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3 UM POUCO DA HISTÓRIA: AS TENDÊNCIAS TEÓRICAS NO ESTUDO DA ALFABETIZAÇÃO E NO ENSINO DAS RELAÇÕES

3.2 A HISTÓRIA DA ALFABETIZAÇÃO E A CONCEPÇÃO DA PSICOGÊNESE DA LÍNGUA ESCRITA

Como colocado, a partir dos anos de 1970, seguindo o curso da democratização do

ensino56, começou-se a perceber a necessidade de mudanças no sentido de

“encarar” e trabalhar o processo de alfabetização no âmbito escolar. Nesse contexto, não obstante as mudanças de métodos (do sintético ao analítico), o quadro da educação escolar no Brasil mantinha-se, pois, se se alteravam as práticas, não se afetavam os resultados; daí terem sido esses métodos, em momentos históricos determinados, motivos de debates e disputas no campo educacional e político:

Esses momentos e suas principais características são, muito resumidamente: 1º momento (1876 a 1890) – disputa entre os defensores do então ‘novo’ método da palavração e dos ‘antigos’ métodos sintéticos (alfabético, fônico, silábico); 2º momento (1890 a meados de 1920) – disputa entre os defensores do então ‘novo’ método analítico e dos ‘antigos’ métodos sintéticos; 3º momento (meados de 1920 a final da década de 1970) – disputa entre os defensores dos ‘antigos’ métodos de alfabetização (sintético e analítico) e dos então ‘novos’ testes ABC para verificação da maturidade necessária ao aprendizado da leitura e da escrita, de que decorre a introdução dos ‘novos’ métodos mistos; 4º momento (meados da década de 1980 a 1994) – disputa entre os defensores da então ‘nova’ perspectiva construtivista e os dos ‘antigos’ testes de maturidade e dos ‘antigos’57 métodos de alfabetização (MORTATTI, 2009, p. 95-96).

Como nos dá a ler Mortatti, seguindo o decurso histórico e dando continuidade ao fracasso escolar, mesmo mediante o vaivém de métodos, nos anos de 1980, o conceito de alfabetização passa por mudanças em termos conceituais e procedimentais. Tais mudanças acontecem, principalmente, tendo em vista a contribuição dos estudos da psicogênese da língua escrita (FERREIRO; TEBEROSKI, 1999), balizados pela teoria da epistemologia genética – teoria do conhecimento com base no estudo da gênese psicológica do pensamento humano do epistemólogo suíço Jean Piaget (1976, 1990) – e apoiados em teorias psicolinguísticas (Noam Chomsky, Kenneth Goodman, Frank Smith, Charles Read).

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A Constituição de 1969 voltou a vincular (conforme a Constituição de1967) a obrigatoriedade ao grau de ensino juntamente à faixa etária. Tornou-se então obrigatório o ensino primário para a população de sete a quatorze anos de idade. Baseada nessa Constituição, dois anos após, é promulgada a segunda LBD, Lei nº 5.692/71, que provocou alterações substanciais na estrutura do ensino vigente no país: criou o ensino de primeiro e segundo graus, unindo no denominado primeiro grau o antigo primário ao antigo ginásio, o qual passou a ter a duração de oito anos. O segundo grau se constituiu do antigo curso colegial, com duração de três anos e com a prerrogativa de ser obrigatoriamente profissionalizante (ROCHA; SANTOS, 2011).

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Tem-se, nesse sentido, o conceito de alfabetização de certa maneira “ampliado”, ou seja, deixam-se os métodos e o foco na decodificação e codificação e passa-se ao enfoque no processo ativo da criança, que, mediante o contato com materiais escritos, construiria e reconstruiria hipóteses sobre a natureza e o funcionamento da língua escrita.

