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3 UM POUCO DA HISTÓRIA: AS TENDÊNCIAS TEÓRICAS NO ESTUDO DA ALFABETIZAÇÃO E NO ENSINO DAS RELAÇÕES

3.1 A HISTÓRIA DA ALFABETIZAÇÃO E A CONCEPÇÃO EMPIRISTA DE ENSINO E APRENDIZAGEM

Consideramos o período a partir da proclamação da República do Brasil, décadas finais do século XIX e início do século XX, como o momento em que se pode ver iniciar de maneira mais sistemática o processo de escolarização em nosso país, sendo possível vislumbrar indícios de um desejo de democratização do ensino. Todavia, ao enfocarmos esse período, nos ateremos muito mais ao como se processou o ensino da leitura e da escrita nessa fase do que ao quando este aconteceu, uma vez que, apesar de serem delimitados períodos históricos em que certos estudos e suas concepções subjacentes tomaram evidência, entendemos com Mortatti (2006) que continuidades e permanências existem, e não se pode afirmar, mesmo tentando descrever uma linha do tempo relativa à alfabetização no Brasil, que tal ensino ainda não se processe dessa forma para alguns aprendizes nos dias atuais.

Assim, tomando o período descrito acima, no chamado “ensino tradicional”53, a

alfabetização era concebida como o ensino-aprendizagem da “tecnologia da escrita”. Nessa perspectiva, com o trabalho a leitura e a escrita se resumia à decodificação (leitura) e codificação (escrita) dos sinais gráficos. Tal teorização trazia como consequência a noção de escrita como o meio de expressão exata da fala, ou seja, nosso sistema de escrita teria sido criado estritamente para promover a representação da linguagem falada, desconsiderando, pois, as demais formas de escrita que (co)existiram antes e com a invenção do sistema alfabético.

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Período de 1889 até 1930, chamado de República Velha. 53

Ao falarmos de “ensino tradicional”, estamos considerando que houve um momento histórico, como já descrito, em que esse ensino foi mais evidente e enfatizado por documentos oficiais, entretanto, não desconsideramos a possibilidade de sua permanência ainda hoje, em algumas salas de aula.

Em decorrência desse enfoque teórico-metodológico, a “trajetória” da criança com e pela escrita, uma vez que vivemos em sociedades letradas, sejam elas mais ou menos socializadas com a cultura escrita, também era desconsiderada e, dessa maneira, o modo de mediação entre o aprendiz e o “código escrito” era sempre unilateral, ou seja, de alguém que detém o “código” para alguém que necessita apreendê-lo.

É importante também considerar que nem todos os sistemas de escrita existentes no mundo grafam os sons (fonemas) da língua falada, ou seja, nem todos os sistemas de escrita são alfabéticos, haja vista, por exemplo, os símbolos da escrita chinesa, que é ideográfica, por representar ideias, conceitos. Portanto, torna-se perfeitamente plausível que algumas crianças não entendam imediatamente que nosso sistema de escrita “representa” sons da cadeia falada, tendo em vista que atualmente também convivemos com escritas ideográficas. Por isso, ao desconsiderar o que a criança poderia pensar sobre a linguagem, a concepção empirista traz uma visão “adultocêntrica” de aprendiz por meio da qual os alunos já conceberiam as unidades menores da língua e, assim, as unidades internas das palavras, como o fazem aqueles já alfabetizados, daí o equívoco dos métodos.

Na perspectiva do ensino a que nos remetemos, as relações sons e letras e letras e sons apareciam como o foco de todo o processo, uma vez que tal concepção de alfabetização consistia pura e simplesmente na capacidade de operar com o “código escrito”, lendo e escrevendo o que fosse solicitado, sem nenhuma ou quase nenhuma compreensão do sistema de escrita alfabética, tampouco de seus usos na prática cotidiana. Assim, ler e escrever era ensinado de forma mecânica, por meio da repetição e da memorização que traziam em seu bojo os diversos métodos que balizaram tal tipo de ensino. Logo, a consideração da alfabetização como decodificação e codificação foi marcada também pela metodização do ensino da leitura e da escrita na fase inicial de escolarização da criança (métodos sintéticos, analíticos e o método global).

