• Nenhum resultado encontrado

ECONÔMICA, MUDANÇAS NO PADRÃO TECNOLÓGICO E OS PAÍSES PERIFÉRICOS

III.1 O processo de globalização econômica: aspectos gerais

III.1.3 Globalização financeira e hegemonia norte-americana

Os processos discutidos na seção anterior se verificaram a par da liberalização progressiva da regulação das atividades econômicas entre os países de natureza comercial, financeira ou tecnológica, à medida que regras mais liberais eram estabelecidas para o fluxo dos capitais. Esse processo não se verificou de forma espontânea, como se respondesse apenas às necessidades dos mercados e dos capitais. Houve forte pressão política exercida tanto pelos organismos internacionais como o Banco Mundial e o FMI, em que a presença norte-americana é dominante, como pelos mecanismos de pressão exercidos pela principal potência do mundo. A liberalização dos mercados se deu respondendo a pressões de mercado e do poder da principal potência mundial

O processo de liberalização das relações econômicas teve sua origem na década de 70 quando o mundo já vivia uma crise no sistema financeiro internacional. O sistema de regulação internacional, baseado nas regras de Bretton Woods e na hegemonia americana, esgarçara-se63. Para tanto, contribuíram a expansão das empresas americanas pelo mundo, o crescimento produtivo e tecnológico dos países que haviam sofrido os percalços ao final da Segunda Guerra, o crescimento dos mercados de eurodólares e as crises do petróleo, primeiro de 1973 e depois de 1979. Nessa trajetória, o fim do padrão-dólar em 1971, a introdução de câmbios flutuantes em 1973 e outros acontecimentos no plano político internacional (como a Guerra do Vietnã) levaram a uma queda na hegemonia americana e de sua moeda no plano internacional, queda essa que se manifestava nos persistentes e crescentes déficits nas contas públicas e nas contas externas, na queda na competitividade de seus produtos, na desvalorização de sua moeda, na perda de espaço político na diplomacia mundial, inclusive na determinação dos rumos do sistema financeiro internacional.

O enfraquecimento da hegemonia americana era amplamente debatido, seja em relação à sua moeda e a crescente importância de outras moedas, particularmente o yen e o marco, seja em termos do atraso em sua indústria, que agora competia com aquelas de vários outros países do

mundo (Belluzzo, 1999). Entretanto, indo contra a corrente em artigo escrito em 1985, M. C. Tavares antecipava a “retomada da hegemonia norte-americana”, centrada, sobretudo, no que chamou então de “a diplomacia do dólar forte””. Tratava-se de uma política desenhada para reafirmar a potência norte-americana num sentido amplo64 – militar, diplomático, político e econômico65 – e que veio a pavimentar o percurso do processo de globalização nas décadas que se seguiram.

A política de juros altos iniciada em 1979 atraiu capitais do mundo inteiro para os títulos americanos, levando à valorização do dólar e a sua reafirmação como moeda de reserva de valor, função que vinha sendo erodida com o “policentrismo financeiro”i. A reafirmação do dólar como moeda de curso internacional traz um novo ritmo à globalização financeira, ao mesmo tempo que traduz e impulsiona a supremacia financeira na direção dos rumos da economia mundial, tendo à frente os interesses das instituições financeiras norte-americanas. Essas medidas estão articuladas às crescentes liberalização e desregulação dos mercados de capitais no plano mundial e à adoção por parte da grande maioria dos países de políticas contracionistas que visavam a recuperar suas condições de pagamentos internacionais. Na base dessa grande operação política, econômica e financeira estavam os grandes déficits “gêmeos” norte-americanos – os crescentes déficits das contas públicas e de sua balança comercial – operação cujos resultados foram obtidos em razão dos Estados Unidos serem a grande e única potência militar, política e econômica capaz de assinalar sua hegemonia no plano mundial. A liberalização dos mercados de capitais e o regime de taxas flutuantes de câmbio estabelecem junto com o dólar valorizado e moeda de reserva o tripé que caracteriza a “essência da globalização” (Carneiro, 1999: 65).

Assim, é preciso deixar claro que o processo de globalização financeira não resulta apenas do ”livre” jogo das forças do mercado, mas também da atuação da potência dominante que utiliza seus instrumentos de poder econômico, político e militar para impor um padrão de relações que é favorável aos seus interesses dominantes. J. L. Fiori, analisando o processo de passagem de uma situação para outra – ou seja, das “finanças reguladas” para as “finanças de mercado”, de um padrão de regulação “fordista” para um padrão “de mercado”, ou do “consenso keynesiano” para o paradigma neoliberal – reafirma com clareza o sentido político dessas mudanças. Para ele, os Estados Unidos, após décadas de “hegemonia complacente” e a crise deste padrão na década de

70, à medida que era desafiado pela “tríplice indisciplina do capital, do trabalho e da periferia”, decide estabelecer sua política em bases “imperiais”, distanciando-se da necessidade de gerar consensos, que são a base do conceito de hegemoniai. Assim,

[...] as relações entre o poder político e o poder do dinheiro constituem-se no núcleo gerador da energia que move a globalização [...e...] isto não se restringe ao reconhecimento de que foram políticas as decisões dos estados nacionais que aplainaram o caminho da riqueza financeira. O mais importante e decisivo é o reconhecimento do papel cumprido pela competição entre os estados nos processos simultâneos de centralização do poder e do capital. (Fiori, 1997: 92).

