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3 UM POUCO DA HISTÓRIA: AS TENDÊNCIAS TEÓRICAS NO ESTUDO DA ALFABETIZAÇÃO E NO ENSINO DAS RELAÇÕES

3.4 A HISTÓRIA DA ALFABETIZAÇÃO E O LETRAMENTO

Partindo da afirmativa/questionamento de Soares (2003a, 2003b) de que a concepção construtivista ou interacionista é a responsável pelo obscurecimento da dimensão linguística da alfabetização (o que abrangeria as relações sons e letras e letras e sons), tem-se a emergência do termo letramento, originado de literacy (inglês). Segundo essa autora, o “surgimento” do termo letramento ocorreu em meados dos anos de 1980, em diversas sociedades distanciadas geograficamente, socioeconomicamente e culturalmente (como França, Inglaterra, Estados Unidos, Portugal e Brasil), para reconhecer e nomear práticas sociais de leitura e de escrita mais avançadas, ou seja, fenômenos distintos da alfabetização, em seu sentido estrito (SOARES, 2003b).

Portanto, conforme a citada autora, o letramento corresponderia ao domínio e uso da língua escrita, que teria consequências social, cultural, política, econômica, cognitiva e linguística para o grupo social e indivíduo que dela fizesse uso. Assim, significaria o processo de inserção e participação do indivíduo na cultura escrita, levando-se em conta que as funções da escrita variam de uma sociedade para outra, pois, segundo a autora, não existe uma única forma de entender a alfabetização. Logo, o letramento envolveria as diferentes práticas da leitura e da escrita na vida social, em seus contextos utilitários e também informais, sendo, pois, um “conjunto de práticas” denominadas “letramentos”, podendo abarcar graus diversos (STREET, 2003, 2011).

Na perspectiva do exposto anteriormente, Soares (2001, p. 24) pontua que,

[...] se um adulto analfabeto se interessa em ouvir a leitura de jornais feita por um alfabetizado, se recebe cartas que outros lêem para ele, se dita cartas para que um alfabetizado as escreva [...], esse analfabeto é, de certa forma, letrado, porque faz uso da escrita, envolve-se em práticas sociais de leitura e de escrita.

Em contrapartida,

[...] a pessoa que aprende a ler e a escrever – que se torna alfabetizada – e que passa a envolver-se nas práticas sociais de leitura e escrita – que se torna letrada – é diferente de uma pessoa que não sabe ler e escrever – é

analfabeta – ou, sabendo ler e escrever, não faz uso da leitura e da escrita

– é alfabetizada, mas não é letrada70, não vive no estado ou condição de

70

quem sabe ler e escrever e pratica a leitura e escrita (SOARES, 2001, p. 36).

A respeito das questões relativas aos baixos índices de alfabetização no Brasil, Soares aponta que o problema está na ênfase posta nas diferenças entre as práticas sociais de leitura e de escrita e a aprendizagem do sistema de escrita, ou seja, entre os conceitos de letramento e de alfabetização e, assim, enfatiza a necessidade de dissociação entre esses dois conceitos e/ou práticas. A autora (2003b) enfatiza que a fusão dos dois conceitos e a prevalência do conceito de letramento tem provocado o apagamento da alfabetização, e a esse movimento a autora chama de

desinvenção da alfabetização.

Nessa ótica, Soares (2003a, 2005) defende que não é apropriado que se atribua conceito amplo à alfabetização, pois é preciso pensar na especificidade desta. Assim, a autora, ao mesmo tempo em que subdivide o processo de alfabetização (alfabetização e letramento), reforça a necessária articulação entre as duas “dimensões/partes” da aprendizagem da língua escrita: a alfabetização e o letramento, sem perder de vista o reconhecimento de suas múltiplas facetas e da diversidade de métodos e procedimentos para o ensino de uma e de outra.

Relativamente a essa perspectiva, Gontijo pontua que,

Dessa forma, a questão central sobre o conceito de alfabetização não está relacionada à necessidade de recuperar/defender a especificidade desse processo. A meu ver, a questão central está na necessidade de construção de um conceito aberto; portanto, capaz de abranger diferentes práticas de produção de textos orais e escritos e as diferentes possibilidades de leitura produzidas e reproduzidas pelos diversos grupos sociais e a dimensão linguística da alfabetização. Nesse sentido, a alfabetização deve ser vista como prática sociocultural em que se desenvolvem as capacidades de produção de textos orais e escritos, a leitura e a compreensão das relações entre sons e letras (GONTIJO, 2005, p. 17).

