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Homenagens ao imperador Nero

A VRBS OLISIPONENSIS

9. As Homenagens Imperiais

9.2. Homenagens ao imperador Nero

Antes de mais, é essencial relembrar que, usualmente, a homenagem não consistia na inscrição em si (à exceção dos ex-votos), servindo esta apenas para definir o homenageado, o autor da homenagem e, por vezes, a ocasião de tal homenagem. Assim, o objeto principal da dedicatória não

36 Tenha-se em conta as excepcionais dimensões do pedestal (118 x 112 x 60 cm) face a outras inscrições, como

por exemplo a consagrada ao questor da Bética L. Caecilius Celer Rectus (237 x 102 x 30 cm) (nº 59), ao imperador Nero encontrada nas Termas dos Cássios (106 x 88 cm) (nº 32), ao imperador Vespasiano (66 x 44 cm) (nº 34) ou à flamínica […]lia Vegeta (69 x 45 x 47 cm) (nº 54).

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seria a inscrição mas antes, e em regra geral, uma representação figurada do homenageado (estátua ou busto) (STYLOW, 2001: 150).

É neste contexto que se tem de entender a polivalência das homenagens como veículos de significados. Considerar que o objetivo principal de qualquer dedicatória é render homenagem ao beneficiário pode ser uma perspetiva um pouco simplista da realidade uma vez que qualquer ereção honorífica destaca também o ofertante que, quiçá, nunca conseguiu ele mesmo receber uma homenagem pública. Neste panorama, através da dedicatória, teria agora oportunidade de atrair a atenção pública para a sua própria pessoa e destacar os seus próprios méritos. Não é então por acaso que se conhecem inscrições nas quais a parte do texto que se refere ao dedicante é tão ou mais longo do que a do homenageado. Por outro lado, as inscrições públicas mandadas erigir quer por membros individuais das elites locais quer pela comunidade como coletivo têm, além da relação entre ofertante e homenageado expressa no texto, outro ponto de referência subentendido: a res publica municipal, isto é, estes cidadãos elevavam a glória da cidade mediante a ereção de símbolos visíveis, sejam eles estátuas, templos ou teatros (idem, ibidem: 151).

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Foram identificadas duas inscrições (nºs 32 e 33) consagradas em honra do imperador Nero. Uma delas (nº 33), de mármore vermelho jaspeado, que apenas indica o nome e títulos do imperador, apresenta grandes caracteres muito desgastados e foi datada por Hübner de c. de 57 d. C. Situada no pavimento da igreja de S. Tomé foi partida em dois, aquando das obras de reconstrução da igreja, para mais facilmente servir de tampa funerária (SILVA, 1944a: 189-90).

Note-se porém, como destaca José Manuel Garcia (1991: 469), que a reconstituição proposta por Hübner para a leitura desta inscrição, tem de ser encarada com as reservas necessárias uma vez que se baseia em versões incompletas de da Cunha e Azevedo, onde não surge qualquer referência explícita a NERONI. A consagração a este imperador apenas é admitida no início da l. 1, por comparação com a inscrição seguidamente referida (nº 32).

A segunda inscrição honorífica (nº 32) foi encontrada em 1798 no teatro romano, situado um pouco abaixo das atuais ruas de S. Mamede e da Saúde, sob os escombros do terramoto de 1755, consagrada a Neroni Claudio por C. Heius primus, e gravada em distintos blocos, dos quais se recuperaram oito37 (GARCIA, 1991: 469).

Numa época em que os flâmines apenas se ocupavam do culto aos imperadores Divi, C. Heius Primus surge testemunhado numa curiosa manifestação de culto imperial, cuja dedicatória a Nero é

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feita ainda em vida do imperador38. O dedicante pretendeu registar publicamente o seu ato evergético, nomeadamente a renovação e embelezamento do proscaenium e da orchestra do teatro de Olisipo, que consistiu também na marmorização do edifício.

No que toca ao dedicante, C. Heius Primus declara-se augustal perpétuo mas omite a filiação, denunciando a sua condição de libertus. Uma análise ao nomen Heius verifica que este constituiu um gentilício itálico, pouco difundido no mundo romano mas presente, desde o séc. II a. C., em importantes centros portuários, como no sul de Itália em Cumae, na Sicília em Messana e Lylybaeum, na Grécia em Delos, Corinthus e Mantineia e, ainda, no Norte de África. Nestes locais, as inscrições encontradas confirmam o dinamismo sócio-político desta gens através dos cargos desempenhados e assinalam as suas atividades munificentes resultado da grande riqueza acumulada graças ao comércio marítimo e à produção cerâmica.