A supremacia das finanças internacionalizadasii, além de significar a reafirmação do econômico sobre o político no comando social, responde a interesses e necessidades da nação hegemônica que reafirma uma hierarquia de nações. Da mesma forma que F. G. Listiii apontava a ideologia livre-cambista de sua época como resposta aos interesses da nação dominante da época, a Inglaterra, o neoliberalismo responde aos interesses da nação norte-americana, a nação dominante dos dias de hoje. É preciso, desse modo, sublinhar que, na natureza do domínio ideológico neoliberal e por detrás de sua retórica e modelos de mercado “livre”, ocultam-se desígnios e interesses nacionais específicos. Seriam, em particular, a maioria das nações da periferia capitalista a sentir o peso maior dessa subjugação, pela menor capacidade de resistência, menor poder econômico e maior nível de endividamento. As repercussões das novas formas de dominação internacional seriam dramáticas: perda de autonomia, destruição de instituições, estagnação econômica, exclusão social e maior dependência.

Os quadros do regime de regulação anterior a 80, desenhados em Bretton Woods, ruíram sob a elevação das taxas de juros no mercado financeiro americano e depois sob a direção política e ideológica da revolução conservadora de M. Tatcher e R. Reagan, que ajudaram a criar os climas cultural, político e cultural propícios às mudanças liberalizantes dos mercados

i

E completa: “Por isto a ordem política e econômica emergente tem pouco ou nada a ver com o conceito de hegemonia e parece muito mais próxima da idéia do “imperial system...” (Fiori, 1997: 109).

ii

Com o que discordamos de Hirst e Thompson, que afirmam que a expansão dos fluxos financeiros de curto prazo “fundamentalmente redistribuem o êxito e o fracasso em torno do sistema, e acrescentam pouco à capacidade estrutural das economias de gerarem crescimento agregado” (Hirst e Thompson, 1998: 88).

iii

financeirosi. Reafirmada sua hegemonia econômica, o “modelo anglo-saxão”66 comandou o sentido e a direção das reformas internas dos países em direção a políticas econômicas mais ortodoxas, à liberalização e desregulamentação dos mercados, à perda de autonomia dos estados nacionais e à ampliação extrema dos graus de liberdade para a movimentação dos capitais, processo a que L. G. Belluzzo chamou de “exportação do modelo desregulado” (Belluzzo, 1999: 107). Passa-se, ainda, de um período favorável aos devedores para um “sistema de ditadura dos credores”(Chesnais, 1999: 27), em que os juros altos afogam vários dos credores no mundo, em particular nos países endividados da periferia capitalista.

Todas essas mudanças alteraram profundamente o cenário internacional nos mercados em que se transacionam dinheiro e riquezas, na estratégia das empresas, na situação financeira dos estados e na capacidade das nações em estabelecer políticas autônomas. Também acentuaram as desigualdades entre as nações, entre os indivíduos de uma mesma sociedade, e entre as empresas67. E, no que respeita ao tema central deste trabalho, ampliam o hiato dos níveis de desenvolvimento entre a periferia e o centro capitalista e a dependência em todos os sentidos: econômico, político, cultural e tecnológico.

A evolução do sistema financeiro durante as décadas de 80 e 90 passa por turbulências e crises enormes, sem, entretanto, conter o sentido das mudanças que foi acima caracterizado em suas linhas gerais68. Nesse período foram criados instrumentos diversos visando a estabelecer mecanismos de redução de riscos e de arbitragem entre as diversas moedas e suas flutuantes taxas de conversão, levando em conta as taxas de juros praticadas nos diversos mercados nacionais e seus movimentos. Trata-se de um período pródigo em inovações financeiras criadas, sobretudo, para proteção diante da grande volatilidade dos preços dos ativos.

Essa grande volatilidade é intrínseca ao funcionamento do sistema financeiro, na medida em que a atribuição de valor aos ativos negociados obedece a critérios de avaliação especulativos e muito dependentes dos chamados “intangíveis”ii, cuja determinação de valor não encontra comparabilidade com supostos custos de reprodução ou valor presente de rendimentos futuros(Carneiro, 1999: 58). Para essas inovações, a contribuição dos desenvolvimentos tecnológicos ocorridos na área da informática e das telecomunicações foi decisiva. Alguns

i

Ver, por exemplo, Belluzzo (1995) e Chesnais (1999).

ii

chegam, inclusive, a atribuir a própria globalização financeira a estas inovações, o que, na verdade, inverte o sentido da determinação, sem que, ao dizer isso, se desconheça a importância que tais inovações tiveram na aceleração daquele processo69. Esses instrumentos, por seu turno, ao mesmo tempo em que repartem riscos no plano privado, aumentam os “riscos sistêmicos”, agravando o caráter intrinsecamente instável e volátil de um mercado de ativos que se baseia fartamente no “capital fictício”, volatilidade essa que oferece incertezas não somente ao próprio jogo econômico comandado pelas finanças, como, em particular, aos países mais periféricos, sob a forma de grande vulnerabilidade externa, como insiste R. Gonçalves (1999), a crises observadas regularmente ao longo da década de 90 – as crises mexicana, russa, asiática, argentina, etc.

