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O AGER OLISIPONENSIS

5. Síntese da Questão

“… muito para trás ficavam já os tempos protohistoricos, em que o sangue humano borbulhava nos altares dos deuses da guerra!” (VASCONCELOS, 1913: 533).

No que respeita ao quadro teonímico, a individualidade do ocidente reside num amplo número de ocorrências que testemunham uma frequente estrutura constituída por um nome, seguido de um ou dois epítetos que associam a divindade a um lugar ou entidade determinada (GUERRA, 1998: 860-61).

Neste quadro, no ager olisiponensis encontraram-se cultos a divindades tutelares étnicas, como Band- (nº 2), Aracus Arantoniceus (nº 1) e Mermandiceus (nº 6), sendo que no caso do segundo, o epíteto deriva do cognomen Arantonius, e o terceiro do antropónimo Mermandus. As divindades que são invocados com epítetos derivados de nomes de indivíduos (mantendo talvez uma relação especial com os respetivos grupos familiares) constituem um tipo concreto de divindade autóctone que deteve uma difusão tão ampla como a das divindades supra-locais, isto é, verificou-se que o território

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hispânico onde era adorado Band-* é complementar com o ocupado por Aracus Arantoniceus e também com o de Mermandiceus (OLIVARES PEDREÑO, 2002: 217-18). Refira-se ainda o culto a Kassaecus (nº 5), consagrado por um indígena romanizado, M. Caecilius Caeno.

Por outro lado, no sudoeste da Lusitânia surgem testemunhadas algumas divindades indígenas femininas como Trebaruna e Ilurbeda que alcançaram grande difusão num território que se extende desde ocidente do Sistema Central, pela Beira Baixa até ao sul da província de Cáceres. Muito afastadas da sua região de origem, ambas encontram-se representadas em Olisipo (a primeira na variante Triborunnis (nº 7)), somente através de um único testemunho de cada. Tendo em conta estas circunstâncias, esta região não pode representar o núcleo central do culto, por conseguinte, a sua presença aqui só pode ser explicada se se considerar terem sido trazidas por imigrantes dessas zonas longínquas (OLIVARES PEDREÑO, 2002: 66).

No âmbito das divindades romanas, foi identificado o culto a Fons (nº 13), realizado por Atilia Amoena, uma indígena romanizada; o culto ao Genius (nº 14), consagrado por uma liberta de possível origem oriental; a Liber Pater (nº 18), por um dedicante romano que se identificou em sigla; e a Iupiter (nºs 15 e 16) que, tendo em conta uma crescente romanização, podem ser ordenadas do seguinte modo: o teónimo encontra-se colocado, no texto, depois do dedicante [L. Iulius Mae]lo Caudicus (nº 15), que apesar de possuir praenomen e nomen latinos, ostenta dois cognomina indígenas; ou o teónimo se encontra colocado antes do dedicante, como quando Iupiter foi consagrado por um liberto, M. Iulius Primus (nº 16), em prol da saúde de outro liberto M. Cassius Firmus (SILVA, 1944a: 192-193; RIBEIRO, 1982-83: 270; ALMEIDA, 2006: 99). Dada a versatilidade e capacidade aglutinadora, podemos concluir que Iupiter serviu como “bandeira de romanização”, levando a cultura romana aos povos indígenas. Por conseguinte, foi cultuado por todo o tipo de dedicantes, quer indígenas romanizados, libertos ou militares, durante um longo intervalo cronológico que abrange o séc. I e II d. C., ainda que se verifique a preponderância de dedicantes claramente indígenas no que concerne a Iupiter sem epíteto.

Por sua vez, note-se que os cultos orientais mistéricos entram tarde na Lusitânia, posteriormente ao séc. I d. C., não adquirindo grande adesão, em parte pelo facto de aqui a sua implantação ter resultado de impulsos individuais, não beneficiando da ação de contingentes militares. Como fenómeno cultural romano, possuia um carácter essencialmente urbano, sendo os dedicantes, geralmente cidadãos romanos ou libertos de origem oriental, raramente de origem indígena. Não obstante, as divindades orientais conseguiram penetrar no conservador ager, como parece testemunhar uma inscrição encontrada no vicus de Ierabriga, com teónimo omitido (nº 28); e uma inscrição descoberta em Talaíde (nº 25), consagrada a uma Dea, possivelmente Cybele, pelos magistri Augus e

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Hermes, dois libertos identificados apenas por cognomina orientalizantes, parecendo comprovar em Olisipo a existência de um culto organizado à Magna Mater.

No que toca aos cultos oficiais, podem integrar-se claramente nesta categoria as inscrições provenientes do Santuário do Alto da Vigia, consagradas ao Sol e à Lua (nº s 22, 23 e 24). Em época romana, talvez sob o principado de Antonino Pio “no âmbito de uma cultura imbuída de concepções cósmicas, ocorreu um sincretismo entre os cultos astrais e o culto imperial”, tendo resultado deste processo ideológico a construção de uma estrutura sagrada no Alto da Vigia, santuário repleto de simbolismo quer pela sua localização, quer pela ligação entre as antigas tradições religiosas locais ligadas ao ciclo solar e ao culto da deusa Lunar nos montes sagrados da Serra de Sintra.O seu objetivo seria então garantir a proteção e o eterno renascimento dos astros, de modo a garantir a Salus dos imperadores e, no fim, a do próprio Império – a Roma Aeterna!

Por outro lado, o carácter astrológico do santuário possibilitava que, ao se propiciarem os “astros reguladores do Destino”, se predissesse o futuro do Império. Nestes termos, justifica-se a ausência de dedicantes privados, participando somente altos dignatários imperiais, que desempenhavam os mais importantes cargos no âmbito da prouincia Lusitania e do império, nomeadamente governadores da Lusitânia ou legados do imperador, que ali representavam os próprios Augustus, em favor dos quais invocavam “os grandes Luminares Celestes”, de modo a manter a harmonia cósmica no orbi Romani (RIBEIRO, 1995-07: 614-16).

Tendo em conta este panorama, podemos então concluir que no ager foram cultuadas maioritariamente divindades indígenas por dedicantes indígenas romanizados, no entanto, não estão ausentes as divindades romanas, as divindades mistéricas ou o culto imperial. O mundo rural caracteriza-se assim como um mundo onde os valores tradicionais se mantiveram enraizados por mais tempo, mas também como um mundo que se foi deixando, pouco a pouco, moldar por diversificadas matizes culturais.

PARTE II