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10.6.4.3.3.2 A homenagem de Salacia

Esta inscrição corresponde ao fragmento de uma placa de mármore (nº 46) destinada a ser encastrada num edifício erigido no município de origem de L. Cornelius Luciii f. Galeria Bocchus, que dispensou os gastos para a sua construção, constituindo este gesto de munificência pública uma preciosa oportunidade para publicitar a sua brilhante carreira na fachada de tal edifício (GONZÁLEZ HERRERO, 2006: 40; idem, 2013: 406).

Verifica-se que o primeiro cargo gravado após o nome do seu benfeitor foi a praefectura Caesarum bis seguida de outras honras cívicas, todos elas sem leitura possível com exceção do flaminato decretado para a perpetuidade. Seguidamente ao cursus cívico vem a praefectura fabrum V e o tribunatus militum, honras mencionadas em ordem idêntica à do pedestal de Olisipo (nº 44). O homenageado obteve assim as honras em Salacia depois de ter desempenhado o tribunado e a praefectura fabrum, culminando o cursus cívico com a praefectura Caesarum, antes de ser eleito pelo concílio para ocupar o flaminato provincial, cargo ausente nesta epígrafe. Pode-se então concluir que L. Cornelius L. f. Gal. Bocchus protagonizou um cursus honorum misto, composto por três elementos: honores municipais, praefectura fabrum e tribunatus militum, gravados sobre a placa de modo inverso à ordem pela qual o beneficiário obteve as honras.

Não surpreende o facto da sua carreira militar não ter ido além da primeira milícia uma vez que esta circunstância foi habitual nos equites de época júlio-cláudia, explicando-se pelo facto de desde finais da República o tribunado ter sido entendido como uma graduação equestre por excelência, servindo apenas para obter reconhecimento público. Durante a dinastia júlio-cláudia manteve-se a prática dos magistrados cum imperium nomearem praefecti fabrum para que os assistissem realizando tarefas militares e civis.

Assim, de acordo com estes dados, depois do tribunado, o salaciense foi nomeado praefectus fabrum por cinco ocasiões pelo governador provincial a quem esteve subordinado como tribuno da legião VIII Augusta. Dado que a prefeitura acompanha unicamente o tribunado e, depois dela L. Cornelius L. f. Gal. Bocchus exerceu um cursus cívico, é provável que esta tivesse sido outorgada pelo governador de forma honorífica (GONZÁLEZ HERRERO, 2002b: 72; idem, 2004: 368-69; idem, 2006: 43-44; idem, 2011: 251; idem, 2013: 407-09; ENCARNAÇÃO, 2011a: 192).

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Das honras cívicas que recebeu no seu município de origem, entre elas a praefectura Caesarum bis e dois sacerdócios decretados para a perpetuidade, destaque-se a primeira que exige maior atenção por, invulgarmente, ter sido exercida por duas vezes.

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José d’Encarnação (2011a: 197-99) sugere que os Césares mencionados de forma genérica seriam Lúcio e Gaio, filhos adotivos de Augusto. Todavia, tal leitura levanta algumas questões, uma vez que o título flamen prouinciae somente entrou em uso após a divinização de Cláudio. Admitindo que a função de praefectus Caesarum tenha sido desempenhada pouco tempo após as mortes de Gaio e Lúcio e, sabendo que Nero começou a governar no ano 54 d. C., torna-se difícil, senão impossível, estruturar o cursus honorum de L. Cornelius Bocchus ao longo de quase setenta anos, uma vez que para ser nomeado praefectus Caesarum (a primeira função que desempenhou) teria de ter no ano 4 d. C. (ano de morte de Gaio), pelo menos 18 anos, e 68 anos quando o proclamaram flamen prouincialis, coroando assim a sua carreira com o título perpétuo.

Recentemente, José d’Encarnação lançou a hipótese da praefectura Caesarum não ter sido o cargo de culminação do cursus mas antes o primeiro, defendendo então que Bocchus poderia ter desempenhado em Salacia uma função específica, tal como supervisionar as homenagens, a promoção do culto ou as manifestações de fidelidade e clientelismo dirigidas a Lúcio e Gaio, suficientemente bem conhecidos em todo o Império para serem designados de forma genérica como “os Césares”. O mesmo investigador sustém que o financiamento do edifício por Bocchus se inseriu no movimento de lamentação pela perda dos Césares que se estendeu pelas cidades posteriormente a 14 de Fevereiro do ano 4 d. C., no qual Gaio faleceu.

Defende ainda que esta personagem tivesse sido nomeada pelo cônsul sufecto L. Fulcinius Trio, governador da Lusitânia, como curator templi Diui Augusti “o que muito bem se coaduna com todo o seu percurso de enorme fidelidade ao poder central!” (ENCARNAÇÃO, 2011a: 199). Todavia, a sua nomeação pelo cônsul não é compatível com a condição de praefectus fabrum de L. Fulcinius Trio, governador da Lusitânia entre os anos 21? e 31 d. C., tendo por base a inclusão do nome deste personagem em genitivo no cursus honorum gravado sobre a placa (nº 47) recentemente achada no forum colonial de Augusta Emerita51.

