• Nenhum resultado encontrado

2. A Economia Social

2.5. A governança na economia social

Após entendermos a economia social por diversos aspectos, há outro conceito que também merece destaque, dada a forma singular como é tratado na literatura de economia social: o conceito de governança.

O termo "governança" tornou-se importante dentre uma grande variedade de disciplinas, incluindo direito, políticas públicas e, sobretudo, gestão de organizações privadas,

públicas ou sem fins lucrativos. Sua popularização, no entanto, não torna necessariamente mais claro seu significado, ainda mais quando seu uso é multidisciplinar. Kooiman (1999) realizou uma excelente revisão da literatura sobre governança, afirmando por conclusão que o conceito é utilizado em uma variedade tão grande de significados, que se tornou necessário estabelecer dimensões de análise antes de retirar dele qualquer contribuição.

A produção teórica sobre governança é dominada pelas idéias da teoria da agência (EISENHARDT, 1989), que trata o conceito como a forma de conduzir o paradoxo gestão- propriedade, seja em sociedades comerciais, nas organizações do setor público ou naquelas sem fins lucrativos.

Ao proceder a uma revisão bibliográfica preliminar sobre governança em organizações sem fins lucrativos, verificamos que uma porção significativa dos trabalhos dá especial atenção a práticas de controle e à definição de responsabilidades para o Conselho de Administração, diretores, entre outros envolvidos no processo decisório (DUCA, 1996; HOULE, 1989; INGRAM; 1988; MALEFANT, 1999; MIDDLETON, 1987). Com efeito, essas abordagens partem do princípio de que há uma diferença de interesses ou de propósitos entre os atores que se ocupam da gestão da organização e os atores que detém a propriedade. No caso de organizações sem fins lucrativos, como não há a figura da propriedade, a governança é tratada também sobre a ótica do trabalho do Conselho de Administração e o foco é garantir que os gestores não se afastem da missão da organização. Conseqüentemente, governança é um conceito que emerge da existência de um paradoxo entre administração e propriedade.

Há, no entanto, trabalhos que oferecem outra perspectiva sobre a governança, dentre eles os produzidos por autores da economia social. Encontramos uma visão que, sem rejeitar a noção de controle, dá maior atenção a governança como modo do exercício do poder. Mais especificamente, esses autores assumem a governança como um conceito relacionado ao exercício do poder em decisões tanto no nível organizacional (MALO; VEZINA 2003, MALO, 2001 e 2000; SAIDEL, 1998), como no nível institucional (FISHER, 2002, WORLD BANK, 1992). Nessa ótica, governança é entendida como poder compartilhado ou ação coletiva gerenciada e é particularmente pertinente ao se tratar organizações de natureza cooperativa, democrática e associativa. O termo torna-se uma categoria analítica, associada a conceitos como participação, parceria, aprendizagem coletiva, regulação e práticas de “bom governo”, tais como

orçamento participativo e ações de desenvolvimento local e regional. Criar estruturas de governança significa definir uma dinâmica de papéis e interações entre membros da organização, de tal maneira a desenvolver a participação e o engajamento dos membros no processo decisório estratégico, valorizando estruturas descentralizadas (GUIMARÃES; MARTINS, 2001).

Para melhor compreender a estrutura de governança de uma organização da economia social, Vienney (1994) emprega o conceito de empreendedor e Malo (2000a; 2001), o de empreendedor coletivo. O empreendedor coletivo encabeça o processo estratégico nas organizações da economia social, ou seja, em cooperativas, associações e mutuelles. Isto significa que o processo é conduzido não por um indivíduo apenas, mas por um conjunto de atores dispostos estatutariamente (em função da lei e das regras internas) e que se organizam, de modo geral, da seguinte maneira :

a) Assembléia Geral: Constituída por todos os membros da cooperativa, sendo que todos tem direito a voto e elegem, por voto direto, os membros do Conselho de Administração;

b) Conselho de Administração: Tem a mais alta autoridade nas questões estratégicas e indica os membros da diretoria; e

c) Diretoria: Responde sobre seus atos ao Conselho de Administração, e pode ser destituída caso assim seja votado na assembléia geral ou no Conselho de Administração.

Formalmente, esta estrutura de governança não difere daquelas encontradas em organizações comerciais, que igualmente compreendem uma assembléia de acionistas, um Conselho de Administração e um corpo de diretores ou administradores. No entanto, a similitude é apenas aparente, porque fundamentalmente, em economia social ou solidária, as instâncias formais de decisão são compostas não por acionistas, mas por parceiros (stakeholders) membros internos (como no caso de cooperativas de trabalhadores) ou externos (como em cooperativas de usuários ou de fornecedores). O empreendedor coletivo é o agente que detém o poder sobre a combinação dos recursos produtivos dos quais dispõem a empresa (VIENNEY, 1994). O empreendedor coletivo é o conjunto de atores que participam dos processos de formação das orientações estratégicas da organização coletiva (MALO, 2000b).