Além da crescente instabilidade e riscos sistêmicos associados à financeirização das riquezas e da globalização sob o comando das finanças, esses processos têm tanto ampliado as desigualdades sociais e econômicas de forma generalizada, entre pessoas, empresas e países, como já se afirmou, quanto gerado maior assimetria na capacidade de condução das políticas nacionais. Em outras palavras, amplia-se a dependência dos países periféricos aos países centrais. As nações submetidas a um pesado jogo financeiro submetem-se a uma forte hierarquização que se trasveste sob o véu das regras supostamente livres do mercado financeiro desreguladoi. Como mostra R. Carneiro (1999), a hierarquia é, em larga medida, estabelecida pela categoria da moeda sob três situações: os Estados Unidos, pela força do dólar; os países com moedas conversíveis; e os países com moedas não-conversíveis. À medida que caminha da primeira zona para a última delas, as taxas de juros de referência crescem, uma vez que os riscos, em particular de conversibilidade no futuro, crescem. Isso importa dizer que há uma exação “rentista” quanto mais vulnerável e dependente o país for. Isso funciona, sobretudo, na periferia capitalista, como veremos mais abaixo, mas também nos países da OCDE.

Essa hierarquia funciona, da mesma forma, na capacidade que cada país terá para enfrentar as seguidas instabilidades, cujo ciclo torna-se mais curto e de maior amplitude com respeito à sua maior freqüência. Os países de moedas fortes e conversíveis têm maior capacidade de administrar políticas monetárias e fiscais. Enquanto isso os mais frágeis tornam-se reféns dos ciclos especulativos e têm sua autonomia reduzida na capacidade de tomada de decisões na

i

Liberdade que nos lembra a liberdade do trabalhador assalariado de que K. Marx (1978) tratou: livre para ter sua mão-de-obra explorada sob as regras do salário ou dormir debaixo da ponte.

defesa das moedas brasileiras. Os ataques especulativos são uma constante na última década, num suceder de instabilidades que tornam ainda mais vulneráveis não apenas o sistema financeiro global, mas, em particular, os países mais frágeis e atrasados. A dependência é exacerbada pela quase instantaneidade com que os mecanismos financeiros transmitem a qualquer crise, na medida em que os capitais “fogem para a qualidade”, ou seja, para os países de moeda forte, com custos imensos para os mais frágeis.

Não surpreende que essa hierarquia se manifeste nas taxas de crescimento registradas no decorrer da década de 90, que tanto foram as mais baixas desde o fim da Segunda Guerra, como seu ritmo seguiu a escala da riqueza e do poder, por assim dizer. Da mesma forma, a desigualdade se acentua não apenas em termos de países, mas em termos sociais, na medida em que o “rentismo” se estabelece. D. Plihon comenta que para as empresas, no novo ambiente de negócios em que a financeirização é dominante, funciona o que chama de “lógica acionária” (Plihon, 2000: 41 e 45), exercida, em particular, pelos chamados investidores institucionais. Nesse modo de funcionamento perdem poder tanto o dirigente produtivo como o assalariado70.

Em resumo, nas duas últimas décadas do século XX assiste-se, na economia mundial, a um processo duplamente condicionado. Por um lado, amplia-se o predomínio das formas financeiras da riqueza, formas que alcançam não somente as instituições financeiras per se, mas também as empresas produtivas que alteram suas estratégias, objetivos e posturas e, até mesmo, as próprias famílias, particularmente nos países centrais. Como diz H. Minsky (1975, apud Braga, 1993), “as finanças ditam o ritmo da economia”. Daí ser importante situar alguns de seus contornos antes de se prosseguir na análise das mudanças organizativas, produtivas e tecnológicas da indústria, temas mais próximos dos objetivos deste trabalho, o que se fará na seção seguinte.

Por outro lado, amplia-se a internacionalização dos processos econômicos comandados pela globalização financeira, com sua seqüência de políticas de desregulamentação dos mercados de capitais e liberalização dos fluxos de dinheiro, crédito e capital. Nesse processo, reafirma-se a hegemonia norte-americana que o comanda segundo seus interesses. A maior parte do mundo periférico submete-se a leis econômicas férreas que congelam suas iniciativas, roubam suas energias e a tornam mais dependentes do centro capitalista mundial.