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O Sacerdócio Feminino

10.6.4.3.3.4.Outros fragmentos de inscrições

10.6.5. O Sacerdócio Feminino

O aumento das Diuae e a inclusão das Augustae, introduzidas como objeto de culto a partir de época flávia, tornaram necessário criar um sacerdócio exclusivamente feminino. Os argumentos que apontam para o imperador Vespasiano como o responsável pela sua introdução, aquando da reorganização do culto imperial provincial, baseiam-se no facto do flaminato provincial feminino não existir na província antes do ano 48 d. C., como parecem sugerir algumas condições: a titulatura dos flâmines ‘flamen prouinciae Lusitaniae Diui Augusti et Diuae Augustae’; o título usado pelas flamínicas ‘flaminica prouinciae Lusitaniae’, idêntico ao estabelecido para os flâmines a partir de Vespasiano; e o facto de nenhuma das flamínicas provinciais datadas na Hispania ser anterior a época flávia, não existindo assim, tal como no resto das províncias do Ocidente, flamínicas que tivessem oficiado durante época júlio-cláudia52 (DELGADO, 1999: 442-43; idem, 2011: 238; GONZÁLEZ HERRERO, 2009: 441-42).

A lex de flamonio prouinciae Narbonensis (CIL XII 6038) outorgava à esposa do flamen provincial um estatuto similar ao que teria a esposa do flamen Dialis em Roma, isto é, não ser apenas sua consorte, mas desempenhando também funções sacerdotais próprias como flamínica de Juno. Todavia, na segunda metade do séc. I d. C., uma flamínica era muito mais que uma flaminis uxor, como o era originalmente em Roma enquanto esposa do flamen Dialis. Agora, as suas funções cultuais implicavam o culto conjunto das mulheres da casa imperial, às quais não estariam alheias as ações evergéticas.

A distribuição dos testemunhos nas três províncias hispânicas apresenta-se muito desigual: se nas capitais da Baetica e Lusitania são escassas as epígrafes dedicadas a flamínicas provinciais, estas abundam em Tarraco. Relativamente à titulatura, na documentação epigráfica intitulam-se flaminicae prouinciae, com exceção da única conhecida na Baetica, a flamínica Diuarum Augustarum prouinciae Baeticae (CILA II, 1055). Todavia, dos distintos títulos destas sacerdotisas nenhum inclui o objeto de culto. A uniformidade e simplicidade dos seus títulos, em comparação com o dos flâmines, sugere que reflitam um momento em que o culto imperial tivesse já evoluído para formas mais coletivas

52 Infelizmente, na Lusitânia, nenhuma das inscrições que mencionam o desempenho do sacerdócio

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(DELGADO, 1998, 52-53; idem, 1999: 445; DEL HOYO, 2003: 131; GONZÁLEZ HERRERO, 2009: 442).

10.6.5.1.Perfil Social: critérios de aptidão eleitoral

A mulher em Roma, impedida de desempenhar cargos civis, encontrou no sacerdócio uma via para exercer notável influência na vida municipal, permitindo-lhe assim associar-se à oligarquia local mais ativa (DEL HOYO, 2003: 129).

A eleição de flaminicae provinciais ocorria também numa reunião anual (concilium) realizada na capital provincial com os representantes de todas as cidades importantes. Já as flamínicas municipais eram eleitas pelo senado local, sem que a eleição recaísse obrigatoriamente na esposa de quem nesse ano oficiava como flamen provincial, ainda que tal ocorresse frequentemente (VASCONCELOS, 1913: 315; DELGADO DELGADO, 1999: 445; GONZÁLEZ HERRERO, 2009: 442).

A onomástica das flamínicas segue fielmente o modelo tradicional romano, tanto na sua estrutura (nomen + cognomen e filiação) como na própria origem dos nomes (exclusivamente latinos), evidenciando-se como claro indicador da total integração destas mulheres nos novos modelos impostos pela romanização.

Eram então mulheres intensamente integradas na vida municipal das suas cidades, participando ativamente nas mesmas, com o intuito de obterem reconhecimento público. Pertenciam a famílias que formavam o tecido da aristocracia local, ou a uma burguesia bem situada economicamente; e identificavam-se mediante nomina que demonstram uma completa vinculação aos membros que integravam os órgãos de poder municipais.