Há que se observar que, com o enfoque dos métodos na apropriação da leitura e da escrita, independentemente de qual era utilizado, pouca ou nenhuma importância era dada ao aspecto discursivo, ou seja, ao texto (enquanto enunciado) e sua utilização como cerne do ensino e aprendizagem da língua, seja ela oral ou escrita,

haja vista as cartilhas utilizadas que, quando apresentavam algum texto, este, além de artificialmente produzido para o próprio livro, apresentava sentido abstrato para grande parte dos alunos. Os aspectos formais da alfabetização, tendo em vista a apropriação do “código linguístico”, primordialmente no que diz respeito à associação entre sons e letras, representavam a base de todo o processo de alfabetização, desconsiderando, pois, a leitura e a produção de textos e, nesse sentido, a possibilidade de os alunos serem vistos como sujeitos leitores e produtores de texto. Sobre essa mesma tendência teórico-metodológica, em pesquisa por meio da qual investigam que tratamento(s) didático(s) os atuais livros didáticos de alfabetização propõem para o ensino do sistema de escrita alfabética, Morais e Albuquerque (2004, p. 210) indicam que,

[...] independentemente de serem sintéticas ou analíticas, as metodologias de ensino propostas nas cartilhas tradicionais partilham uma concepção empirista-associacionista de ensino-aprendizagem. Se o ponto de partida variava (textos nos métodos globais, fonemas nos métodos fônicos, etc.), era comum a perspectiva de que, para ensinar o SEA54, a escola transmitia ao aprendiz informações prontas sobre as relações som-grafia, cabendo a ele memorizá-las, fixá-las.

A partir das considerações tecidas, podemos inferir que a concepção empirista de ensino e aprendizagem desconsidera a trajetória do aprendiz com e pela escrita, uma vez que, de acordo com essa concepção, a escrita alfabética define-se como um código pronto, dado a ser transmitido. Entendemos, assim, que o ensino balizado por tal concepção pode trazer sérias implicações pedagógicas no que tange à apropriação do sistema de escrita alfabética, já que trata as dificuldades decorrentes da apropriação desse “código” como deficiências e/ou anomalias dos aprendizes, incidindo a atenção nos chamados “pré-requisitos” para a alfabetização, que concorrem para a questão da “maturidade”, levando em consideração habilidades como coordenação motora, memória visual e auditiva, entre outras. Segundo Smolka (2001), as décadas de 1960 e 1970 foram marcadas pela ideia da “educação compensatória” como forma de suprir a “carência cultural” dos alunos e diminuir os índices de evasão e repetência. Entretanto, como esses índices não diminuíam, foi necessário encontrar os elementos motivadores dessa situação. Assim, da incapacidade do aluno passou-se à incompetência do professor, levando

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à necessidade de formação para o magistério e materiais didáticos para a condução das aulas. Como nos aponta a autora, nesse contexto, “[...] o livro didático passou a ser um recurso imprescindível, indispensável: virou programa e, mais do que programa, virou método. Como método, adquiriu o ‘estatuto de cientificidade’55; e, como ciência, sua utilização passou a ser inquestionável” (SMOLKA, 2001, p. 16). Encontramos, pois, nesse ínterim, os livros didáticos de alfabetização, mais especificamente as chamadas cartilhas, atrelados a uma concepção empírica de linguagem, desconsiderando a realidade sociocultural do aluno, bem como sua inserção na sociedade letrada.

Dessa forma, tratando os aprendizes como uma tabula rasa que chega à escola apenas para adquirir conhecimentos e não para compreendê-los, a concepção empirista de ensino e aprendizagem acaba por enfatizar o ensino das relações sons e letras e letras e sons, no entanto, trazendo conhecimentos prontos do exterior que, por meio de exercícios de memorização, seriam transmitidos e, assim, internalizados.

Mediante o fracasso da escola em alfabetizar e os altos índices de repetência escolar, esforços foram empreendidos no sentido de (re)pensar o ensino inicial da leitura e da escrita, o que fez com que a divulgação dos estudos sobre a psicogênese da língua escrita, protagonizados principalmente por Emília Ferreiro e Ana Teberosky, chegasse ao Brasil por volta dos anos de 1980 e tivesse influência significativa na educação brasileira a partir de então. Nesse sentido, as próprias autoras expõem na introdução do livro Psicogênese da língua escrita que

[...] nosso objetivo será mostrar nos fatos a pertinência da teoria psicogenética de Piaget e das conceitualizações da psicolingüística contemporânea, para compreender a natureza dos processos de aquisição de conhecimento sobre a língua escrita, situando-nos acima das disputas sobre os métodos de ensino, porém tendo como fim último o de contribuir na solução dos problemas de aprendizagem da lecto-escrita na América Latina, e o de evitar que o sistema escolar continue produzindo futuros analfabetos (FERREIRO; TEBEROSKY, 1985, p. 35).

Sobre essa tendência e/ou teoria, passaremos a discorrer a seguir, mesmo que de forma breve, como já colocado.

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3.2 A HISTÓRIA DA ALFABETIZAÇÃO E A CONCEPÇÃO DA PSICOGÊNESE DA

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