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O AGER OLISIPONENSIS

3. Divindades cultuadas

3.3. Divindades Orientais

3.3.1. As Religiões Mistéricas

Em primeiro lugar, há que ter em conta que as religiões mistéricas constituiram uma unidade religiosa com características comuns (entre elas, o rito de iniciação e o secretismo dos actos rituais) que as diferenciou dos cultos que compunham o sistema oficial do Império (ALVAR, 1993: 790). As religiões mistéricas configuravam o seu trama teológico-conceptual em torno das ideias como participação e salvação, morte e ressurreição. Os novos ideais de esperança começaram assim a ser partilhados por aqueles que tinham perdido a fé no destino nacional e a transferiram para o plano espiritual.

Neste quadro, pretende-se estabelecer as causas que levaram alguns membros da população, a orientar as suas inquietudes para as religiões mistéricas, deixando de canalizar o seu sentimento religioso para a Religião de lealdade patriótica promovida pelo Estado. Esta, do ponto de vista psicológico, ao abordar as situações existenciais e a dimensão transcendental de um modo racionalista não proporcionava às massas, na sua maioria iletradas, uma explicação e resposta satisfatória às questões prementes.

Numa sociedade altamente hierarquizada onde a mobilidade, ainda que existisse, não era grande, e as possibilidades de promoção social não eram oferecidas a todos por igual, respirava-se uma atmosfera de inquietude e desassossego face à incapacidade de se traçar o próprio destino, tendo em

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conta que este já estaria fixado de antemão pela vontade dos deuses (astros e Fatum). Por conseguinte, verificou-se um abandono do esforço de superação ético-pessoal, abrindo-se as portas à difusão das religiões mistéricas, rodeadas de magia e misticismo, que aceitavam todas as camadas sociais por igual.

Estas, nas cerimónias, ofereciam aos seus fiéis um modo especial de participação e contribuíam para a dissipação do desalento e angústia da alma face ao seu destino. Mediante a execução de ritos específicos, como a purificação e busca da união com a divindade, era agora oferecido o acesso a uma imortalidade que não se produzia imediatamente após a morte física do corpo mas que começava com a iniciação que, em certo sentido, implicava a “morte” da vida passada para que se pudesse renascer numa nova vida imortal, que continuava sem alteração substancial depois da morte biológica.

Neste quadro, nas diversas províncias do Império, entre elas na Lusitania, as religiões mistéricas conheceram grande difusão, uma vez que ofereciam um novo rumo à vida dos seus crentes a partir de novas e promissoras espetativas, sem nenhum tipo de condicionamento social, auxiliando na superação das limitações do seu estatuto e, simultaneamente, dos temores face às artimanhas do destino (ABENGOCHEA, 1986: 143-45).

3.3.2. Casos problemáticos

3.3.2.1. Dea

Foi identificada em 1983, em Talaíde (Cascais), uma árula votiva (nº 25) de mármore rosa das antigas pedreiras de S. Domingos de Rana, datada da primeira metade do séc. I d. C., que se conserva no Museu dos Condes de Castro Guimarães.

O monumento constitui uma oferenda (donum) tributada por dois indivíduos à divindade de cujo culto eram ministros. Não se trata pois de um ex-voto em sentido estrito mas antes, de uma oferta para ser integrada num templo, que poderia materializar um hábito documentado também noutras magistraturas e sacerdócios, de homenagem à divindade num gesto de summa honoraria, aquando da nomeação para desempenho do cargo (ENCARNAÇÃO, 2001a: 29).

No que toca aos dedicantes, estes identificam-se somente mediante o uso de cognomina de origem grecizante – Augus e Hermes -, sem filiação, e a menção ao cargo religioso que desempenhavam, apontando para uma pertença à classe dos libertos. A existência de magistri implica um culto organizado que seria praticado num templo, implicando por isso a presença de um local onde de desenrolassem as práticas religiosas. Contudo, ainda que não se possuam as provas materiais necessárias para sustentar tal hipótese, a identificação de divindades mediante palavras comuns como Dea, pode indicar a presença de um santuário na zona. A ausência da especificação do teónimo em

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causa pode então ser explicada pelo facto de a ara estar destinada a ser colocada no recinto sagrado da própria divindade (ENCARNAÇÃO, 1985-86: 307).

Relativamente à identificação da divindade, podemos avançar de imediato com a hipótese de se tratar de uma divindade feminina, dado os ofertantes se identificarem como deae magistri. Mas qual a divindade que se oculta sob a denominação de Dea? Apesar de existirem raras exceções, não parece coerente dois libertos, provavelmente orientais, fazerem uma oferenda a uma deusa indígena, sobretudo desempenhando o cargo religioso de magistri, uma vez que não se conhece, até ao momento, um único caso que documente uma hierarquia religiosa nos cultos das divindades indígenas.

Por conseguinte, excluídas as divindades indígenas, podemos então estar perante qualquer divindade do panteão romano ou oriental. Jaime Alvar (1983: 123-25) colocou a hipótese de estarmos perante uma manifestação do culto de Cybele, a deusa oriental por excelência, baseando-se na comparação com outras inscrições do império, nomeadamente a epígrafe de Bulla Regia (CIL VIII 10577=14467) a Dea Sacra; a de Óstia (CIL XIV 74) consagrada a uma desconhecida Dominae; e a de Histonium (CIL IX 2839) consagrada também a uma desconhecida Deae. Destaque-se na primeira o facto de o dedicante ser um liberto oriental; e na segunda o facto de esta ter sido encontrada no templo de Juno (assimilada a Mater Deum) e o motivo da dedicatória (iussu deae) bem se enquadrar com as fórmulas usadas nas inscrições a Cybele.