Ainda que não existam muitos dados sobre os requesitos de eleição, em primeiro lugar deveriam ser cidadãs romanas, não parecendo haver a necessidade de cumprir uma idade mínima de 25 anos (como o era para os homens que queriam aceder às magistraturas municipais locais), nem terem exercido algum cargo anterior, dado não terem acesso a mais nenhum.

Deveria, no entanto, ser condição para acederem ao flaminato a pertença a uma das principais gentes do município, economicamente abastadas, dado que à semelhança dos magistrados, era igualmente esperado que promovessem ações evergéticas, sobretudo de embelezamento dos municípios.Destaque-se neste âmbito a sua própria personalidade económica dentro da gens, tendo em conta que dentro de um matrimónio sine manu, mais frequente em época imperial, as esposas teriam domínio sobre os seus bens.

Em muito casos, o sacerdócio afigura-se como um prémio, um reconhecimento a uma família concreta, à mãe, esposa ou filha de um magistrado local. Porém, ainda que pudesse ser um factor de preferência, não parece que se exigisse a condição de matrona romana para se aceder ao sacerdócio.

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Evidentemente, a mulher não se introduziu, por meio do sacerdócio, diretamente nas estruturas municipais de governo como se de uma verdadeira magistratura se tratasse. Contudo, o exercício deste cargo permitiu-lhe desenvolver grande influência social e moral, que se estendia a outros familiares, principalmente na ascensão dos seus descendentes (DELGADO DELGADO, 1999: 443-44; idem, 2000: 124-25; DEL HOYO, 2003: 130 e 135-36; RODRÍGUEZ NEILA e MELCHOR GIL, 2003: 227; ALMEIDA, 2011: 69).

10.6.5.2. A homenagem a Servilia e a Lucceia Albina

Num monumento cuja tipologia poderá apontar para um pedestal honorífico, tendo em conta a ausência de fórmulas funerárias e a intervenção do ordo decurionum, os decuriões prestaram homenagem a Servilia L. f. Albini, flaminicae prouinciae Lusitaniae (nº 54), testemunhando a importância de Olisipo no que toca ao culto imperial ao seu nível mais elevado. Num dos restantes lados do monumento surge uma segunda inscrição, desta vez a Lucceia Q. f. Albina Terentiani, também autorizada por decreto do ordo decurionum (SILVA, 1944a: 137-138; DELGADO DELGADO, 1999: 457; MANTAS, 2005: 35; GONZÁLEZ HERRERO, 2006: 56).

Durante muito tempo, as inscrições de Servilia e Lucceia Albina apresentaram problemas de interpretação no que toca às fórmulas de identificação onomástica, tendo em conta a existência de uma inscrição de Mérida referente a um flamen provincial de nome Albinus (CIL II 473), que tem vindo a ser relacionado com as duas mulheres homenageadas em Olisipo. Neste contexto, Robert Étienne (apud ALMEIDA, 2006: 86) considerava Servilia, filha de Lúcio e esposa de Albinus Albui filius (CIL II 473), um indígena que em época cláudia exerceu as funções de flam(en) provinc(iae); e Lucceia Albina, filha de ambos.

Contrariamente a estas conclusões (seguidas por grande número de investigadores), Marta González Herrero (2005: 245) defendeu recentemente que Albinus seria um cidadão romano, que se identificou como um peregrino (sem os tria nomina), eleito flamen numa época em que a seleção era rigorosa (época júlio-cláudia), que teria exercido o cargo numa data próxima à deificação de Lívia, em 41 d. C. A datação atribuída a estas inscrições não se baseou então em critérios epigráficos ou históricos, mas antes numa suposta relação de parentesco entre a flamínica da Lusitânia e o flamen provincial, Albinus Albui f.

Robert Étienne (2002: 99-100) recentemente renunciou tal parentesco – ser esposa de Albinus – uma vez que em época júlio-cláudia não há indício algum de que o concilium da Lusitânia elegesse flaminicae para supervisionar o culto das Divae na sua dimensão provincial. Pelo menos, ainda durante a primeira metade do ano 48 d. C., era o flamen provincial quem assumiria tal tarefa, como confirma a

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estátua erigida em Scallabis para honrar Aponius Capito, flamen prouinciae Lusitaniae Diui Augusti et Diuae Augustae (ILER 5540) (GONZÁLEZ HERRERO, 2006: 57;STYLOW, 2006: 299). Atendendo a este quadro, a datação da homenagem achada em Olisipo tem de ser posterior ao ano 48 d. C. Por isso, abandonou-se definitivamente a possibilidade da existência de um vínculo familiar entre as mulheres e o flamen da Lusitânia Albinus Albui filius.

