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ECONÔMICA, MUDANÇAS NO PADRÃO TECNOLÓGICO E OS PAÍSES PERIFÉRICOS

III.1 O processo de globalização econômica: aspectos gerais

III.1.2 Financeirização e novo regime de acumulação

As informações apresentadas acima mostram, com contenção, uma hierarquia quantitativa em que as variáveis financeiras da internacionalização ganham a “corrida” das variáveis indicativas da produção e do comércio (Quadro III..4).

Quadro III.4. Indicadores da expansão internacional das atividades econômicas

médias anuais participações crescimento anual

períodos 1975/79 1980/84 1985/89 1975/79 1980/84 1985/89

Países/setor (a) (b) (c) (d) (e) (f) (b)/(a) (c)/(b) (c)/(a)

U$ bi U$ bi U$ bi (%) (%) (%) %aa %aa %aa

Desenvolvidos 99,1 175,7 463,3 100 100 100 12,1 21,4 16,7 Público 21 40,1 63,8 21,2 22,8 13,8 13,8 9,7 11,8 Privado 78,1 135,6 399,5 78,8 77,2 86,2 11,7 24,1 17,7 Subdesenvolvidos 52,1 105,5 110 100 100 100 15,2 0,8 7,8 Público 32,1 66,7 74,3 61,6 63,2 67,5 15,8 2,2 8,8 Privado 19,9 38,8 35,8 38,2 36,8 32,5 14,3 -1,6 6,0 em %

média crescimento anual médio

U$ bi

1996-1998 1986-1990 1991-1995 1996 1997 1998

Entrada de IDE 489 24,3 19,6 9,1 29,4 38,7

Saída de IDE 501 27,3 15,9 5,9 25,1 36,6

Estoque de IDE (entrada) 3.537 17,9 9,6 10,6 11,4 19,0

Estoque de IDE (saída) 3.562 21,3 10,5 10,7 8,9 20,3

Fusões e aquisições transfronteiras 270 24,0 30,2 15,5 45,2 73,9

Vendas por filiais estrangeiras 10.176 16,6 10,7 11,7 3,8 17,5

Produto bruto das filiais estrangeiras 2.330 16,8 7,3 6,7 12,8 17,1

Ativos das filiais estrangeiras 12.692 18,5 13,8 8,8 8,6 19,7

Exportações das filiais estrangeiras 2.071 13,5 13,1 -5,8 10,5 14,9

Emprego nas filiais estrangeiras 32.548 5,9 5,6 4,9 2,2 10,9

PIB (cf) 1,8* 6,4 2,5 1,2

Formação bruta de capital fixo 12,1 6,5 2,5 -2,5

Royalties e pagamentos de taxas 22,4 14,0 8,6 3,8

Exportações de bens e serviços não-fatores 6.603 15,0 9,3 5,7 2,9 -2,0

Fonte: UNCTAD,1999: Tabela 1.2; elaboração Silveira

Registram um substrato, mas é limitado para a afirmação de uma nova ordem econômica, ou de um novo “regime de acumulação”, como propõem os autores franceses da teoria da regulação (Chesnais, 2000). Os elementos de cunho quantitativo são fundamentais na análise econômica, mas não são suficientes para dar conta das “grandes indagações”. Os preços, que estão por detrás de qualquer valoração, presumida ou concretizada nos mercados e captada pelos registros estatísticos, não são entes cientificamente determinados, tampouco incluem outras relações da sociedade e da economia. A globalização envolve outras atividades que vão além do território da economia, embora esse seja o aspecto mais importante. Cultura, língua, ideologias, sistemas políticos, poder militar, são partes integrantes desse processo em que ganham destaque as relações sociais, econômicas e políticas externas para além da diplomacia. Fiquemos nos econômicos, não somente porque são o fóco do trabalho, mas também porque neles as informações estatísticas são mais disseminadas e completas.

