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Organização interna da Augustalidade

A VRBS OLISIPONENSIS

10. Os sacerdócios do culto imperial: terminologia e organização

10.2. Organização interna da Augustalidade

O nome da instituição nasceu da derivação do título Augustus recebido por Octaviano em 27 a. C., conferindo assim a esta um carácter religioso. Por outro lado, os augustais constituiram também

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uma corporação com características similares às associações profissionais, mas associados às medidas de promoção do culto imperial (DUTHOY, 1976b: 1293).

Revendo algumas premissas do capítulo anterior, considerou-se que os augustalis eram nomeados anualmente pelo ordo decurionum, de entre um meio social diverso do dos flâmines, resultando num colégio constituído por libertos abastados que constituiam uma confraria religiosa, reconhecida oficialmente no seio das colónias e municípios, que se ocupava por um lado com o culto e homenagem aos imperadores e, por outro, com o financiamento do ornato urbano (SERRANO DELGADO, 1988: 109; MANTAS, 2001: 39; FERNANDES e CAESSA, 2006/07: 110).

Ainda que os augustais surjam como o grupo mais dado à prática da munificência pública - mecanismo social, económico e político que os elevaria à esfera das elites locais -, no entanto, conhece-se muito pouco sobre o seu funcionamento, obrigações e estrutura interna. Não obstante, sabe-se que, numa linha de mimetismo com as mais altas instituições municipais, os augustais imitaram e inspiraram-se no ordo decurionum, surgindo com frequência, tal como os duúnviros, em associação na mesma inscrição. Em certas ocasiões, o ordo augustalium, surge a ocupar uma posição intermédia entre a plebe e o ordo decurionum, refletindo-se na expressão secundus ordo. Assim, quando um município queria honrar de forma especial um augustal, conceder-lhe-ia distinções próprias dos decuriões, nomeadamente os ornamenta decurionalia e a possibilidade de assistir aos espetáculos e banquetes, juntamente com os membros do senado local, e a receber o mesmo que eles nas sportulae (DUTHOY, 1976b: 1283-84; CASTILLO GARCÍA, 2003: 78-81; GONZÁLEZ HERRERO, 2009: 449; ALMEIDA, 2011: 72).

Como cargo sujeito ao pagamento de summa honoraria, a augustalidade converteu-se numa via de acesso à elite municipal, ficando assim caraterizada por ser uma instituição tipicamente urbana, intimamente ligada à promoção social do elemento liberto43. Neste contexto, os libertos realmente poderosos do ponto de vista económico e com ambições na vida política municipal recorreram à distinção dada pela augustalidade de modo a destacar claramente a sua condição de notáveis municipais (SERRANO DELGADO, 1988: 207-212; idem, 1993: 155).

Como se referiu supra, o desempenho do cargo implicava uma série de obrigações que exigiam consideráveis desembolsos económicos: esperava-se o pagamento dos summa honoraria para aceder ao cargo e, posteriormente, a realização de outros atos evergéticos44. A augustalidade converteu-se assim numa das grandes animadoras da vida local (TAYLOR, 1914: 232; SERRANO DELGADO, 1988: 134-36).

43 Vide Anexo 3, alínea 3.9.2.1., para mais informações sobre a classe liberta. 44 Vide Anexo 3, alínea 3.9.3., para mais informações sobre os tipos de evergetismo.

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Enquanto o título honorífico perpetuus, conservado depois da saída do cargo, faria remeter a augustalidade para a condição de sacerdócio; o carácter público e oficial e a aplicação do termo honos, particularmente sob a forma das dedicatórias ob honorem seuiratus ou Augustalitatis, tão característica do desempenho de uma magistratura, aproximá-lo-iam destas (VASCONCELOS, 1913: 323-324; SERRANO DELGADO, 1988: 108; CASTILLO GARCÍA, 2003: 82). Estas dedicatórias consistiam em atos de munificência que o novo augustal realizaria de livre vontade (ainda que carregado de obrigações morais), cuja independência e espontaneidade é visível na fórmula de sua pecunia (DUTHOY, 1976b: 1281; SERRANO DELGADO, 1988: 137-39).

