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II. PROGRESSO TÉCNICO NA PERIFERIA CAPITALISTA: DEPENDÊNCIA TECNOLÓGICA NA INDUSTRIALIZAÇÃO

II.3. Economia e Tecnologia: algumas determinações

II.3.1. Concorrência das empresas e inovação tecnológica

A visão dos neo-schumpeterianos sobre a inovação é herdeira de duas grandes áreas da teoria econômica. A primeira vem de J. Schumpeter e sua concepção do desenvolvimento econômico como um processo de “destruição criadora” das empresas cuja rota tem sido traduzida como uma linha evolutiva com semelhanças à teoria biológica da evolução41. A segunda vem das teorias sobre as estruturas de mercado.

Se J. Schumpeter colocava suas lentes no processos mais profundos das transformações econômicas e sociais geradas pela inovação, na literatura neo-schumpeteriana não é esse seu ângulo principal. Da mesma forma, enquanto J. Schumpeter destacava as inovações originais e mais transformadoras, seus seguidores preocupam-se também com os pequenos acréscimos que ocorrem em sucessão ao longo do tempo e são paulatinamente introduzidos nas linhas de produção, seja da empresa originária, seja das empresas para onde a inovação se difundiu. Assim, para estes, a inovação é um processo persistente e contínuo ao longo do tempo, do qual participa todo o conjunto das empresas e não somente aquela que foi a sua pioneira. É esse o sentido evolutivo, com analogias no campo da biologia, que J. Schumpeter havia atribuído ao capitalismo42. Os autores posteriores irão construir uma série de conceitos que procuram categorizar e classificar os vários passos, etapas e características desse processo que se origina na busca de vantagens por parte das empresas nas suas disputas competitivas no mercado.

De acordo com R. Nelson e S. Winter, “o primeiro grande compromisso da teoria evolucionista é com o enfoque ‘comportamental’ das empresas individuais” (Nelson & Winter, 1990: 8). Com isso, os autores estabelecem sua filiação às teorias microeconômicas que colocam na estratégia das empresas o centro das decisões competitivas e sua preocupação com a caracterização da atuação da empresa no longo prazo, assim como com suas transformações internas e externas. A racionalidade que move as empresas não é aquela descrita pela teoria neoclássica, em que os agentes individuais apenas expressam a otimização de uma função- objetivo qualquer e, portanto, diante dos mesmos dados (ou “restrições”), sempre adotariam as mesmas ações43, ou seja, uma racionalidade puramente instrumental de ajuste de meios a fins

predeterminados. A racionalidade da firma neo-schumpeteriana é “delimitada” e estabelecida nos procedimentos (procedural), em concordância com H. Simoni.

Essa firma se move ainda para a “valorização do valor”, mas a busca do crescimento máximo do capital empregado não se define no curto prazo, nem as variáveis têm a clareza das funções-objetivo acima mencionadas. A meta da valorização é estabelecida a partir de procedimentos heterogêneos pelas empresas, diante das incertezas do mundo econômico e dos comportamentos idiossincráticos das empresas. Esses comportamentos vão sendo construídos nas organizações e refletem experiências específicas que não desaparecem no momento seguinte, permanecendo como memória, atitudes, rotinas, convenções e práticas exercidas naquele núcleo humano44. A lógica da empresa, definida pela necessidade “férrea” de competir (K. Marx), encontra formas de expressão que não são uniformes e podem sofrer mudanças ao longo do tempo. A empresa tem história e geografia, ou seja, heranças e local, que acabam conformando seus padrões específicos de exercício da concorrência e de busca da valorização de seu capital. Tempo e espaço não são estranhos à firma, como no mundo neoclássico. O capitalismo, com sua “lógica” de movimento e suas leis imanentes, guarda nas suas empresas, que encarnam essa lógica, diferenciações, e, nesse jogo, imutável seria apenas a pulsão de ampliar seu poder diante dos concorrentes.