Para Malo (2001), essa estrutura de governança permitiria às cooperativas tratar duas questões que se manifestam como tensões no ideal cooperativo:

1. Alcançar uma orientação estratégica que trate o duplo caráter das organizações da economia social: de um lado, associação de pessoas movidas por um objetivo comum que se traduz em uma atividade socioeconômica; por outro, uma cooperativa é também uma empresa, inserida na economia de mercado, que necessita encontrar neste um posicionamento competitivo;

2. Promover o engajamento dos membros nos processos decisórios estratégicos, uma vez que eles são, ao mesmo tempo, co-responsáveis pela administração e co- proprietários da empresa.

Para enfatizar o caráter participativo deste desenho de processo decisório, Malo (2001) utiliza duas imagens. Na primeira, em um triângulo estaria disposto o processo estratégico como tratado nos modelos clássicos, visando o posicionamento da empresa no mercado. O triângulo relaciona os três componentes fundamentais de um processo estratégico: o empreendedor, a empresa e o meio-ambiente. Na segunda imagem, o triângulo cede lugar a uma ampulheta, pois o ângulo cabido ao empreendedor se transformaria em um outro triângulo, formado pela assembléia geral, pelo Conselho de Administração e pela diretoria. As três instâncias juntas comporiam o empreendedor coletivo. A figura 6, apresentada a seguir, oferece um esquema para visualização das imagens da estrutura de governança, conforme proposto por Malo (2001).

6. Figura: Esquema de representação de estrutura de governança

na economia social segundo Malo (2001)

Observe-se que no modelo estratégico revisto, os administradores da diretoria são o elo central entre as estruturas de gestão e de governança. A diretoria torna-se, portanto, um agente que tem o poder de conduzir ações dentro da estrutura da organização, mas que deve, igualmente, submeter-se à aprovação das instâncias constituídas pelos membros da cooperativa, seja via representação indireta, como no Conselho de Administração, seja via atuação direta na assembléia geral.

Ao propor a estrutura de governança e o conceito de empreendedor coletivo, Malo (2001) enfatiza que o processo decisório se desenvolve à medida que os atores em cada instância agem pautados por um conjunto de princípios pertinentes a um empreendimento de natureza

Empresa Empreendedor Figura do Modelo Estratégico Clássico Ambiente Empresa Assembléia Geral Conselho Administrativo Diretoria

Modelo Estratégico Revisto (ampulheta)

Estrutura Governaça Empreendedor Coletivo Estrutura de gestão Ambiente Empresa Empresa Empreendedor Figura do Modelo Estratégico Clássico Figura do Modelo Estratégico Clássico Ambiente Ambiente Empresa Empresa Assembléia Geral Conselho Administrativo Diretoria

Modelo Estratégico Revisto (ampulheta) Modelo Estratégico Revisto (ampulheta)

Estrutura Governaça Estrutura Governaça Empreendedor Coletivo Estrutura de gestão Estrutura de gestão Ambiente Ambiente

cooperativa e coletiva. A estrutura de governança tem de ser animada pela visão do projeto associativo, bem como pela missão da organização e os valores dos membros da cooperativa.

O conceito de empreendedor coletivo baseia-se, portanto, em uma configuração de instâncias múltiplas e inter-relacionadas de autoridade, dispostas de forma a que todos os membros participem da gestão estratégica da cooperativa, animados pelos princípios que os fizeram se unir. A relevância desse conceito reside em cuidar para que todos os membros estejam envolvidos e não negligenciar os princípios da organização de natureza cooperativa, dada a eterna tensão entre mobilizar membros para um objetivo comum e inserir-se em uma economia de mercado, com intensa competição.

Conquanto este modelo tenha sido desenvolvido para tratar de organizações da economia social, a idéia de desenvolver estruturas de governança participativas e democráticas é um desafio presente em outras organizações do setor sem fins lucrativos. Assim, percebe-se que a apreensão do conceito de empreendedor coletivo, dentro da proposta de governança apresentada pela literatura em economia social, pode oferecer contribuição para outras organizações em que os processos de decisão demandem uma estrutura de governança que contemple os desafios da propriedade coletiva.

2.6. Nonprofit sector e economia social: convergências e