A alfabetização passa, pois, de um sistema de decodificação e codificação para um sistema de representação. De acordo com Gontijo (2009, p. 15-16),

Concomitantemente às mudanças de natureza pedagógica, colocadas em vigor em muitos municípios brasileiros, desenvolveu-se uma mudança de natureza conceitual a respeito da aprendizagem da língua escrita, que se difundiu rapidamente no meio educacional. Assim, a partir da década de 80, com a divulgação do estudo de Ferreiro e Teberosky (1989) sobre a psicogênese da língua escrita, assistimos à inauguração de uma ‘nova’ forma de conceber a aprendizagem da leitura e da escrita e o crescimento da crença de que essa visão ajudaria a solucionar os problemas educacionais ligados à alfabetização na América Latina. Essa perspectiva (ou finalidade) de que a teoria de Ferreiro e Teberosky (1989) contribuiria para a solução dos problemas de aprendizagem foi registrada pelas autoras na introdução da obra, traduzida no Brasil com o título Psicogênese da

língua escrita58 [...].

Tendo em vista o que aponta Gontijo (2009) e o foco de investigação de nosso estudo, o modo como as relações sons e letras e letras e sons vêm sendo tratadas/trabalhadas nos livros didáticos de alfabetização, torna-se imprescindível buscarmos como a teoria construtivista influenciou e/ou tratou o ensino- aprendizagem dessas relações.

Nesse sentido, Ferreiro e Teberosky (1989) se contrapõem à consideração de se conceber a “aquisição” da leitura e da escrita de forma mecânica, como código a ser transmitido. Dessa maneira, essa teoria trata a “evolução” da aprendizagem da escrita por meio de hipóteses formuladas pelos próprios aprendizes tendo em vista o seu contato e, por conseguinte, as suas ideias e formulações com relação aos símbolos da escrita alfabética e, nessa perspectiva, à fonetização da escrita. Tem- se, assim, a hipótese pré-silábica, na qual não haveria, por parte do educando, o estabelecimento de uma relação entre as formas gráficas e os elementos sonoros da

fala; em seguida, a hipótese silábica, em que haveria a construção de hipóteses

sobre a fonetização da escrita, entretanto, esta iria ao encontro da sílaba como a referente para os sinais gráficos, ou seja, o aprendiz consideraria uma palavra e

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suas partes sonoras – as sílabas – e seria capaz de relacionar tais partes à linguagem escrita; e, por fim a hipótese alfabética, na qual os aprendizes compreenderiam a exata relação som e letra, no sentido da relação do fonema com

o grafema. Assim, primeiramente as letras representariam sílabas e, por

conseguinte, sons em separado, isto é, os fonemas, passando, pois, à correspondência fonema/som – grafema/letra.

Configurou-se, ainda, uma hipótese intermediária, a silábico-alfabética59, que

corresponderia a um momento de transição entre as hipóteses silábica e alfabética. Essas hipóteses acabaram se constituindo em fases e/ou estágios levados em consideração por professores alfabetizadores que tomaram como concepção teórica e metodológica a abordagem construtivista de alfabetização e, assim, serviram de referência para “categorizar” seus alunos em pré-silábicos, silábicos ou alfabéticos. Como o construtivismo possuía (e possui) bases genéticas, tais fases aconteceriam de forma linear, ou seja, todas as crianças passariam por tais estágios, pois, apesar de considerar o contexto interacional dos aprendizes, a ênfase construtivista recai sobre a questão biológica em detrimento da consideração do ambiente sócio- histórico e cultural no qual os aprendizes estariam inseridos e, dessa forma, o aspecto enunciativo-discursivo acaba sendo delegado a um segundo plano, haja

vista a posição e o papel do professor nesse processo60.

De acordo com Soares (2003b), quanto à divulgação dos pressupostos psicogenéticos no campo educacional, ocorreu o predomínio da faceta psicológica e o obscurecimento da faceta linguística61 – fonética e fonológica – na alfabetização. Desse modo, da concepção construtivista derivou-se a falsa inferência da incompatibilidade de métodos. No entanto, Gontijo (2005, p. 11) esclarece que

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Essa etapa é questionável como uma apropriação de Telma Weiz, porque Ferreiro trata de três níveis de evolução progressiva e contínua da escrita: 1) distinção entre desenho e escrita; 2) uma mesma cadência de letras não pode representar a escrita de nomes distintos; 3) marcado por três subníveis que correspondem a uma construção crescente de hipóteses conceituais da escrita; silábica, silábico-alfabética e alfabética.

