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A VRBS OLISIPONENSIS

8. Uma Nova Religião para o Império: o Culto Imperial

8.1. Religião e poder político: uma breve reflexão de enquadramento

8.3.2. O Período Áureo

Nesta fase, destaque-se o imperialato de Nero por representar um momento crucial ao ter possibilitado a reconstrução urbanística e arquitetónica da capital do Império, transformando-a num emporion moderno de vanguarda. No decreto IG, VII, 2713, Il. 31-46, Nero carateriza-se como “Nouo Helios” que resplandece sobre os gregos. Este decreto constitui um bom exemplo da complexidade do culto imperial, mencionando o imperador como sacerdote (pontifex maximus), fiel devoto dos deuses e receptor do seu auxílio; mas também como deus em si mesmo já que pode conceder benefícios aos homens comparáveis àqueles dados pelas divindades tradicionais (GÓMEZ e EZQUERRA, 2009:428). No entanto, ao pretender um culto à moda oriental Nero dá um passo grande demais para um império com poucas gerações: fizera-se consagrar um deus e quisera divinizar-se ainda em vida, como testemunham as moedas com o busto imperial envergando uma coroa raiada, equiparando-se ao próprio Sol e, como tal, aos próprios deuses (ENCARNAÇÃO, 2007b: 107).

O desejo de deificação em vida foi um grande erro uma vez que não tinha partido da vontade espontânea das elites ou do senado provincial, tendo sido antes imposta por um imperador que já não caía nas graças do povo, ao consolidar antipatias com o seu comportamento de déspota oriental. Esta

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analogia, juntamente com a adopção de uma postura de divindade em público, acabou por repudiar o império ocidental e norte africano.

Após a sua morte, é anulado como homem e como memória, e o império entra em crise por não ter sido apontado nenhum sucessor. Porém, a sua perspetiva deixou herança. Após uma sucessão de imperadores de curto imperialato, o poder militar assume o poder político e é nomeado Vespasiano, general prestigiado junto do exército, para repôr a ordem no Império. A gens Flavia estava agora à frente do Império com um novo Augustus.

Vespasiano tornou-se um imperador popular que trouxe o culto imperial de novo aos seus cânones tradicionais, forjados por Augusto e Tibério e completados por Cláudio. Em 79 d. C. é atrubuída a cidadania romana a toda a Hispânia, facilitando a ascensão dos libertos poderosos e levando a que fosse remodelado o colégio dos augustais, aumentado para seis membros (FISHWICK, 1978: 1219-1220; MANTAS, 2001: 39).

Outro imperador desta gens que se distinguiu foi Trajano, general que voltou a impedir que o Império entrasse em convulsão, e criando ao nível do culto imperial o cargo dos magister larum augustalis e outros colégios como decuriones cultores larum ou collegium diui Augusti (ÉTIENNE, 1958: 274-275 e 281-283).

Por outro lado, as políticas de Adriano provocaram profundas mudanças tanto no Império (que entrava no apogeu territorial com a adição da Britânia e da Dácia) como no próprio culto imperial (FISHWICK, 1978: 1236-1237). Já longe da Roma estóica republicana, Adriano deslumbrou-se com o mundo oriental e, por isso, procurou implantar a ideia de luxo e bem-estar material, recuperando os valores antigos de origem etrusca já mitificados. Tal como os Ptolomeus, o novo imperador era um intelectual ligado ao poder que entendia Roma como nova Alexandria. A sua perspetiva simultaneamente arcaizante e orientalizante levou a uma mudança rápida nas mentalidades: havia prosperidade económica para sustentar artes caras e outros luxos (como a própria villa Hadriana), e as elites imitavam o imperador.

Estava-se agora no apogeu territorial do império e o culto imperial já não era necessário para consolidar ou recuperar o apoio das elites. Pretendia-se agora criar uma nova ideologia, entre Ocidente e Oriente, que cruzasse ciência, religião e filosofia num novo mundo de sincretismos!

