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II. PROGRESSO TÉCNICO NA PERIFERIA CAPITALISTA: DEPENDÊNCIA TECNOLÓGICA NA INDUSTRIALIZAÇÃO

II.2 Tecnologia e dependência na América Latina

II.2.4 As teorias da dependência e o progresso técnico

As idéias da Cepal, ao início de suas funções como agência internacional, foram adquirindo novos contornos a partir de meados da década de 50, após sua criação em 1949 em que formulou suas primeiras concepções. As transformações, associadas aos desdobramentos do processo de desenvolvimento em curso, colocavam a necessidade de aprofundamento de alguns temas e a reconsideração de outros. A Cepal realizou alguns desses “exercícios”, no calor de sua atividade de agência propositora de caminhos ao setor público, de formuladora de políticas e treinamentos diversos e de debatedora de questões candentes. Mas foi no ressurgimento do debate sobre a dependência que as críticas, “do mesmo lado”, passaram a surgir33. Historicamente, ao final da década de 50 e princípios de 60, pelo menos duas questões obrigavam a uma redefinição ou, pelo menos, a que se repensassem algumas questões: a primeira delas diz respeito ao ingresso do capital estrangeiro no processo de desenvolvimento industrial; a segunda trata da questão distributiva, que traz novas forças sociais e políticas à medida que aquele processo avançava.

O próprio R. Prebisch escreveria um artigo em 1963, no qual procurava readequar suas idéias diante da realidade em transformação que via à sua frente. Passou a preocupar-se, então,

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com vários aspectos como a chamada “questão social” da concentração da renda, os “obstáculos ao desenvolvimento”, a “insuficiência dinâmica” do crescimento, a crise econômica, o “novo” capital estrangeiro, o papel do Estado e, o que nos interessa mais de perto, a questão do progresso tecnológico, entre outros aspectos abordados numa visão bastante integrativai.

O pensamento latino-americano sobre o desenvolvimento passaria, então, a considerar com mais ênfase a natureza de sua dependência em relação ao centro, dependência que passa pelos vários elementos constitutivos da sua própria sociedade. A problematização da dependência não constituía, na verdade, qualquer novidade nas discussões sobre o atraso. Tanto as idéias da Cepal como as da esquerda militante do Partido Comunista Brasileiro continham vários de seus elementos34. Entre os autores que mais influenciaram as discussões está F. H. Cardoso, que ao longo da década de 70 escreveu uma série numerosa de textos sobre a dependência, a partir de um livro originário escrito nos anos 60 com E. Falettoii. Essa discussão, no entanto, não ficou restrita apenas à América Latina. Outros autores vieram a estudar a evolução do sistema capitalista mundial sob o prisma da dependência, mas não serão objeto desta “recuperação selecionada” da teoria da dependência que estamos fazendo nesta seção35.

A “teoria da dependência” partia da constatação de que a estagnação da América Latina não seria uma conseqüência inelutável da continuidade das relações entre centro e periferia. Advertia também para a importância fundamental dos fatores de ordem interna, diante das relações externas. E, por fim, introduzia uma linha de interpretação que trazia para o primeiro plano as questões de natureza política e sociológica. Nesse enfoque, não havia necessariamente uma correlação entre dinâmica capitalista e exclusão social, nem tampouco entre dinâmica capitalista e dependência. Tudo, na verdade, dependeria do arranjo particular das forças internas, da articulação de seus interesses vis-à-vis os impulsos e restrições das relações externas36. Estavam envolvidas as relações de natureza comercial, financeiras e produtivas, a partir da nova situação gerada pela internalização das empresas transnacionais e pela evolução das transações financeiras e creditícias internacionais, tal como vêm a se expressar na economia e na política interna aos países, por seus grupos de interesse, expressões de classe e políticas. Noutros termos,

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Esse artigo constitui um de seus mais interessantes textos, pelo combate explícito a favor de uma política de desenvolvimento e da busca por introduzir questões sociais no âmbito de sua análise. Prebisch (1982c).

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“a dinâmica interna dos países dependentes [passa a ser] um aspecto particular [itálico do autor] da dinâmica mais geral do mundo capitalista”i (Cardoso, 1977: 126).

O esforço analítico deveria, assim, orientar-se para a análise das estruturas internas aos países periféricos que configuram um novo tipo de articulação com os interesses internacionais, numa etapa do capitalismo em que a produção se internacionalizava pela ação ativa das empresas transnacionalizadas. Os caminhos do desenvolvimento implicavam o reconhecimento desses liames, já não bastando a definição das forças nacionais a disputar antagonicamente com os interesses internacionais o espaço para a industrialização. A dependência expressa-se, dessa forma, nos vários domínios da vida interna dos países periféricos: econômico, financeiro, tecnológico, cultural e político.