Essa empresa já não habita o mundo idílico da concorrência livre e perfeita, mas disputa espaço em mercados caracterizados, em grande parte, por empresas com poder sobre esses mercados. A concorrência é entendida como uma disputa entre os vários capitais por espaços de valorização desses capitais, que irão ser exercidos nos diversos mercados específicos e não por uma determinada característica do mercado, como, por exemplo, o número de empresas. Nessa disputa, os concorrentes apelam para várias estratégias que dependem do setor a que pertencem, da estrutura de seus mercados e da sua própria estrutura, em sua busca por lucros extraordináriosii. Dependem também do ambiente que cerca a empresa, daquilo que os evolucionistas chamam de seu “ambiente de seleção”. Desse ambiente fazem parte as distintas esferas da vida humana que se refletem tanto no mercado de atuação da empresa como na sua própria configuração interna, seus sistemas e atitudes, o que, uma vez que não são totalmente

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H. Simon distingue racionalidade substantiva, ou racionalidade instrumental, que ajusta meios a fins, de racionalidade no procedimento, que depende do processo que a gerou como ato deliberado e indutor (Simon, 1978).

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independentes, traz problemas à analogia da biologia evolucionista45. Importa, entretanto, é demarcar que as empresas exercem suas opções tendo em vista um grande conjunto de referências e variáveis com que interagem dinamicamente.

Trata-se, assim, de firmas que tomam decisões a partir de um conjunto complexo, múltiplo e variado de interações (Lundvall, 1992a), conjunto que abriga e agrega empresas e não- empresas, mercados e não-mercados, aspectos privados e públicos, instituições e subjetividades. São unidades com características estruturais e comportamentais próprias, aptidões diferenciadas e experiências várias, e que, ademais, alteram-se ao longo do tempo. Assim, as firmas são modeladas como tendo a qualquer tempo capacitações e regras de decisão características. Ao longo do tempo essas capacitações e regras são modificadas em conseqüência tanto de esforços deliberados para a resolução de problemas como de eventos aleatórios (Dosi, 1984).

Esse contexto em que a empresa atua implica que a inovação tenha um papel de maior destaque entre seus instrumentos de competição. Isto é tanto mais importante para as últimas décadas, quando houve uma aceleração nas mudanças organizacionais, produtivas e tecnológicas das empresas, em grande parte devido aos progressos na tecnologia da informação. A inovação, já alertava J. Schumpeter, é observada não apenas numa, mas nas várias áreas da atuação das empresas. O progresso das técnicas de produção e os novos produtos são possivelmente os mais importantes, mas não são os únicos aspectos em que as empresas inovam: as inovações na administração, na organização do trabalho e, mesmo, na comercialização estão muitas vezes interligadas às inovações tecnológicas stricto sensu, embora não necessariamente. Como afirma S. Muniz, “as inovações organizacionais devem ser vistas como distintas daquelas tecnológicas”i, embora possa haver (e freqüentemente ocorre) retroalimentação, mútuo suporte e integração46.

Os desconhecimentos e as incertezas com que as empresas convivem nas suas decisões são ainda maiores quando se trata das inovações tecnológicas. R. Nelson e S. Winter argumentam que as empresas, na presença daqueles elementos, organizam suas decisões em torno de padrões de comportamento predizíveis e regulares, ou seja, seguem o que chamaram de suas “rotinas”. Com isso querem reafirmar o sentido de que as práticas das empresas, adquiridas e reproduzidas

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Muniz (2000: 62). A autora esclarece, entretanto, que, “enquanto a literatura evolucionista vê as novas formas organizacionais como decorrentes do novo paradigma técnico-econômico, os franceses [Coriat, 1990, por exemplo] costumam inverter a relação entre tecnologia e formas organizacionais”. Idem, ibidem.

em sua vida, constituem processos internos pelos quais se procura reduzir os graus de desconhecimento e incerteza presentes47. As rotinas organizacionais constituem as “heurísticas de ‘como se fazem as coisas’ ou de ‘como melhorá-las’”i, sobre o que é mais regular e predizível na empresa. Essas rotinas são compostas, em grande parte, pelas práticas e pelos hábitos (com conteúdos muitas vezes idiossincráticos) das empresas que têm constituído sua história constitutiva, onde se acumularam conhecimentos, aprendizados, especializações, repetições, culturas, formas organizacionais e interações com o ambiente, com o mercado, com os fornecedores, etc.

O que se pretende chamar a atenção aqui é para as especificidades das empresas, especificidades estas que guardam estreita relação com os seus diversos ambientes de interação: fornecedores, mercados, setores e nações. Assim, suas “capacitações” e “regras de decisão”, que resultam dessas especificidades, dão sustentação às suas estratégias, que, em última instância, são suas formas de cumprir seu “destino” como unidades de capital, ou seja, como unidades de “valorização de valor” num sistema econômico que se constitui na exigência desse comportamento por parte das empresas, sob pena não somente de negar sua “natureza”, mas de perecimento.