Logo, mesmo mediante repetidas trocas de termos e debates intensos, percebemos que a apropriação da leitura e da escrita ainda se constitui como ponto de debate intenso em nosso país, pois, como pontuou Graff (1995, p. 13),

A descoberta da persistente analfabetização nas sociedades avançadas levou à identificação da analfabetização como um problema social e uma ameaça do final do século XX [...] à produtividade econômica, ao bem-estar nacional e à promessa de vida democrática.

Assim, o “fantasma do analfabetismo” continua no século XXI e prossegue também a necessidade de análises aprofundadas e tratamento sério por parte das autoridades a quem compete legislar sobre tal questão, pois percebemos que não se trata de seguir “modismos” ou da invenção de novos termos, uma vez que esse é um assunto abrangente e complexo do qual emerge o compromisso com a sociedade brasileira, pois, ao mesmo tempo em que novas questões são debatidas, outras ressurgem, trazendo à baila antigas propostas com novas “roupagens”, confundindo, muitas vezes, os professores alfabetizadores de nosso país. Segundo Gadotti (2011, p. 12),

Não se trata só de palavras, de brigar por terminologias. Trata-se de uma posição ideológica que busca negar toda a tradição freiriana. A palavra alfabetização tem um peso, uma tradição, no contexto do paradigma da educação popular que é a maior contribuição da América Latina à história universal das ideias pedagógicas. O uso do termo ‘letramento’71 como alfabetização é uma forma de contrapor-se ideologicamente a essa tradição, reduzindo a alfabetização à lecto-escritura, como se diz em espanhol.

Considerando a divisão anteriormente enfocada entre alfabetização e letramento, podemos destacar que, atualmente, essa concepção ganha destaque nos documentos oficiais do Ministério da Educação, tendo em vista a recorrência do termo letramento em grande parte desses documentos – Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) e Guia de livros didáticos. Somente à guisa de exemplificação, tomamos nossa fonte de pesquisa, livros didáticos de alfabetização, e o documento no qual esses livros encontram-se descritos e avaliados – Guia de livros didáticos – PNLD 2010 – letramento e

alfabetização – língua portuguesa - 2009 – para ilustrarmos a grande propulsão do

termo letramento no cenário educacional brasileiro, que aparece não somente no título do referido documento, mas também nos títulos de treze das dezenove coleções aprovadas por esse Guia.

Retomando texto de Gontijo e Schwartz (2011), por meio do qual trazem para análise um relatório oficial de 200372, o projeto construtivista, as denominações propostas por Magda Soares e o Guia de livros didáticos – PNLD 2010 – letramento

71

Grifo do autor. 72

O relatório do ano de 2003, editado e publicado pelo Congresso Nacional, reuniu professores-

elaboradores convidados pela Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados e foi

apresentado pelo grupo de trabalho com o título Alfabetização Infantil: os novos caminhos (GONTIJO; SCHWARTZ, 2011).

e alfabetização – língua portuguesa – 2009, encontramos a pontuação de que, “apesar do aparente caráter inovador, a introdução do letramento [...] não rompe com a concepção de linguagem presente nas propostas dos defensores do construtivismo e do método fônico” (GONTIJO; SCHWARTZ, 2011, p. 41). Isso acontece pelo fato de o termo letramento permitir a conciliação das diferentes propostas contidas nessas tendências/teorizações, às quais já nos referimos anteriormente.

No que tange a essa perspectiva, Pérez e Araújo (2011, p. 130-131) ao problematizarem a separação dos termos alfabetização e letramento, colocam que,

[...] a separação simplificadora entre alfabetização e letramento tem contribuído mais para confundir do que ajudar as professoras alfabetizadoras. O pensamento complexo, ao conceber alfabetização e letramento como um único processo, possibilita tanto a ampliação da compreensão dos conceitos quanto a diversificação das práticas pedagógicas. Ao compreender que alfabetização-letramento são parte-todo de um único processo, a professora é capaz de perceber que aquele aluno que ainda não sabe ler e escrever possui saberes diferenciados e singulares sobre o mundo, sobre a escrita e sobre a palavra – a sua ‘palavramundo’73.

Os estudos apresentados nos fazem refletir acerca das concepções de linguagem que permeiam as diferentes tendências já apresentadas e que acabam por balizar práticas de ensino e aprendizagem da língua materna e, também, da necessidade de se compreenderem os aspectos históricos, ideológicos e sociais vinculados à alfabetização e aos termos que a ela estão associados. Dessarte, apesar de reconhecermos que o termo letramento demanda maiores e mais profundas

reflexões74, seguimos para a última tendência de ensino e aprendizagem da língua

no sentido de tentarmos abarcar, grosso modo, o que se tem pensado, discutido, estudado e proposto em termos do ensino da leitura e da escrita em nosso país.

3.5 A HISTÓRIA DA ALFABETIZAÇÃO E A CONCEPÇÃO ENUNCIATIVO-

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