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Reminiscências de um anterior culto aos astros

O AGER OLISIPONENSIS

4. O santuário romano do Alto da Vigia (Colares)

4.3. Reminiscências de um anterior culto aos astros

O espaço de finis terrae europeu foi alvo de cultos astrolátricos desde tempos pré-históricos, passando pelo período fenício-púnico e prolongando-se pela romanidade. De acordo com a historiografia julga-se existir uma interligação entre este santuário e outros fenómenos regionais relativos ao culto dos astros, testemunhado pelos objetos votivos de calcário em forma de crescente lunar – lunulae - e pelos “ídolos betilóides”, encontrados em contexto funerário em redor da Serra de Sintra; e, ademais, o facto do locus sacer proto-histórico da Lage da Ermida, também situado no litoral, incluir gravuras rupestres relativas ao movimento do Sol, onde um ser antropomórfico masculino surge de braços erguidos com o disco solar a várias alturas como que traduzindo o seu curso diurno, desaparecendo por fim nas ondas do mar (RIBEIRO, 1995-2007: 600-609).

17 Já Vitrúvio tinha definido, na sua monumental obra De Architectura, que os templos consagrados aos astros eram

“construídos” em descampados, sem cobertura, pois assim melhor poderiam ser avistadas estas divindades. “(…) quando se levantam edifícios sem telhado e hipetros a Júpiter relâmpago, ao Céu, ao Sol e à Lua; de facto, vemos o aspecto do céu e as obras destes deuses presentes no mundo aberto e luminoso” (Livro I, cap. II, passo 5) e “O templo hypaethros, ou a céu aberto (…), a zona média, ao ar livre, fica sem tecto” (Livro III, cap. II, passo 8).

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Diz Ptolomeu que a Serra de Sintra foi, em tempos antigos, consagrada à Lua, por conseguinte, Leite de Vasconcellos (1905: 217-18) sugere que ali tivesse existido um santuário onde se venerasse tal astro. Não se refere este astro nos textos mais antigos de Ptolomeu, nomeadamente o Périplo de que se serviu Avieno na Ora Marítima, ou nas obras de Mela e Plínio, por isso, segundo Leite de Vasconcellos “não ha razão para se atribuir aos Romanos a origem da santificação do logar”, estes apenas continuaram um costume que já vigorava antes de lá chegarem. Admite assim que se o culto da Lua na Serra de Sintra provém de épocas mais remotas, sendo provável que se possa ver nele influência fenícia, destacando-se neste âmbito Astarte, deusa semita da Lua e do Oceano.

Poderemos então estar perante um complexo caso de sincretismo entre um culto pré-histórico, proto-histórico e romano aos astros na área de Serra de Sintra, tendo como resultado um santuário imperial? Parece que não, uma vez que não existe uma concordância, nem geográfica nem cronológica, entre as manifestações de cultos siderais apresentadas, verificando-se apenas distintas manifestações de cultos astrais na área de influência da serra de Sintra, desde a Pré-História Recente até à Romanidade (RIBEIRO, 1995-2007: 595-596).

O domínio cultual da serra e o do litoral seria distinto e, por conseguinte, cada qual deveria ter vivido por si mesmo. Se na Serra, ambiente silvano e húmido reina a deusa lunar, no litoral é o pôr-do- sol que proporciona o culto e impõe os ritos capazes de propiciarem o seu regresso, de modo a que fosse vencido o medo de se ver novamente o astro apagar-se em contacto com as águas.

Nestas circunstâncias, é plausível que tenha existido no Ocidente Hispânico uma convicção geral que o sol morria todos os dias no mar, momento que só podia ser assistido pelos indivíduos que praticavam oficialmente os rituais que asseguravam o renascimento do astro e garantiam o seu retorno, como parece confirmar a figura antropomórfica masculina gravada na Laje da Erguida (RIBEIRO, 1995-2007: 610-11; CIRLOT, 2000: 232-234).

Contudo, este santuário traduz uma realidade religiosa e histórico-cultural totalmente distinta, uma vez que assenta no pressuposto helénico do ‘rio-Oceano’ que circundaria a terra, de onde diariamente se erguiam a Oriente o Sol e a Lua, voltando a mergulhar no mar primordial a Ocidente. Por ser apenas aqui, no Ocidente, que mito e realidade se confundem, este locus sacer encontrava-se revestido de uma importância vital, considerado como local privilegiado para a eficácia dos atos de religio aí praticados.

O despoletar das religiões mistéricas no séc. II d. C., ajudou a entender a Aeternitas não como valor terrestre mas celestial, relacionado com o movimento constante dos astros. A ideia da renovação do astro noite após noite parece poder relacionar-se com o conceito de Aeternitas Imperii, encontrando-se muito bem representada no significado do santuário romano de Sintra. Aqui, parece

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valorizar-se a Lua como elemento salutífero e o Sol como continuum revivificador como parece comprovar a articulação Soli Aeterno/aeternitate Imperii e Lunae/salute Imperatoris (nº 23). O Sol passa a ser uma figura determinante na imagem do imperador, começando esta nova ideologia na base social na qual cada pater familias representa o Sol na sua domus (RIBEIRO, 1995-2007: 600 e 612-16; CIRLOT, 2000: 275-276 e 342-344).

Neste quadro, as novas correntes filosófico-religiosas e político-ideológicas, relacionaram o culto imperial e o destino de Roma com o curso dos astros, identificando o Imperador com o Sol e a Imperatriz com a Lua, e ainda a eternidade do Estado com o eterno ciclo sideral. A partir desse momento, o Oceano é secundarizado e apenas brilham os astros eternos e salutíferos a par com o Império e os seus governantes – Soli Aeterno Lunae pro aeternitate Imperii et salute Imperatoris (nº 23).

Neste contexto, José Cardim Ribeiro destaca o facto de que mais do que simples formas de sincretismo ou interpretatio, devem ser identificados neste processo cumulativo alguns princípios base que destacam tanto continuidades como múltiplas diferenças. Assim a metáfora “conglomerado herdado” promovida por Eric Dodds (apud RIBEIRO, 1995-2007: 595-596), é pertinente para nos ajudar a compreender este complexo e dinâmico momento da História.