Por outro lado, se o colégio dos seuiri augustalis era composto por seis indivíduos nomeados anualmente, tal unanimidade faltou aos augustais. Parece certo que estes tivessem, conscientemente, imitado o modelo do ordo decurionum para a sua estrutura ou, ainda que menos plausível, algo similar ao dos magistri vici, dos sodales augustales, das associações de cultores ou dos seis magistrados municipais (2 duoviri + 2 aediles + 2 quaestores) (DUTHOY, 1976b: 1290).

Nesta sequência, rejeita-se a antiga tese de que os augustais corresponderiam aos antigos seuires, admitindo-se antes que constituissem uma organização diferente. Taylor aponta para a distinção entre augustalis iterum ou perpetui, nos quais o primeiro título implicaria que a função de augustal tivesse sido exercida por tempo limitado, provavelmente um ano, sendo a perpetuidade uma distinção honorífica excecional (idem, ibidem: 1277-78). No entanto, a perspetiva mais sólida parece ser a de Von Premerstein, que parte da ideia de que no início tenha existido uma grande heterogeneidade na instituição.

Posteriormente, augustalis e seuiri augustalis seriam duas instituições separadas, com claras diferenças estruturais, estando a primeira mais próxima de um colégio sacro, e a segunda refletindo uma notável similitude às magistraturas municipais. Com o advento do séc. II d. C., concretamente entre Adriano e Antonino Pio, produziu-se uma reforma que regulou uma única instituição de carácter colegial, mas conservando a diversidade na titulatura (SERRANO DELGADO, 1988: 105).

Relativamente à função cultual, são variadas as divindades objeto de dedicatória por parte dos augustais da Hispania, abrangendo quer divindades do panteão romano quer virtudes imperiais divinizadas; consagradas tanto a imperadores vivos como divinizados, erigidas pro salute imperatoris ou in honorem domus divinae (DUTHOYb, 1976: 1297-98). Em Olisipo, destaquem-se as inscrições dedicadas por augustais ao divino Augusto, por C. Arrius Optatus e C. Iulius Euthicus (nº 31); a Nero, por C. Heius Primus (nº 32); a Apollo, por M. Iulius Tyrannus (nº 11); a Esculápio, por M. Afranius Euporio e L. Fabius Daphnus (nº 8); ou a Mercurius, por C. Iulius C. Iulii libertus (nº 20), divindade associada ao comércio, atividade que poderá ter permitido o enriquecimento de alguns destes libertos.

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Não obstante, a concreta função cultual dos augustais continua motivo de discussão, ainda que pareça apropriada a proposta de Duthoy (1976b: 1296-1301) que os associa aos Genii e Numen Augusti, e aos lares Augustorum, devido à política religiosa de Augusto que não permitia o culto à sua pessoa em vida. Neste panorama, os augustais ficaram associados a um culto que não implicava a divinização direta da pessoa do imperador, explicando-se assim a escassez de dedicatórias diretas

(DUTHOYb, 1976: 1299; SERRANO DELGADO, 1988: 106-07; GONZÁLEZ HERRERO, 2009:

449).

Duncan Fishwick (1993: 364) propôs atribuir-se um significado mais religioso ao culto do Genius Augusti do que ao do seu Numen. Claramente, Augusto teria o Genius mais importante de todos, por isso a ele era sacrificado um touro (o mesmo tipo de animal sacrificado como oferenda a Júpiter); porém, para o seu Numen, seria realizado um culto de outra ordem. Por não ser na sua essência uma divindade mas uma propriedade divina inerente ao homem que é objeto de ritos, o objetivo seria desviar a atenção para a pessoa do imperador vivo e enaltecer o carácter de Augusto e dos seus descendentes (DUTHOY, 1976b: 1300). Nas suas palavras “… to credit Augustus with númen is the highest honour possible. But this did not make Augustus a god …, the emperor’s divinity must be understood not as the conferring of divine nature upon Augustus but rather as the working of divinity through the agency of the human emperor” (FISHWICK, 1993: 365).