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Estamos fazendo referência à interpretação e “emprego” da teoria construtivista no cenário educacional brasileiro. Atualmente, alguns autores questionam o emprego da palavra construtivismo ao se remeterem especificamente às teorizações de Ferreiro e Teberoski, e alguns apontam a necessidade da utilização dessa conceituação no plural, “contrutivismos” (MORAIS, 2005, 2010), dentre outros.

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O que corresponderia aos conhecimentos linguísticos formais necessários à apropriação inicial do sistema de escrita alfabético-ortográfico pelos aprendizes, dentre eles, as relações sons e letras e letras e sons.

[...] a ‘falsa inferência’, mencionada por Soares (2003b), de que a concepção ‘construtivista ou interacionista’62 de alfabetização é incompatível com os métodos de alfabetização derivou da idéia de que o processo de compreensão da natureza linguística da escrita ocorre por meio da interação sujeito e objeto (escrita), independente dos processos de ensino- aprendizagem. Portanto, aquilo que parece, para Soares (2003b), ser uma falsa inferência é de fato originária do modo como Ferreiro e Teberosky (1989) compreendem a evolução da escrita na criança: um processo que segue uma progressão linear.

Portanto, tanto a faceta psicológica quanto a linguística, de acordo com Gontijo (2005), não deixaram de ser privilegiadas, o que aconteceu foi que “[...] contraditoriamente, na prática, se passou, em muitas situações, a privilegiar propostas que não levem em conta a dimensão linguística da alfabetização” (GONTIJO, 2005, p. 11). Ainda segundo a mesma autora, as relações sons e letras

e letras e sons necessitam de ensino orientado63 e mediado, pois “[...] a capacidade

de usar a escrita para si como os outros a utilizam não surge e se desenvolve de forma espontânea e naturalmente” (GONTIJO, 2003, p. 136).

Por esse ângulo, podemos enfatizar que a perspectiva construtivista da “aquisição” da linguagem escrita considera a história da escrita e sua fonetização, no entanto, a entende como um processo linear e unilateral, daí a concepção de língua escrita como representação da fala.

Nesse viés, pode-se inferir que o “construtivismo” no Brasil, ao obscurecer a importância do papel mediador do professor, tendenciou a não considerar necessária a intervenção no que tange à reflexão e compreensão das relações sons e letras e letras e sons pelos estudantes. Morais e Albuquerque (2005, p. 213), a esse respeito, ao retomarmos a pesquisa empreendida pelos autores, argumentam que

Apesar de reconhecer que a criança, em determinado estágio, formula hipóteses de ‘fonetização da escrita’, Ferreiro e seus colaboradores resistem a considerar o papel desempenhado pelas habilidades de análise metafonológica na gênese das hipóteses que conduzem o aluno à apropriação da escrita alfabética. [...] Em lugar de atribuir à criança representações mentais idênticas às dos alunos letrados sobre o que é uma palavra ou um fonema, Ferreiro propõe que é a ‘opacidade’64 da notação escrita que permitirá aos aprendizes representarem mentalmente as

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Grifos da autora. 63

Preferimos utilizar a palavra “orientado” à palavra “sistemático” para não incorrermos em interpretações errôneas, como uma possível ênfase no método fônico/consciência fonêmica.

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propriedades das palavras da língua, entre elas a existência dos segmentos sonoros que as constituem [...].

Os autores remetem-se, assim, às chamadas habilidades metafonológicas65, que

vão ao encontro de pesquisas empíricas no campo da alfabetização que foram levadas a cabo no sentido de evidenciar a necessidade da reflexão metalinguística pelo aprendiz visando às características do sistema de escrita alfabética e, principalmente, ao que tange às relações entre a escrita e as unidades sonoras da

fala. Tal tendência e/ou concepção refere-se ao enfoque da “Consciência

Fonológica” na alfabetização, que traremos na subseção seguinte.

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