Com essas advertências prévias, é preciso esclarecer como e por que o processo econômico vivido nas últimas décadas reestruturou padrões de relacionamento econômico internacional. Pretende-se mostrar, com apoio em alguns autores, que há algo de novo tanto em relação ao período imediatamente anterior – a “idade de ouro” do capitalismo – quanto aos tempos pré-1914. A partir daí procura-se estabelecer os vínculos desse diagnóstico com o que se passa no nosso país nas últimas décadas. Propõe-se dialogar com a versão crítica do modelo de globalização que insiste, com boa dose de razão, que nem tudo é novo no capitalismo atual e rejeitar uma visão acrítica, laudatória e linear da inexorabilidade dos processos subjacentes à globalização. Isto posto, reconhece-se que a evolução do sistema internacional repôs sob novas formas, situações “antigas”. A relação entre países centrais e periféricos, na medida em que regride a uma situação de dependência e incapacitação política nacional encontra eco no passado. A nova situação do capitalismo mundial repõe mecanismos e estruturas que se haviam, ao menos, enfraquecido e os países periféricos que, por um largo período haviam alcançado ampliar seus horizontes de maior autonomia59 e autodeterminação vieram a caminhar no sentido inverso

Assim, mesmo com os poucos dados apresentados acima, evidencia-se: 1) a velocidade e a intensidade com que as operações de cunho financeiro passam a comandar volumes cada vez mais expressivos de recursos; e 2) como esses processos estão integrados intimamente à internacionalização das finanças. Entretanto, se apontam elementos da trajetória econômica, não deixam claros os mecanismos que lhe subjazem, mecanismos esses que não são puramente

econômicos, comportando elementos de natureza política, ideológica, cultural e dos interesses dos diferentes países.

A importância da discussão dessas questões no âmbito do presente trabalho, o qual, deve- se relembrar, busca encontrar os elementos essenciais que condicionam o desenvolvimento tecnológico num país periférico e dependente – o Brasil – no período recente da sua economia, está na sobredeterminação, em última instância, da acumulação financeira sobre as demais instâncias da acumulação capitalista60 e, pour cause, sobre o “revolucionar das forças produtivas”. Ademais, essa sobredeterminação se põe para a realidade periférica de uma forma tanto perversa quanto aprisionante, em que comparecem, além das determinações das leis do “mercado” do dinheiro – forma líquida e abstrata do valor que busca sua valorização –, os interesses de nações – e de uma nação em particular, os Estados Unidos – sobre outras, numa hierarquia, da mesma forma, “perversa e aprisionante” para os que se situam, simbolicamente, “ao sul do equador”.

O descolamento da órbita financeira com relação à órbita produtiva faz parte da natureza do capital no seu movimento, uma vez que no seu circuito de valorização está permanentemente em busca de formas líquidas de riqueza. Num plano mais abstrato, a autonomização da órbita financeira está presente no capitalismo como tendência e pulsão mas esbarra nos limites postos pela necessidade do capital em seu circuito de retornar à esfera produtiva, congelar-se provisoriamente em meios de produção e “fatores de produção”, e depois transfigurar novamente os resultados da produção na forma desejada e líquida de equivalente geral (Belluzzo, 1997). Não é estranha, portanto, ao conceito de capital, a autonomização do dinheiro sob a forma de capital a juros e tampouco o crédito, como criação de poder de comprai, que alarga os horizontes de expansão do capital. Entretanto, o que é novo na história recente é o grau, o alcance e o papel que o capital financeiro passou a exercer na determinação, em última instância, dos rumos atuais do capitalismo e do processo de internacionalização. Em realidade, os horizontes de autonomia do circuito financeiro e de valorização do capital não existem em abstrato, fora da sua referenciação

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a processos históricos concretos que definem seja os “regimes de acumulação”i, seja “o estado das convenções” (Belluzzo, 1997: 95), seja a sua localização dos pólos territoriais hegemônicos.

O processo de progressiva autonomização da órbita financeira que caracteriza as últimas décadas apresenta, como já se disse, dois momentos intimamente ligados mas distintos. O primeiro refere-se ao que se tem chamado de “financeirização” da riqueza (Braga, 1993 e 1997) e assinala o predomínio da “finança de mercado” ou “finança liberalizada”, nas expressões de L. G. Belluzzo (1997: 95). O segundo, à “globalização financeira”. Segundo J. C. Braga (1973: 26), a financeirização da riqueza é “a expressão geral das formas contemporâneas de definir, gerir e realizar riqueza no capitalismo [grifo do autor]”, em que a dominação financeira se mostra também na forma como as corporações definem suas estratégias mais gerais, inclusive quanto ao desenvolvimento tecnológico, a partir de um “entrelaçamento complexo entre moeda, crédito e patrimônio”(Braga, 1973: 44)61.

