores mostram que as transferências de tecnologia para os países em desenvolvimento foram sensivelmente reduzidos [...] e que o ambiente econômico é claramente menos propício ao desenvolvimento que anteriormente, enquanto as estratégias de crescimento de exportações para os principais mercados da OCDE parecem mais e mais problemáticas. Os países em vias de desenvolvimento sofrem hoje uma deterioração significativa de sua capacidade de utilizar a mudança tecnológica para sua modernização. Em razão dos recursos e qualificações

exigidos pelas novas tecnologias, o fosso que separa as nações ricas e pobres corre o risco de se agravar [grifo nosso]. (OCDE, 1992: 287).

IV. BRASIL: DEPENDÊNCIA TECNOLÓGICA NA “ERA DA