A evolução da instituição caminhou paralelamente à evolução do culto imperial, ambas perdendo o seu sentido religioso, transformando-se, pouco a pouco, em instituições políticas. Constata-se um declínio na 2ª metade do séc. III d. C., não pela chegada do cristianismo, mas por esta ter perdido completamente a sua essência de instituição religiosa; a confirmar esta hipótese temos o exemplo da sobrevivência de diversas instituições de culto imperial com o advento do cristianismo, nomeadamente o flaminato.

Considera-se então que, dada a sua dependência ao fenómeno evergético e às fortunas que estariam por detrás dele, o desaparecimento dos augustais se relacionou antes com fatores sócio- económicos e sobretudo com os efeitos da crise do séc. III d. C. Esta crise resultou numa recessão económica devido à política centralizada, pressão fiscal sobre as cidades e as consequências do fim das conquistas que inviabilizaram a chegada de novo espólio e escravos, destruindo-se assim as três condições que tornavam possível a augustalidade: prosperidade económica, vida urbana florescente e presença de classe de notáveis abastados (DUTHOY, 1976b: 1305-06).

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10.2.1. Augustalis Perpetuus

O prestígio, riqueza e ações evergéticas levaram os antigos augustalis a alcançarem a perpetuidade. A concessão desta honra sugere uma prévia limitação temporal no desempenho do cargo, supondo-se que seria anual, como acontece também noutras magistraturas municipais. É curioso que este título seja praticamente desconhecido fora da epigrafia da Hispania, concentrando-se em Olisipo dois indivíduos honrados com o título ‘augustalis perpetui’, nomeadamente C. Heius Primus (nº 32) e Q. Iulius Plotus (nº 41) (DUTHOY, 1976b: 1272; SERRANO DELGADO, 1988: 165-66).

10.2.2. A condição civil

Conquanto os investigadores continuem divididos no que toca à origem social dos augustais, à partida, estes seriam sacerdotes do culto imperial de origem servil. Porém, para melhor se definir socialmente esta instituição e avaliar a sua importância na promoção do sector liberto, é essencial determinar o seu grau de penetração na augustalidade.

Se Mommsen afirma que todos os augustais seriam libertos, Von Premerstein e R. Duthoy (1976b: 1268-69) admitem a presença de uma pequena parte de ingenui entre eles. As opiniões divergentes derivam de uma efetiva presença de elementos ingénuos nas inscrições procedentes de cidades do centro e norte de Itália, onde se desenvolveu uma situação complexa devido à justaposição de instituições (augustalis, seuiri Augustalis, magistri augustalis etc.).

No entanto, Serrano Delgado (1988: 98-99 e 109) defende que as várias realidades e terminologias que a organização apresenta não se aplicariam tal qual nas províncias, onde podemos esperar encontrar uma maior homogeneidade. Ademais, a concessão da cidadania seria para o augustal uma honra importante de que deixaria com orgulho registada, daí que a sua quase total ausência nas inscrições sugira que a cidadania romana não fosse um requisito obrigatório para aceder a este cargo.

Encontra-se atestado em alguns libertos a tentativa de dignificação da sua nomenclatura, isto é, alguns augustais acrescentaram outro nome aos seus tria nomina, é o caso de C. Heius Primus Cato, augustalis perpetuus (nº 32), que adotou um cognomen de nobre tradição romana (Cato). Ainda que efetivamente se trate de um ingenuus, teria origem servil, surgindo num contexto sócio-familiar de libertos (nº 40), o qual ajuda a compreender a sua presença numa instituição tão marcada socialmente pela classe libertina. Há que ter em conta também a antiguidade da inscrição - época júlio-cláudia -, datada por Hübner para 57 d. C. Quiçá a instituição nestes primeiros momentos não estivesse ainda tão bem definida, e o acesso de determinados ingenui não fosse tão excepcional como o foi no momento máximo do seu desenvolvimento (séc. II d. C.).