Essa caracterização expressa a atual fase do capitalismo em que a “finança de mercado” substitui a etapa anterior, de “finança regulada”, que predominou nos chamados “anos dourados” que se seguiram ao fim da Segunda Guerra Mundial até fins da década de 70 (Belluzzo, 1997). No capitalismo de “finança regulada” a predominância do crédito bancário se sustenta sob um “estado de convenções” em que o crescimento econômico dos países e a autonomia das políticas nacionais eram postulados. Assim, a predominância do crédito bancário atende a um ambiente institucional em que: as políticas monetárias e de crédito atendiam a objetivos nacionais; os sistemas nacionais eram “insulados”, definindo regras e sistemas próprios nos contornos dos países; e os bancos centrais administravam políticas expansivas e pró-crescimento (Belluzzo, 1997: 168-169).

O declínio do chamado “consenso keynesiano”, que se acentua na década de 70, desgasta os “protocolos de regulação” desse modelo62, preparando o caminho para a instauração das “finanças de mercado”. Nestas, a finança liberalizada escapa da regulação bancária do período anterior, dirigindo-se progressivamente aos mercados não bancários de ativos e introduzindo um caráter mais especulativo às transações financeiras. A lógica de ganhos na valorização

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Theret (1998: 17, esquema 2). Para os teóricos da escola da regulação francesa, o regime de acumulação se caracteriza pelas “regularidades sociais e econômicas que permitem à acumulação desenvolver-se no longo prazo, entre duas crises estruturais” (Theret, 1998: 12).

patrimonial se instaura como fonte maior de rendas e leitmotiv das ações no mercado financeiro. A maior importância dos fatores intangíveis, mais elásticos e flutuantes, eleva a instabilidade intrínseca do sistema, tornando-o mais volátil que nunca. Como afirma R. Carneiro, “[...] o aprofundamento das finanças de mercado modifica o comportamento dos vários tipos de agentes, cuja lógica de investimento se transforma e adquire um caráter especulativo”. Assim, conclui, “a acumulação financeira ou fictícia, que é hegemônica, condiciona ou determina a acumulação produtiva” (Carneiro, 1999: 62/59).O capital financeiro se autonomiza ao extremo e subjuga a órbita produtiva em sua lógica.

A lógica do investimento produtivo privado subordina-se, dessa forma, a mecanismos, instituições e convenções em que, ao invés da “finança patrocinar a indústria”, é a “indústria que patrocina a finança”, na expressão de F. Chesnais (2000: 5). Esse é o elemento analítico que alimenta os desdobramentos sobre as esferas produtiva e tecnológica que serão examinados nas seções seguintes. No circuito de valorização de capital, que envolve passagens obrigatórias pelas órbitas produtiva e financeira, o caráter fictício da acumulação financeira, já presente no capitalismo “monopolista” de fins do século XIX, ganha uma expressão muito mais profunda e características novas nas últimas décadas do século XX. A riqueza líquida alça vôo, descola da materialidade representativa de valor: o capital tangível. É tempo do capital intangível, mera representação valorativa de papéis nominativos de ativos, em que a subjetividade do valor é reiteradamente posta em questão e resolvida, capital volátil e mais que nunca sujeito às cambiantes e instáveis expectativas de maior riqueza futura. O capital especulativo perdeu suas amarras. E perdeu-as tanto no próprio circuito do capital como nos controles públicos que, por via das políticas e da regulação estatal, refreavam sua sanha incontida na busca da autovalorização do capital individualizado.

A forma líquida de riqueza, aspiração máxima do possuidor dos valores que buscam valorizar-se – capital –, ganha mais espaço e liberdade de atuação tanto no interior dos países quanto, principalmente, na liberalização dos movimentos de capitais entre os países. A financeirização acelera-se à medida que se internacionaliza, num processo que exige alterações profundas nas formas de dominação política prevalecentes nos países. Uma nova correlação de forças de natureza liberal-conservadora, amparada em particular nos interesses articulados com os ganhos financeiros, instaura um novo “estado de convenções” ou “sistema de regulações”, que sustenta as políticas de liberalização e desregulamentação que caracterizam as últimas décadas do

século XX. A política de “despolitização da economia” é vitoriosa, com seus princípios que guiam o comportamento econômico no capitalismo: individualismos, racionalidade instrumental e atenção nos ganhos e perdas de natureza pecuniária. Estes invadem todos os terrenos, da política à cultura.