Ao introduzir inovações tecnológicas, a empresa, de certo modo, apenas repercute uma lei capitalista intrínseca, que se impõe “com férrea necessidade”. Sua meta é a obtenção de lucros extraordinários. O grau de incerteza nesse procedimento é ainda maior porque a ciência e a tecnologia, como forma de conhecimento, têm características especiais diante dos demais elementos da produção, que se transportam para o ambiente econômico. De fato, G. Dosi crê que se introduz um outro tipo de incerteza que chama de forte:

[...] deixe-nos distinguir entre (a) a noção de incerteza familiar à análise econômica, definida em termos de informação imperfeita sobre a ocorrência de uma lista conhecida de eventos e (b) o que chamamos de incerteza forte em que a lista de eventos possíveis é desconhecida e um não sabe sequer as conseqüências de ações particulares para qualquer dado evento. Eu sugiro que, em geral, a busca inovativa é caracterizada pela incerteza forte. (Dosi, 1990: 121).

Mas por quê dessa especificidade?

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A tecnologia e, portanto, o desenvolvimento tecnológico envolvem questões muito próprias48. A tecnologia nutre-se tanto de conhecimentos gerados e transmitidos na complexa vida social como de conhecimentos específicos, próprios à empresa, que G. Dosi chama de “conhecimento tácito”49. Em outros termos, para as empresas, “a ‘solução’ de problemas tecnológicos envolve o uso de informações extraídas da experiência prévia e do conhecimento formalizado (por exemplo, das ciências naturais); entretanto, envolve, também, capacidades específicas e não-codificáveis [itálico do autor] da parte dos inventores” (Dosi, 1990: 113). E o faz por caminhos que levam em conta suas trajetórias anteriores, tanto porque a tecnologia, em seu desenvolvimento, estabelece um leque determinado de possibilidadesi como porque a empresa, dentro da área em que atua, apresenta comportamentos e organização próprios, característicos, que estabelecem as suas formas de resolução “natural” dos problemas.

A realização da inovação tecnológica como instrumento de concorrência pelas empresas está, portanto, sujeita a um grande número de fatores, o que amplia o grau de incerteza em que funcionam. As estratégias de concorrência, que são, na verdade, estratégias de expansão dinâmica das empresas, podem ser vistas como escolhas em “ambientes de seleção”, segundo a analogia evolucionista. Com o passar do tempo e a ampliação do enfoque analítico, o uso dessa analogia se torna mais precária, uma vez que sugere um distanciamento entre empresa e ambiente muito maior do que há de fato, ainda que a versão evolucionista escolhida na analogia seja a “lamarckiana” (Nelson & Winter, 1982: 5). Os “genes” não aprendem e, como afirma C. Freeman, há que se lembrar “da diferença fundamental entre evolução biológica e evolução social do homem, em que não apenas o ambiente natural, mas também o ambiente institucional está mudando rapidamente à medida que interage com a tecnologia” (Freeman, 1991: 212).

As inovações, do ponto de vista da empresa, estão articuladas à sua visão comercial, o que implica dimensões outras ao lado das questões mais especificamente técnicas da questão, embora dela se nutra. Se, por um lado, o mercado não determina por si só sua direção e intensidade, tampouco os avanços no conhecimento determinam a direção do progresso técnico. A interação entre esses dois aspectos é largamente indeterminada50 e depende da própria organização da

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O que é chamado na literatura como uma dependência de rotas já conhecidas (path dependency). O clássico exemplo invocado é o da disposição das letras no teclado das máquinas de escrever e que passaram para os computadores, chamado de teclado “qwerty”. Outros teclados foram criados, mais racionais em si mesmos, mas os usos e costumes dos usuários tornam qualquer mudança com relação à “trajetória” anterior impossível (David, 1985 e 1992).

empresa e de sua posição relativa no mercado, assim como das características tecnológicas, setoriais e nacionais de seu ambiente externo. As tentativas de organizar e classificar as inovações realizadas pelas empresas e os tipos de interação com seu(s) ambiente(s) externo(s) fizeram parte dos esforços de boa parte da literatura da economia da tecnologia.