A situação de subdesenvolvimento não implica, assim, um mero atraso de níveis de vida, mas uma intrincada teia de relações que as forças e classes sociais internas mantêm com interesses estabelecidos e reiterados pelos países centrais. Se não há novidade aqui quanto à dependência como fenômeno de atrelamento da periferia ao centro, há no sentido de que esse atrelamento se expressa no interior da situação periférica, articulado aos interesses que pareciam estar em oposição, ou seja, no interior da defesa da industrialização e das políticas a seu favor. Daí que a análise centrar-se-ia mais nos países em si, do que na região, porque aqueles apresentam composições sociais e interesses diferenciados. Em outros termos, tratar-se-ia de recuperar as contradições internas do capitalismo na sua experiência em países periféricos em situação de dependência.

Uma vez que as empresas multinacionais passam a se expandir nos países periféricos para atender ao seu mercado interno, cria-se uma situação “histórico-estrutural” diferente da que havia presidido as fases anteriores do processo de industrialização. Por uma parte, o capitalismo se internacionalizava, amparado na grande empresa industrial que diversifica a base geográfica de suas unidades produtivas – as empresas multinacionais visando, sobretudo, aos mercados internos desses países. Por outra, o processo de industrialização periférico ocorreria com a participação do capital estrangeiro privado. Essas duas observações apontam para uma mudança significativa

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O autor advertia, porém, que “essa ‘dinâmica geral [...] existe por intermédio tanto dos modos singularizados de sua expressão na ‘periferia do sistema’, como pela maneira como o capitalismo internacional se articula” (Cardoso, 1977: 126).

com respeito aos padrões que haviam sido estabelecidos no período imediatamente anterior, em que os capitais nacionais comandavam os investimentos e o mundo se pautava na relação centro- periferia “clássica”, onde os primeiros produziam e exportavam bens industriais e os segundos bens primários.

As mudanças no panorama do capitalismo mundial, com a internacionalização crescente em termos não só comerciais, mas produtivos e financeiros, e as condições internas de cada país e de suas políticas de industrialização alteraram o terreno político, social e econômico dos projetos nacionais de industrialização, que constituíam a base para o salto econômico da situação de subdesenvolvimento para o desenvolvimento. Essa mudança, longe de alterar o quadro de dependência, coloca uma cunha na correlação de forças internas aos países, cujos resultados vieram a minar profundamente as potencialidades de uma maior autodeterminação dos países periféricos. Os mecanismos financeiros que se estabelecem nesses países nesse período vão, por um lado, contribuir para a continuidade da expansão e diversificação industriais e, por outro, minar as possibilidades futuras de maior autonomia37 e independência na condução de políticas nacionais.

F. H. Cardoso aponta para o fato de que essas alterações não significam uma maior independência do processo de industrialização, uma vez que as especializações respectivas entre centro e periferia poderiam apenas estar se deslocando. Em vez de bens industriais vs. primários, as especializações de cada um dos mundos se dariam entre bens do setor de produção de bens de capital e bens de consumo, ou entre bens que requerem conteúdo tecnológico mais avançado e maior progresso técnico e os demais. Ademais, a industrialização com amparo no capital estrangeiro, se, por uma parte, traz tecnologia nova e capital, por outra, exigirá, em contrapartida, que a remuneração de um e outro – royalties e lucros – possa se realizar. Assim, aquele autor observava essa questão ainda em 1972:

[...] na nova divisão internacional do trabalho, dá-se a concentração crescente do setor I, ou, pelo menos dos ramos dele que têm a ver com a criação de novas tecnologias, nas economias centrais e, especialmente, nos EEUU. Assim, o que aparece à consciência comum como “dependência tecnológica” dos países periféricos é, na verdade, ao mesmo tempo, dependência financeira. A industrialização da periferia, na medida em que consiste na implantação de fábricas para a produção de bens de consumo imediato ou de bens intermediários de “mediana tecnologia”, reproduz, noutra escala e noutro contexto, a situação de dependência [...] este mecanismo de reprodução da dependência é concomitante com o outro [...] de endividamento externo crescente, e a ele se relaciona na medida em que gera novas necessidades de empréstimos para sustentar a importação da tecnologia produzida nas economias centrais. Assim, desenvolvimento e

dependência (tecnológica e financeira) são processos contraditórios e correlatos, que se reproduzem, modificam-se e se ampliam incessantemente, sempre e quando inexistam processos políticos que lhes dêem fim. (Cardoso, 1980: 80-81).

