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Antecedentes: poder absoluto por direito divino

A VRBS OLISIPONENSIS

8. Uma Nova Religião para o Império: o Culto Imperial

8.1. Religião e poder político: uma breve reflexão de enquadramento

8.2.1. Antecedentes: poder absoluto por direito divino

Segundo Francisco Velasco (2002: 20) foram historiadores e escritores da antiguidade como Evémero de Mesene, quem propositadamente humanizou os deuses do passado para que deste modo fosse mais credível a divinização dos homens que governavam o presente. Neste âmbito, se os grandes deuses do panteão foram antigos grandes reis seria lógico que se divinizassem os grandes reis do presente, uma vez que no futuro seriam estes os grandes deuses do panteão.

No séc. IV a. C., Alexandre conquista a Pérsia e insere-se nas tradições orientais, levando a que na Macedónia se substituísse o regime democrático pelo monárquico, mais próximo do despotismo oriental. A grande extensão do império asiático que foi, em tão pouco tempo, tomada sob domínio de Alexandre, propiciou o contacto com outros modos de governo piramidal, concretamente o egípcio no qual o faraó sustentava o seu poder numa ideologia que o tornava divino. Como discípulo de Aristóteles, Alexandre tinha consciência de que se devia comportar de acordo com as características de cada povo, isto é, na Pérsia um déspota e na Grécia um democrata. Porém, errou ao desejar que os seus companheiros do exército o tratassem como uma entidade divina à moda oriental, onde o grande líder soberano deificado era, simultaneamente, o grande líder guerreiro.

Neste âmbito, as suas conquistas no Oriente tornaram-se um dado fulcral para a ideia de rei-deus e para o desenvolvimento do culto dos governantes. O elemento chave foi a visita ao oráculo de Amon26, onde a ambição pela confirmação de um nascimento divino se mascarou de vontade de

26 Relembre-se que César enveredou por caminho semelhante quando visitou o oráculo de Melkart (Heracles

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conhecer o desfecho do conflito com Darius (FISHWICK, 1993: 6). Não obstante, se na perspetiva faraónica todos os reis do Egipto eram por definição filhos de Amon Re, ao reconhecer Alexandre como tal, agora que ele dominava o Egipto, o sacerdote do oráculo seguia apenas as regras estabelecidas desde há muito. No entanto, a identificação de Amon com Zeus implicou o reconhecimento de Alexandre como filho do mais poderoso deus grego.

De grande importância para solidificar esta ideologia foi a fundação espontânea de cultos a Alexandre nas cidades gregas da Ásia Menor, numa demonstração de gratidão para com o libertador da tirania persa. Mais problemática foi a instauração do culto na Grécia Continental. No entanto, se Alexandre muito desejava ser deificado, parece claro que esta não foi uma ordem direta sua, como parece comprovar um debate ocorrido em Atenas, no qual os espartanos intervêm dizendo “se Alexandre deseja ser um deus, deixem-no sê-lo” (Aelian, Varia Historia 2, 19; cf. Plut. Mor. 219e) (apud FISHWICK, 1993: 9-10).

Sendo o destino dos heróis a astralização (comungando do mesmo espaço que os deuses celestes), após a sua morte, Alexandre tornou-se exemplo a seguir como homem cujas ações o elevaram ao mundo divino. Neste panorama, se por um lado, ao pretender ser deificado em vida, repugnou ao espírito grego, por outro, tornou-se o protótipo histórico de herói dadas as certezas de ter realmente existido e vivido entre os homens, e tornando-se o seu túmulo em Alexandria alvo de frequentes peregrinações.

Todavia, foi a dinastia ptolemaica quem deu origem à realidade política do culto. Cerca de uma década antes de falecer, Alexandre tinha fundado Alexandria perto do Mediterrâneo, longe do Nilo e do Egipto faraónico. Após instalar-se a problemática da sucessão do Império, este acaba por ser repartido pelos seus generais: de imediato, Ptolomeu reclama o Egipto e parte com os seus exércitos para Alexandria. Os restantes aceitaram levianamente esta decisão tenho em conta não se tratar da Grécia ou da Macedónia - mal sabendo que seria esta a província que mais triunfaria culturalmente no futuro da humanidade!

Ptolomeu era um modesto general macedónio que comandava uma parcela dos exércitos de Alexandre. Nunca se notabilizou como estratega militar, sendo mais um político inato na tradição aristotélica, apresentando-se, por isso, decisivo para a solidificação e transmissão do legado de Alexandre. Neste contexto, funda em Alexandria um túmulo que integrava todos os membros da dinastia ptolemaica, funcionando simultaneamente como local para descanso do corpo e como templo transformado em pantheon. Esta obra significava que a herança de Alexandre, não só era a cidade de Alexandria mas também a própria dinastia ptolomaica. Ao se colocar, simbolicamente, sob a égide de Alexandre, conferia simultaneamente maior legitimidade ao novo regime.

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Atendendo ao facto de grande parte da sociedade ser culturalmente grega, para assegurar o poder foi crucial não serem adotados – pelo menos no início - vícios do Egipto faraónico. Assim, Ptolomeu não caiu no mesmo erro que Alexandre: para os gregos era grego e para os egípcios, egípcio! Porém, pouco a pouco, a cultura grega foi-se deixando penetrar pela egípcia, como bem exemplifica a própria divindade protetora da cidade, Sérapis, que sincretiza Osíris com Ápis.

No entanto, para os egípcios, a dinastia ptolomaica era considerada uma dinastia faraónica e, como tal, se o faraó era já divino em vida a mesma ideologia foi transposta para os Ptolomeus, como testemunham as suas representações em baixo-relevo ao lado dos deuses, num esquema iconográfico similar ao do Antigo Egipto.

Concomitantemente, o desejo de enfatizar uma ligação com o fundador da dinastia foi uma forma de legitimar a subida ao trono e sacralizar o seu poder como meio de consolidação do novo governo, adicionando-lhe prestígio e justificação. Assim, no Egipto, verificou-se um verdadeiro culto ptolomaico familiar, que posteriormente, em 311 a. C., é acrescentado por Ptolomeu I Sóter um culto póstumo em honra de Alexandre. Naturalmente, este culto oficial parece resultar do desejo por parte de Ptolomeu de afincar a sua relação com Alexandre. Aquando da morte de Ptolomeu I, o seu filho Ptolomeu II Philadelphus promoveu a deificação dos pais, por meio da construção de um templo. Este momento marca o início do culto ptolomaico dinástico, isto é, quando se incorporaram os restantes membros da família além do principal governante (FISHWICK, 1993: 13-15).

O peso da dinastia era assim imenso do ponto de vista ideológico e político por isso, foi precocemente planeada uma aliança com Roma Republicana, prevendo-se que esta viria a ser uma grande potência. Ainda que tal aliança tenha culminado com Césarion, filho de César e Cleopatra VII, todavia, o Senado romano não queria partilhar as riquezas do Mediterrâneo e receava ser ultrapassado pelo poder desta superpotência, acabando por colocar um ponto final na aproximação equitativa entre estes dois centros.

Por outro lado, ainda que, ideologicamente, Roma ainda não estivesse preparada para um César dictator e imperator porém, esta situação deixou sementes bem enraizadas. Uma geração depois, Augusto muda de estratégia e beneficia de um mundo dotado de uma mentalidade completamente diferente (FISHWICK, 1993: 46), sendo este ambiente religioso que facilitou o culto aos imperadores.