C. Freeman procurou organizar os tipos de inovações de acordo com o grau de mudança que traziam ao ambiente econômico. Sua “taxonomia das inovações” estabelece quatro níveis: (1) inovações incrementais; (2) inovações radicais; (3) mudanças no sistema tecnológico; e (4) mudanças no paradigma técnico-econômico (Freeman, 1988: 46)i. Esses quatro tipos correspondem a níveis de envolvimento que vão da empresa individual, no primeiro caso, ao sistema econômico como um todo, no último. Correspondem também à profundidade das mudanças em termos tecnológicos e econômicos. As características associadas a cada tipo não comportam uma definição exata, mas compõem o que aquela literatura tem chamado de “fatos estilizados” (Dosi, 1984), que foram largamente baseados em análises empíricas das inovações observadas.

A introdução das inovações nas empresas para cada um dos tipos mencionados exige mudanças, tanto maiores quanto mais profunda ela for, na organização e administração das empresas. No caso do quarto nível, os efeitos são tão intensos que afetam todo o conjunto da economia: o balanço entre os setores econômicos; a escala de produção; as formas organizacionais e administrativas das empresas; a relação com fornecedores, clientes, instituições de ciência e tecnologia, etc. Há alguma correspondência conceitual tanto com a mudança no “regime de acumulação” dos economistas regulacionistasii como com a noção de “paradigma tecnológico”iii, inspirado na conceituação de paradigmas de T. Kuhn (1987). Este último conceito

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Anteriormente, em 1984, C. Freeman havia gerado uma “taxonomia” de apenas três tipos: (1) inovações incrementais; (2) inovações radicais; (3) revoluções tecnológicas. Cf. Freeman (1990: 490).

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R. Boyer assim apresenta as “regularidades tecnológicas, sociais e econômicas” associadas a um “regime de acumulação”: “um padrão de organização produtiva interno às empreas, definindo a forma com que os assalariados trabalham com os meios de produção; um horizonte de tempo para as decisões de formação de capital; a

distribuição dos rendimentos entre salários, lucros e impostos, que reproduzem as várias classes sociais ou grupos;

um volume e composição de demanda efetiva que valida as tendências da capacidade produtiva; e um conjunto particular de relações entre os modos capitalistas e não-capitalistas de produção” (Boyer, 1988: 70-71).

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“Um ‘paradigma tecnológico’ define contextualmente as necessidades capazes de serem realizadas, os princípios científicos utilizados para isso, a tecnologia material para ser usada. Em outras palavras, um paradigma tecnológico pode ser definido como um ‘padrão’ de solução de problemas tecnoeconômicos selecionados por princípios altamente seletivos derivados das ciências, naturais, ao lado de regras específicas que buscam adquirir

terá grande importância para analisar as transformações decorrentes dos desenvolvimentos na tecnologia de informação e comunicação.

Por sua vez, o conceito de inovação já não permite a mesma rigidez conceitual que J. Schumpeter empregara ao distingui-la de invenção e de difusão. Na verdade, a difusão tecnológica incorpora elementos inovativos importantes, uma vez que boa parte das inovações incrementais se realiza à medida que tecnologias se difundem pelas outras empresas e, até mesmo, quando ocorre a expansão da própria empresa inovadora original em ambientes novos e que requerem a realização de adaptações e adequações, como é o caso das empresas que se deslocam para outros países. Essas adequações levam em conta não somente questões de natureza estritamente técnica como também questões institucionais, gerenciais e administrativas. Num plano mais geral, o das nações, evoluiu-se para a noção de sistemas nacionais de inovação procurando dar conta da heterogeneidade de ambientes a que as empresas estão submetidas.

O reconhecimento das enormes diferenças entre as empresas, que caracteriza a escola neo- schumpeteriana em contraste com a dos neoclássicos, com sua “firma representativa”, afirma-se, portanto, não somente como forma de atuação no mercado como também como estrutura e atitude ante o desenvolvimento tecnológico. Essas diferenças expressam-se em várias frentes. Há assimetrias com relação ao tamanho das empresas, ao setor de que fazem parte, às suas formas de organização do trabalho, estágio de evolução da tecnologia, à sua cultura administrativa, suas estratégias, às cadeias de relações para frente e para trási, e à sua inserção geográfica, tanto regional como nacional. Há também diferentes classificações com relação à própria inovação, como, por exemplo, o setor de produção, seu custo e grau de originalidade, tipo de tecnologia e

locus da tecnologiaii. Dados os limites deste trabalho, é preciso que nos concentremos em dois elementos: as características setoriais e as especificidades nacionais.