Dessa forma, após décadas de industrialização, percebem-se as limitações para o crescimento auto-sustentado. A periferia capitalista não é capaz de gerar seus próprios circuitos de realização do capital, que passam por relações externas numa situação de dependência, agora não mais pelo lado das relações comerciais, mas pela circulação de capital. Para isso contribuem as condições sociais que a industrialização pouco alterara, apontadas desde os primeiros textos da Cepal: concentração da renda, heterogeneidade produtiva, atraso tecnológico, limitações de demanda, limitações de capital, etc. A esse respeito, comenta F. H. Cardoso: “É por isso que as ‘deliberações’ e ‘decisões’ da periferia encontram obstáculos reais na estrutura não só do

comércio mundial, mas do sistema produtivo internacional [itálicos do autor]”i.

Diante do progresso técnico nos países periféricos, a abordagem da dependência debate-se com a mesma questão. A. Pinto assim a coloca:

[...] as análises e discussões sobre ciência e tecnologia – ao menos frente aos problemas e tarefas do desenvolvimento econômico e social – não podem ser desprendidas do contexto global e do funcionamento e relações do sistema centro–periferia. Somente assim é possível vislumbrar as raízes profundas do chamado ‘hiato tecnológico’, assim como compreender que o problema correlacionado da concentração do progresso técnico nas economias centrais e a marginalização relativa da periferia somente pode ser resolvido na medida em que se modifiquem os dados e contrastes estruturais que lhes dão origem, assim como as formas de relação entre as duas esferas. (Pinto, 1976: 271).

Esse autor situava essas considerações ao discutir as mudanças trazidas pela industrialização da América Latina. No plano tecnológico reconhecia que a industrialização havia apresentado uma maior difusão tecnológica pelo corpo da economia, sobretudo se comparado ao período anterior de “crescimento para fora”. E, sobretudo, A. Pinto entendeu que a “internacionalização das economias latino-americanas” facilitara o acesso ao progresso tecnológico principalmente através das empresas multinacionais38. Isso posto, entretanto, foram mantidas as preocupações com a insuficiência interna para a geração de progresso técnico endógeno, com a grande heterogeneidade estrutural e tecnológica do parque produtivo, e com as grandes disparidades de renda. A questão da dependência é desta forma recolocada, apesar do dinamismo trazido pelo crescimento industrial com a participação do capital externo, temas que

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foram constantes preocupações do pensamento cepalino ao longo das suas primeiras décadas de existência.

Por outra parte, M. C. Tavares, escrevendo à mesma época, não somente subscreve as críticas à visão estagnacionista que derivava do pensamento cepalino por volta dos anos 60, como também procurou tratar do “padrão histórico de acumulação” que se estabeleceu no capitalismo mundial e das repercussões nos países da periferia. O novo padrão apoiava-se na expansão da empresa oligopolizada, com introdução acelerada de progresso técnico e rápida diferenciação da estrutura da demanda, numa época em que o capital já se expandia em escala mundial, com crescente predomínio do capital financeiro (Tavares, 1977).

A introdução de progresso técnico torna-se cada vez mais importante para a concorrência das empresas, assim como a diferenciação da estrutura de consumo, inclusive, pela introdução de novos bens de consumo e de investimento. A periferia torna-se importante não somente pela necessidade da “extensão geográfica dos mercados”, mas, também, porque a tendência à sobreacumulação de capital nos países centrais requeria a sua transferência à periferia por meio do financiamento externo destas economias. Sua posição, embora crítica dos estagnacionistas, tornava explícito que, no novo espaço econômico aberto pela ação das empresas transnacionais e pela elevação dos fluxos financeiros mundiais, os Estados nacionais poderiam perder capacidade endógena de traçar seus próprios caminhos em busca do desenvolvimento econômico, razões que C. Furtado já havia apresentado39.