Atendendo à relevância de Olisipo no quadro do comércio marítimo esta cidade, como lugar de oportunidades para negotiatores, apresenta-se como o ambiente económico propício a encontrar-se Heii. Atendendo ao quadro traçado, a fortuna e relevo social ostentados por C. Heius Primus devem-se certamente às atividades comerciais e marítimas proporcionadas pela função portuária da cidade. A importância da cidade reforça, aliás, a hipótese de que o augustal olisiponense possa ter sido, como sugere Luís da Silva Fernandes (2005: 34-35), um agente dos C. Heii do Mediterrâneo Oriental ou, pelo menos, já que aqui é referido claramente como liberto de um Caius,descendente de libertos desses negotiatores do Mediterrâneo Oriental (ALMEIDA, 2011: 76-77).

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Através de outro monumento honorífico (nº 40), atualmente desaparecido, encontrado no teatro romano de Olisipo dedicado por seis indivíduos em homenagem ao próprio C. Heius Primus, augustalis perpetuus, é possível conhecer-se outros Heii de Olisipo, nomeadamente os seus libertos e respetivos descendentes que apresentam um laço familiar que os une não só entre eles, mas também ao augustal (FERNANDES, 2005: 29-31 e 33-34; ALMEIDA, 2006: 90-91; FERNANDES e CAESSA, 2006/07: 109).

38Note-se que alguns autores interpretaram de forma diferente a inscrição, excluindo o seu carácter de dedicatória a

Nero. Armin U. Stylow (2001: 145, nº 27) contesta a interpretação de tal inscrição tratar-se de uma dedicatória, baseando- se no facto de não ser segura a leitura de NERONE uma vez que atualmente apenas se conservam as duas letras iniciais e, a transcrição de 1798 poder ter descurado a leitura do E final, já muito deteriorado e possivelmente gravado sob a junta de dois silhares, tal como acontece com a palavra ornamen[t]is. O mesmo autor considera assim mais lógica a presença da titulatura imperial apenas como elemento de datação e propõe a correcção de NERONI para o ablativo de datação

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Segundo a interpretação de Vieira da Silva (1944a: 176-178), este augustal libertou dois ou três escravos: G. Heio Notho, Heia Elpis e Heia Nota Segunda. Os dois primeiros possivelmente casaram, e tiveram dois filhos: C. Heio Primo e […] Heio Gláfiro Nociano. Por sua vez, Heia Nota Segunda teve um filho: Catão (?) Quelido. Ainda que a sua notável fortuna lhe abrisse uma via de acesso ao protagonismo sócio-político, estavam-lhe vedados os cargos políticos e os principais sacerdócios. Contudo, de entre os dinâmicos libertos olisiponenses atingiu, através do sacerdócio do culto imperial, o auge a que a sua origem social lhe permitiria aspirar: como augustal perpétuo recebeu a honra máxima que lhe permitia manter o título e o prestígio de forma vitalícia. Não deverá surpreender que o teatro tenha sido o edifício que C. Heius Primus escolheu para patrocinar, uma vez que os teatros estavam relacionados com o desenvolvimento das cerimónias de culto imperial, pelo que participar na sua construção ou reforma funcionava como um ato público de lealdade face ao poder imperial39 (FERNANDES, 2005: 35; FERNANDES e CAESSA, 2006/07: 110).

Diversos estudos demonstraram que edifício, juntamente com o programa iconográfico e as inscrições, formavam um conjunto destinado à transmissão da ideologia imperial, uma vez que este constituía um local privilegiado para a reunião do populus. Consciente da importância política e social do teatro, Augusto utilizou-o como elemento-chave de afirmação do novo poder dinástico e, simultaneamente, do poder de Roma nas províncias. A nível provincial, os edifícios teatrais tornaram- se então num dos principais símbolos da romanidade, constituindo-se, por um lado, como elementos estruturantes do novo urbanismo e, por outro, como instrumentos de propaganda da nova ordem (MATEOS, 2006: 348-351).

Esta inscrição testemunha claramente o empenho dos notáveis locais nessa estratégia. Esse empenho, frequentemente sob a forma de pública benemerência, proporcionava igualmente a necessária auto-promoção das elites de cada cidade, ao promoverem, simultaneamente, o culto imperial (FERNANDES, 2005: 30 e 35).