Por outro lado, a confluência de uma série de indícios aponta para um parentesco em primeiro grau entre os Lucceii Albini e estas mulheres, nomeadamente a coincidência do cognomen da primeira com o do esposo da segunda, permitindo estabelecer um vínculo familiar entre as duas mulheres, reforçado ao receberem ambas homenagem conjunta (ALMEIDA, 2006: 87; GONZÁLEZ HERRERO, 2005: 249-50; idem, 2006: 58). A homenagem não nos informa sobre a relação que unia Lucceia Albina com Servilia, a flamínica da Lusitânia casada com um Albinus, atendendo a estas circunstâncias, Marta González Herrero (2005: 243-44 e 250-252; idem, 2006: 59) defende que o Albinus casado com Servilia seria o prestigiado advogado da época de Trajano, e não o seu pai, procurador que viveu sob os júlio-cláudios (quando ainda não existiam flamínicas). Deste modo, não existiria relação alguma entre o flamen Albinus e Servilia, mas antes entre esta e o advogado Lucceius Albinus53, colega de Plínio, sendo Lucceia Quinti filia Albina, filha de ambos ou irmã de Lucceius Albinus, havendo assim um casamento não entre flâmines mas entre o ordo equester e a elite provincial (ALMEIDA, 2006: 70 e 87-88).

Note-se o facto de se ter acrescentado à fórmula de filiação habitual (praenomen paterno em genitivo seguido do termo filia) os cognomina em genitivo dos esposos das homenageadas. Por conseguinte, no modo como se identificam está implícito o interesse por parte destas mulheres em se associarem aos seus maridos, certamente pela notoriedade social que estes alcançaram e que se refletia nos restantes membros familiares (FERNANDES, 1998-99: 137-38; GONZÁLEZ HERRERO, 2005: 248; idem, 2006: 57).

A análise das prováveis relações familiares de Servilia L. f. confirma que a sua nomeação para o flaminato provincial foi uma consequência lógica do processo de ascensão social dos indígenas abastados que, mediante a adesão à ideologia oficial, e uma cuidadosa política de alianças

53Nascido no seio de uma família procedente de Olisipo, Lucceius Albinus contraiu matrimónio com uma mulher

pertencente à elite da Lusitânia. O seu pai era membro do ordo equester, circunstância que sem dúvida facilitou a ascenção social do seu filho em Roma. Os historiadores Flávio Josefo e Tácito informam-nos sobre a carreira desta personagem que governou a Judeia, Mauritânia Tingitana e Mauritânia Cesariense como procurator de classe equestre entre os anos 62-69 d. C. O facto de lhe ter sido atribuída aadministração de províncias conflituosas, sugere que tenha sido um dos homens de confiança de Nero. O filho do procurador é mencionado em duas cartas dirigidas a Plínio, pelas quais conhecemos a sua atividade como advogado sendo, nos inícios do séc. II d. C., designado pelo senado para atuar em processos abertos contra altos magistrados (GONZÁLEZ HERRERO, 2005: 250-51; idem, 2006: 59 e 109).

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matrimoniais com descendentes de colonos, teriam conseguido integrar-se nas estruturas político- sociais (FERNANDES, 1998-99: 139 e 142).

A inscrição lateral do monumento permite, pelas alianças familiares que sugere, entrever também alguns aspetos do processo de ascensão sócio-política da elite indígena. A epigrafia revela que os Lucceii olisiponenses disfrutaram de uma destacada posição social uma vez que conhecemos a identidade de dois dos seus libertos (EO 37 e 47). Por outro lado, a ligação familiar aos Terentii abundantes em dois núcleos do ager olisiponensis, nomeadamente Alenquer e Sintra, acrescenta-lhes estatuto social e económico (FERNANDES, 1998-99: 138; GONZÁLEZ HERRERO, 2006: 59).