A questão da dependência é reintroduzida neste esquema interpretativo ao examinar a ação dessas empresas nos países periféricos. A empresa oligopolizada por seu poder financeiro, domínio de processos tecnológicos e capacidade de inovação estabelece enormes vantagens competitivas e responde apenas em parte às condições dos países periféricos. Em suas decisões de investimento e produção leva em consideração a “endogenia” da empresa no conjunto de suas ações no plano mundial e sua estratégia local. Para M. C. Tavares, o conteúdo da “dependência tecnológica” se expressava em duas vertentes. A primeira refere-se à “incapacidade de controlar a tecnologia dominante, ou adaptá-la às condições de produção locais, bem como o alto preço que [as empresas nacionais...] têm que pagar por certos processos”. A segunda trata da não- compatibilidade entre a tecnologia empregada e a estrutura de produção, que afeta, por sua vez, a estrutura de consumo, num sentido semelhante ao empregado por C. Furtado40.

Entretanto, a autora adverte:

Para economias subdesenvolvidas o problema da “escolha de técnicas” [...] está na escolha dos produtos e, por derivação, na modificação da estrutura da produção que afeta e diferencia a demanda [...]. O problema da alocação de recursos e da escolha de técnicas (quando esta é possível) só tem sentido em termos de política econômica [grifo da autora], quando se planeja e se controla o que se quer produzir [...]. Convém advertir, porém, que a introdução de novos produtos na economia não é em geral controlada pelo Estado; é, pelo contrário, parte essencial da dinâmica de acumulação de um oligopólio diferenciado [...]. A este problema “maior” da alocação de recursos pode pois reduzir-se a chamada ‘dependência externa tecnológica [...]. O problema está nas evidências acumuladas sobre o “mau uso” macroeconômico de recursos e seus efeitos “perversos” sobre a estrutura de consumo e a distribuição da renda [...e, assim,] o raio de manobra dos Estados para alterar o comportamento das grandes empresas, estrangeiras ou nacionais, nessas matérias estratégicas, é tanto mais limitado quanto sua própria estrutura de investimento se encontra acoplada à dinâmica de expansão dessas empresas de pontai. (Tavares, 1998: 84-85). Essas observações da autora trazem para a discussão sobre o desenvolvimento e da dependência das economias periféricas a questão das formas de concorrência no capitalismo. A introdução dessa temática diz respeito tanto ao padrão de acumulação na ordem capitalista mundial, dominada pela grande empresa oligopolista e pela crescente internacionalização dos circuitos de capital, quanto às formas que o processo de industrialização vai assumindo nas grandes economias da América Latina, sua diferenciação produtiva, sua dinâmica intersetorial e sua estrutura de consumo. Os elos de ligação entre um e outro vão sendo estabelecidos em proporções crescentes pela ação das grandes empresas transnacionais e pelo crescente endividamento externo. A tecnologia de produção e o desenvolvimento tecnológico estão articulados a esse conjunto de fatores externos e internos interconectados e auto-alimentados. Surgem novas questões, de certo modo mais complexas, em que é possível ver tanto a permanência de alguns elementos diagnosticados pela Cepal – concentração da renda; heterogeneidade estrutural; atraso relativo; reduzida autonomia dos circuitos de capital; importação de tecnologia, etc. – quanto elementos novos – por exemplo, industrialização “internacionalizada” e as novas formas de dependência financeira.

O recurso ao capital estrangeiro, enquanto viabilizava o financiamento dos enormes investimentos necessários para internalizar a produção de setores industriais mais pesados e permitia o acesso a uma tecnologia moderna, criou tensões críticas que culminaram na crise

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A autora, entretanto, não tem qualquer entusiasmo pela idéia de dependência tecnológica, exposta na frase: “[...] que se tenha adotado a expressão não muito feliz de ‘dependência tecnológica’” Tavares (1998: 83).

generalizada na América Latina nos anos 80. A região estava desaparelhada para enfrentar as mudanças no capitalismo internacional que vieram a seguir, dadas basicamente pela revolução tecnológica e pelas mudanças no sistema financeiro internacional. O “desenvolvimento dependente-associado”, como F. H. Cardosoi denominou a esse tipo de dependência da periferia

cum dinamismo, mostrou então seus limites: a dependência se aprofundou e a crise se impôs.

A América Latina, tal como propunham a Cepal e C. Furtado, trilhou os caminhos da industrialização, internalizou processos produtivos ao substituir importações, ampliou conhecimentos, “modernizou-se”. Entretanto, novas formas de dependência se forjaram à medida que o progresso técnico e a indústria se espalhavam pelo continente, em particular, nos seus maiores países – México, Argentina e Brasil. O financiamento externo e a abertura às multinacionais, na mesma medida em que se constituíram em fatores essenciais nesse processo, colocaram a cunha da futura regressão ao movimento de “autonomização” e levaram estas economias a um ponto, como registra a notável epígrafe desta seção, “bem diverso do que em

primeiro se pensou”!