8.3.3.O florescimento das Religiões Mistéricas no Império

Os mistérios orientais constituiram um bloco ideológico que teve como missão a integração dos setores sociais alheios à ideologia do sistema, prometendo uma nova ligação (religare) quer com o divino quer com o elemento humano. Os cultos mais representados na Hispânia, Ísis-Serápis, Cíbele-

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Átis e Mitra, tinham em comum uma origem alheia a Roma e rituais com uma parte reservada a todos os fiéis, nomeadamente a iniciação, proporcionando a esperança numa salvação espiritual.

A interação cultural com os reinos helenísticos havia provocado inovações no âmbito religioso que se expressam através da helenização de numerosas divindades do panteão do Próximo-Oriente. Os mistérios proporcionam assim um dos exemplos mais notórios nos processos de sincretismo religioso, como testemunha a criação do deus greco-egípcio Serápis, posteriormente associado a Dyoniso, nos seus aspetos telúricos, e a Hélio, o deus-sol.

Na realidade, os mistérios constituiram, entre outras coisas, um instrumento ao serviço do poder para promover a inserção ideológica dos elementos marginalizados pelo sistema religioso oficial romano. Neste contexto, elaboraram-se mecanismos para converter os deuses dos mistérios em veículos de integração social, uma vez que era imprescindível a renovação ideológica do Império.

A razão da oposição por parte do Estado romano às inovações relogiosas provenientes do Oriente radica nas próprias condicionantes políticas nas quais se desenvolveu a República, isto é, os romanos temiam ser escravizados pela cultura oriental, por isso o programa ideológico de Augusto fundou-se nos elementos mais conservadores da tradição romana (ALVAR, 2002a: 71-73).

Uma das manifestações da sua genealidade política esteve precisamente na capacidade de transformar a República até ao mais profundo, mas dando a aparência de que nada havia mudado. No entanto, tudo mudou radicalmente! Octávio estava consciente que a aparência do cambio sin cambio tinha de ser garantida desde a ordem divina, o que levou à recuperação do mos maiorum e dos sentimentos anti-monárquicos e anti-orientais.

Por conseguinte, o longo período de opressão política que sofreram os mistérios (até ao principado de Calígula), não se limita a uma opressão a nível dos pensamentos ou crenças, mas expressa antes uma contradição social muito mais profunda que as fontes clássicas interessadamente silenciaram (idem, ibidem: 74-76). Augusto não podia pôr em risco a sua obra, de modo a que se vê obrigado a empreender uma campanha de perseguição aos mistérios. Assim, declara a sua devota inclinação para as tradições pátrias - o mos maiorum -, ocultando as mudanças com o instrumento mais eficaz: a manipulação ideológica!

As suas ações políticas e ideológicas estavam orientadas a acabar com os graves conflitos internos que marcaram o último século da República. No entanto, ao privar de qualquer oportunidade a integração de deuses estrangeiros, deixava-se aberta uma ferida difícil de curar, uma vez que o conflito com os deuses dos povos submetidos não faz mais que indicar a própria dificuldade de integração dos subjugados no mundo romano.

Num contexto de desestruturação religiosa, a coesão social desejável requeria a oferta de expressões de religiosidade coincidentes com as aspirações dos habitantes do império. Augusto deixou

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assim uma parte da sua reforma incompleta: faltava a elaboração de uma nova ideologia adequada à nova ordem imperial, sendo na busca de um marco ideológico que proporcionasse coerência à nova ordem política, social e cultural, que os mistérios desempenharam um papel bastante significativo (idem, ibidem: 81).

Deste modo se fecha o círculo aberto no início do capítulo. Atendendo aos interesses dos habitantes do império, que se sentiam relegados à marginalidade na ordem religiosa tradicional da cidade, a difusão dos cultos orientais coincidiu com as inquietudes espirituais de uma população que experimentava, nas novas ofertas religiosas, o alimento necessário à sua satisfação.

8.4.

Declínio e transformação