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No entanto, podemos concluir que não obstante o elemento liberto se interessar em ocultar a sua origem servil, esta apresenta-se maioritária. Na Hispânia c. de 45% dos cognomina ostentados pelos augustais são de origem greco-oriental, contrastando com a nomenclatura de outros magistrados que somente verifica c. de 3% ou 4% de cognomina desta origem. Salientem-se alguns augustais olisiponenses com cognomina de origem orientalizante como M. Afranius Euporio (nº 8), L. Fabius Daphnus (nº 8), C. Iulius Eutichus (nº 31) e M. Iulius Tyrannus (nº 11). (LAMBRINO, 1951: 41; ÉTIENNE, 1958: 251-252; SERRANO DELGADO, 1988: 101-03; ALMEIDA, 2006: 26).

10.2.3. A vida social

A análise das relações sociais é essencial para a compreensão da sociologia de um grupo humano, sobretudo no que respeita aos augustais que teceram incessantemente uma ampla rede clientelar garantida pela fides, e se rodearam de vínculos de amicitia que pressupunham necessariamente o estabelecimento de contrapartidas e o reconhecimento de uma hierarquização.

A condição de libertus e a presença de um patronus ao qual se uniam através de vínculos legais e pessoais são duas condições fundamentais para uma correta compreensão da promoção social desta elite. O desejo de beneficiar do prestígio superior do seu patrono, e o reconhecimento e gratidão pelo seu apoio, levaram frequentemente à sua menção na identificação dos augustais. Neste quadro, podemos concluir que a identificação na mesma cidade de vários augustais com o mesmo nomen sugere que o acesso ao cargo pudesse não ter sido apenas fruto de esforço pessoal, mas que implicasse a pertença a um determinado grupo gentilício (SERRANO DELGADO, 1988: 121-24 e 128; ÉTIENNE, 1993:86).

Por outro lado, a manumissão não provocou o abandono da atividade do patronus em prol do seu liberto, uma vez que são numerosos os benefícios que este poderia obter com o acesso do seu antigo escravo à condição de augustal. Erradamente tem-se vindo a destacar o carácter de “liberto independente”, afastado do seu patrono, dono do seu destino e sozinho nas promoções que consegue; quando na realidade as relações patronus/libertus acentuam continuamente o grau de dependência, vinculação e subordinação.

Assim, é plausível supôr que, pelo menos na Hispania, a ligação ao patronus tivesse sido um dos elementos fundamentais - senão o principal - na promoção dos libertos à augustalidade. Na maioria dos casos, o liberto acede a este cargo não tanto pelo esforço pessoal, mas pela capacidade de ação e pressão da gens patronal na política local. Não obstante, o patrono também extrairia benefícios desta situação, uma vez que colocando um dependente seu nos cargos públicos garantiria o seu poder na

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esfera municipal; revertendo-se ainda na sua figura a popularidade que o liberto obteria em virtude dos seus próprios atos públicos (SERRANO DELGADO, 1988: 133-34).

Por outro lado, ser esposa de um augustal pressupunha a aquisição de um estatuto honorífico verificando-se, em certas ocasiões, um interesse em se associar a esposa à atividade pública. Destaque- se também a importância que para um liberto tinha a sua descendência, uma vez que esta, já ingenua, ao carecer das limitações legais necessárias ao acesso aos mais altos cargos municipais, podia almejar chegar às metas vedadas ao pai. Concomitantemente, se um pai liberto se poderia promover através da carreira do filho, o status do filho também seria melhorado pela condição de augustal do pai, assimilando as suas honras e dispondo de uma sólida base económica e de relações sociais (SERRANO DELGADO, 1988: 116-18).