Contudo, nenhuma destas observações é suficiente para identificar a domina de Óstia ou a dea de Bulla Regia e de Histonium com Cíbele. Concomitantemente, também não há nenhum impedimento para que não possamos considerar que esta divindade seja a mesma que a de Cascais, ainda que o mais provável é que não o seja.Confronte-se então com outra inscrição, agora de Sitifis na Mauretania (CIL VIII 8457), Deorum Omnipotentium sancta […] / Thryst(a)e religiosissimum templum c[…] / una cum religiosis et dendrofori[s…] / singulari simulacrum deae arge[nteum … ]. Apesar da ausência do teónimo podemos, inequivocamente, identificar esta dea com Magna Mater graças à aparição do termo dendroforis que alude à confraria que, nas cerimónias primaveris, transportava o pinheiro sagrado representante de Attis.

Atente-se ainda a outra inscrição, novamente de Óstia (CIL XIV 38), peça chave para a identificação da referida dea com Cíbele, uma vez que se encontra gravada na base de uma estátua de Átis; e a uma inscrição de Puteoli na qual surge um claro sincretismo entre Vénus Celeste e Cybele, num contexto que remete para um taurobolium: L(ucio) Iulio Ur[so Serviano] / co(n)s(ule) III non(is) O[ct(obribus)] / ecitium taurobolium / Veneris Caelestae (sic) et panteliu[m] / Herennia Fortunata imperio deae / per Ti(berium) Claudium Felicem sacerd(otem) / iterata est (CIL X 1596=2602).

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Ao parecer confirmar-se que o teónimo de Cybele é dos poucos orientais a serem omitidos na epigrafia latina, poderá atribuir-se a epígrafe de Cascais ao culto de Cybele na Lusitânia, província hispânica mais rica em testemunhos metróacos. Esta inscrição vem enriquecer o conhecimento sobre o culto à Mãe dos Deuses, atendendo a que a importância desta epígrafe reside no facto de, não obstante “magister” ser uma denominação genérica para um encarregado do culto de qualquer divindade, até ao momento este título não tinha sido documentado na classificação dos sacerdotes do culto de Cybele na Hispania, e admite a existência de uma comunidade de iniciados nos mistérios desta deusa no ager olisiponense (ALVAR, 1983: 127-29).

No entanto, José d’Encarnação (1985-86: 309-310) põe em causa a validade dos exemplos propostos por Jaime Alvar, que constituiriam a prova da identificação da Dea de Cascais com Cíbele, salientando, por um lado, que a paleografia e a tipologia do monumento apontam para o séc. I d. C., estando ainda ausentes vestígios peninsulares do culto a Cíbele; e, por outro, o facto de que, ainda que se verifique uma tendência nesse sentido, necessita ainda de confirmação a identificação da Cíbele mediante o substantivo comum dea.

3.3.2.2. A inscrição em sigla de Alenquer

No uicus de Ierabriga (Alenquer) foi descoberta uma inscrição votiva (nº 28) datada do séc. II d. C., na qual todo o texto surge escrito em sigla. A omissão do teónimo poderia explicar-se pelo simples facto da árula ter sido colocada no próprio santuário da divindade, sendo desnecessário referir o seu nome (ENCARNAÇãO, 1985-86: 307), tal como no caso da suposta inscrição a Cybele acima mencionado (nº 25).

Se reduzirmos o nome da dedicante ao gentilício, a terminação ‘CIA’ em nominativo singular sugere estarmos perante uma dedicante denominada Peticia, Porcia, Voluscia, Felicia ou Marcia, entre muitos outros uma vez que esta terminação é muito abundante. Se considerarmos a terminação como sendo um cognomen, seria mais natural estarmos perante uma Patricia, com casos já registados em Olisipo (OAP 5, 1900, 173).

Por sua vez, a fórmula L.A.V.P pode indicar estar-se perante uma inscrição votiva, onde V(otum) S(olvit) não é necessariamente sinónimo de V(otum) P(osuit), significando na primeira hipótese que alguém cumpriu um voto feito a uma divindade, e na segunda remetendo diretamente para o que foi prometido à divindade. Uma análise minuciosa evidencia um “XV” a terminar a penúltima linha, que poderá esconder outra abreviatura em que o “X” seria antecedido por um “E”, resultando na preposição “EX”, sendo que o “V” desdobrar-se-ia em V(oto) ou V(isu). A primeira fórmula significa “na sequência de uma promessa” e a segunda “na sequência de uma visão ou sonho”. Por outro lado,

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pode considerar-se ainda “XV” como indicativo do numeral decimal 15, sugerindo tratar-se não da idade uma vez que não se trata de uma inscrição funerária, mas antes da indicação da natureza da oferenda, por exemplo o peso ou valor de uma estátua de prata.

Tendo em conta a possibilidade da leitura da fórmula ex-visu, frequentemente conotada com o culto às divindades orientais, e a possibilidade de estarmos perante a oferta de uma estátua, talvez similar à de Átis (CIL VIII 8457) de Sitifis, parece plausível que a divindade aqui cultuada seja também Cybele (SALVADO, FERREIRA, ROBALO e ROBALO, 1986: 7-10).

Todavia, considero ser muito arriscado atribuir esta inscrição ao culto de Cybele utilizando apenas como argumento esta fórmula, uma vez que nos movemos perigosamente num terreno totalmente conjetural.