No entanto, se o financiamento do edifício de Salacia foi uma forma de expressar o pesar pela perda dos Césares em Fevereiro do ano 4 d. C., Marta González Herrero (2013: 410) questiona “por qué esperar tanto tiempo después de la muerte de Lucio y Gayo para hacerlo? Tiene sentido honrarles casi veinte años después de su muerte, ya durante el principado de Tiberio?” Assim, “¿Quiénes pudieron ser los Césares a los que se alude en la inscripción?”.

Robert Étienne (1958: 124) identifica-os com Augusto e Tibério ou com Vespasiano e Tito. Conquanto a segunda hipótese seja completamente inviável, dada a datação júlio-claudiana da inscrição, a primeira ajusta-se ao intervalo temporal em que nos movemos. No entanto, verifica-se por

51 Note-se que na inscrição comemorativa da construção financiada por Bocchus em Salacia já figura a praefectura fabrum V.

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um lado que o principado de Augusto apresenta uma cronologia demasiado precoce e, por outro, a variabilidade na indicação do nome das legiões comandadas pelos Cornelii Bochi aproxima-nos antes do imperialato de Cláudio.

Noutra perspectiva, no ano 4 d. C. Augusto adopta Tibério e Agripa, tendo o primeiro se convertido em co-regente em 14 d. C., após a morte de Augusto. Neste panorama, se os Césares foram Agripa e Tibério, o cursus honorum deveria ter sido gravado durante o período compreendido entre os anos 4 e 14 d. C., invalidando que Bocchus tenha sido praefectus fabrum de L. Fulcinius Trio sob Tibério.

Por outro lado, Marta González Herrero (2013: 410-412) levanta a hipótese dos Césares se tratarem de Druso, o jovem, e Germânico; o primeiro, filho biológico de Tibério e o segundo seu sobrinho e filho adotivo. Quando no ano 4 d. C. morreu o segundo dos netos de Augusto, o imperador adotou Tibério e obrigou-o a fazer o mesmo com o seu sobrinho Germânico. Os filhos de Tibério alcançaram grande popularidade na Hispânia onde receberam dedicatórias, sendo prova indiscutível da sua popularidade na Lusitânia o facto de em Olisipo se ter rendido culto a Germânico em vida, tal como revela a atuação de um flamen Germanici Caesaris (nº 41).

Se os Césares foram Druso e Germânico, a eleição de L.Cornelius L. f. Gal. Bocchus para os servir teve de se produzir ainda em vida destes, o que leva a considerar o ano de 19 d. C. no qual faleceu Germânico como término de datação ante quem, não sendo ainda esta compatível com a assistência ao governador da Lusitânia entre os anos 21? e 31 d. C., uma vez que Bocchus teria de ter ocupado a prefeitura entre os anos 4 e 19 d. C., enquando Germânico se intitulava Caesar.

Por conseguinte, S. Demougin (apud GONZÁLEZ HERRERO, 2013: 410-412) considera os Césares, Nero César e Druso César, filhos de Germânico, defendendo que os seus nomes pudessem ter sido intencionalmente silenciados uma vez que quando a placa foi gravada, estes já haviam caído em desgraça por decisão do próprio Tibério.

Nero e Druso foram ganhando protagonismo em Roma entre os anos de 20 e 23 d. C., consolidando a sua posição quando Tibério os sugeriu publicamente aos senadores para o substituir. Porém, a relação do imperador com a família de Germânico acabou por se deteriorar, acabando por mandar exilar Agripina, Nero (morto no ano 30 d. C.) e Druso (morto em Outubro de 31 d. C.), previamente declarados pelo Senado como inimigos públicos.

Tendo em conta estas circunstâncias, não faz sentido que Salacia mostrasse a sua fidelidade à casa imperial precisamente no momento em que os príncipes eram perseguidos. É mais provável que o município oferecesse a magistratura honorífica a Nero e Druso quando estes gozavam ainda da aprovação de Tibério, entre os anos 20 e 23 d. C. Não obstante, certamente não se pode descartar a possibilidade de estar aqui testemunhado um silêncio intencionado, uma vez que os nomes dos Césares

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não se lêem sobre a placa. Neste panorama, se os Césares foram Nero e Druso, a placa deve ter sido gravada em Salacia entre os anos 20 e 30 d. C. (datação compatível com a praefectura fabrum sob Tibério), tanto mais se os seus nomes não se mencionaram, mas foram antes intencionalmente silenciados (GONZÁLEZ HERRERO, 2006: 42-43; idem, 2013: 411-412).