Relativamente à fórmula final, sabemos que o ordo decurionum detinha grande poder de intervenção, uma vez que sancionava quase todos os atos da vida local. Neste âmbito, talvez devamos começar a reconstituir mais vezes a fórmula d(ecreto) d(ecurionum) em vez de d(ono) d(edit) (mais usual para a oferta de um voto a uma divindade colocada num local sagrado, por exemplo a inscrição a Apollo, consagrada por um augustal (nº 11)), face à possibilidade dos decuriões interferirem no modo de como deveria ser gasta a summa honoraria, pois melhor que ninguém conheceriam as necessidades da população. Logo, parece plausível que previamente houvesse um entendimento entre candidato e ordo decurionum sobre o que se iria oferecer ou quem seria homenageado, e onde seria implantado tal homenagem. Numa verdadeira filosofia do poder, por um lado temos a benemerência e pelo outro a imagem de uma instituição que zela pelo bem-estar dos cidadãos (ENCARNAÇÃO, 1993b: 59 e 62- 64; CASTILLO RAMÍREZ, 2008: 767).

Assim, como expressa a fórmula d(ecreto) d(ecurionum) que conclui ambas as inscrições, estas homenagens requiseram a aceitação do ordo decurionum. No momento de serem homenageadas, Servilia, filha de Lucio, esposa de Albino e flamínica da província da Lusitânia, e Lucceia Albina, filha de Quinto e esposa de Terentiano, fariam parte do núcleo de notáveis que partilhava um elevado status social em Olisipo, justificando assim que o senado municipal aceitasse a colocação em solo público do referido monumento (GONZÁLEZ HERRERO, 2005: 247).

10.6.5.3. Homenagem a […]lia Vegeta

Num pedestal recolocado na cerca do convento de S. Vicente em Lisboa, M. Gellius Rutilianus, duúnviro olisiponense, homenageou a sua esposa […]lia Vegeta, flâminica municipal (nº 55) (GARCIA, 1991: 490). Não obstante o relevo atribuído nesta inscrição ao nome do marido, este não surge aqui a representar o poder municipal (uma vez não ter sido gravado qualquer cargo que tivesse desempenhado), mas apenas na condição de marido de […]lia Vegeta, dedicando-lhe uma epígrafe simultaneamente honorífica e funerária.

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O cognome de M. Gellius Rutilianus deriva de um fóssil onomástico, Rutilius, raro no território, mas de origem tipicamente latina. Se por um lado, é bem conhecido na epigrafia olisiponense como um dos duúnviros que, juntamente com L. Iulius Avitus, se encarregou de homenagear o imperador Adriano (nº 35) e sua esposa, Sabina Augusta (nº 36); por outro, foram propostas diferentes hipóteses de reconstituição para o gentilício da sua esposa, apenas conhecida através desta inscrição. Neste âmbito, Hübner (apud SILVA, 1944a: 194-195) sugeriu [Cae]lia[e] ou [Ge]lia[e], Leite de Vasconcellos (apud SILVA, 1944a: 194-195) considerou [Ae]lia[e], Vieira da Silva (1944a: 194-195) [Cae]lia e, Scarlat Lambrino (1951: 40) e Serrano Delgado (2000: 123) voltaram a sugerir [Ge]lia[e] como hipótese mais provável.

A flamínica revela um cognome latino e muito provalmente um nomen igualmente latino. Não deixando de ser interessante a coincidência onomástica entre os nomina do flâmine e da flamínica, as propostas que apontavam para [Ge]lia[e] como primeiro nome da flamínica não são plausíveis, uma vez que à partida, excepto no caso dos libertos, o nomen da mulher raramente era igual ao do marido, a menos que pertencessem à mesma família. O nome da flamínica, que numa primeira análise poderia ser [Ge]lia Vegeta, parece mais plausível ser [Iul]ia, visto que além da gens Iulia ser a mais abundante na cidade, os Iulii olisiponenses durante os sécs. I e II d. C. participaram regularmente na administração municipal e no culto imperial e, ademais, Rutilianus partilhou o duúnvirato com L. Iulius Avitus, podendo eventualmente encontrar-se aqui alguma relação familiar. Não obstante ambas as personagens não apresentarem filiação, certamente estamos perante cidadãos romanos pertencentes à elite municipal, que testemunham a união do duúnvirato com o flaminato (FERNANDES, 1998-99: 140-41; DELGADO, 2000: 125; MANTAS, 2005: 35; ALMEIDA, 2006: 53 e 91-92).