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A idéia de cidade

No documento Livros Grátis (páginas 70-88)

21 entre racionalidade e empirismo, elementos que conferiram às

A. O desenvolvimento histórico do termo ideologia

1.2. A idéia de cidade

A partir desse ponto, nossa reflexão desce ao solo efetivo das cidades, tal qual elas se construíram, procurando encontrar, nesse longo processo, os fatos que acabaram por engendrar uma ideologia da cidade e, de certa maneira, uma antecipação de formas comunitárias de existência. Segundo Luhmann, a própria ferramenta para o enfrentamento do mundo pós-hegemônico encontra-se na massificação vivida na cidade. Esse teórico social estabeleceu uma analogia entre sociedade e comunicação, o que permite explicar, de forma mais contundente, a grande volatilidade do nosso tempo contemporâneo. Em termos concretos, Luhmann aglutina os sistemas de pensamento em associações que tendem para a auto-organização e a auto- sustentabilidade, conferindo-lhes um sentido.

A partir da auto-organização e da auto-sustentabilidade dos sistemas de pensamento encontra-se um sentido para o movimento do pensamento e, por conseguinte, um objetivo. A cidade aqui descrita não é mero objeto de estudo; ela é também hipótese para novas formas de convivência, como assinalou Henri Lefebvre, uma vez que o objeto cidade envolve também o projeto cidade. Hipótese e recorte objetivo estão aqui definitivamente imbricados.

A O que é a cidade na contemporaneidade

Nosso conceito de cidade, socialmente compartilhado, remete diretamente ao padrão desenvolvido no Ocidente durante a Idade Média, que conformou uma tradição de cidades particulares. Estas representam ou são figurações concretas, nas quais a massa construída se distingue do campo de forma clara e nas quais se desenvolve uma consciência comunitária específica. Esta consciência está baseada nos princípios de uma certa autonomia, isto é, há uma nítida distinção entre uma cidade e outra, bem como uma vontade de determinar sua própria existência dentro de alguma previsibilidade. A medida que essas duas instâncias são ampliadas – autonomia e previsibilidade –, intensifica-se a noção de sentido comum. Essa particularidade, observada no Ocidente durante a Idade Média, deve-se a uma série de fatores, encontrados apenas nesta especificidade geográfica e histórica. Alguns autores contrapõem o modelo oriental ao ocidental. Quanto à organização social, eles se diferenciam fundamentalmente pela presença, no primeiro, da consciência da comunidade, que pretende sua autogestão. Dentre esses autores, já mencionamos Marx, Weber e Arrighi, mas certamente a lista pode ser complementada por Fernand Braudel, Henri Pirenne, Henri Lefebvre e Jacques Le Goff.

A Idade Média européia conforma um tipo de organização social particular, consubstanciada nas suas cidades, base e origem do desenvolvimento posterior das idéias de Estado, capitalismo, mercado, modernidade e cidade. Vasculhar esse passado é entender a conceituação contemporânea de cidade, que certamente se modificou, mas contém ainda algumas características comuns a esse outro momento histórico.

Não há continuidade entre a Antigüidade e a Idade média, afirma Le Goff89. A burguesia originada dos bárbaros ou da fusão entre populações romanas e bárbaras estabelecidas no antigo território do Império Romano fez surgir uma forma de poder cujas origens são germânicas. Essa forma, denominada direito de banalidade, é um direito geral que inclui direito de justiça e sobretudo direitos econômicos – a moagem dos grãos no moinho do senhor, o direito de vender a colheita no mercado do senhor etc. Daí deriva o termo fundamental na estrutura feudal – a “senhoriagem banal”, autoridade que domina uma determinada fração do território. Essa autoridade pode ser eclesiástica – o bispo, nas cidades episcopais –, ou leiga – por exemplo, um conde a partir da era carolíngia. Esse raciocínio apresenta uma equação muito clara. Nesse momento histórico e

89 LE GOFF, Jacques Por amor às cidades ( tradução de Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes). São Paulo: Unesp, 1997, p. 90.

nesse lugar geográfico, manifestaram-se forças descentralizadoras que ampliaram a precariedade da vida por um lado, mas propiciaram o desenvolvimento de uma consciência comunitária particular de outro. Esses dois impulsos acabaram gerando uma forma de organização social, cuja materialidade mais concreta são as cidades amuralhadas do medievo.

Nessa estrutura – a cidade medieval –, surge uma série de atores particulares que moldam uma ideologia de comunidade e de autogestão dos objetivos desta mesma comunidade, abrindo caminho para um complexo processo de auto-justificação das escolhas. Este processo desenvolveu-se durante cinco séculos, adequando e revolucionando procedimentos, numa longa duração.

O aparecimento, no século XIII, das ordens mendicantes dos dominicanos e dos franciscanos, fundadas respectivamente por São Domingos e São Francisco, é apontada por Le Goff como um marco importante na história das cidades. em virtude da capacidade dessas ordens de atrair fiéis a partir de uma ideologia que pregava o questionamento da opulência da Igreja Católica, renovando, assim, a sensibilidade religiosa. No século XIII, São Domingos e São Francisco instituem as ordens mendicantes que ocupam nas cidades de então, terrenos na periferia, fora das muralhas, onde a terra é mais barata. A ideologia dessas ordens é a veneração da pobreza, que acaba atraindo uma grande quantidade de fiéis tornando-os conhecidos, estimados e poderosos.

Essas ordens serão pólos de denúncias das imensas desigualdades presentes na sociedade e desenvolverão o senso de bem comum nas cidades. A partir da idéia de misericórdia e de caridade das ordens mendicantes no século XIII se desenvolverá uma série de serviços como os hôtels-Dieu ou asilos que basicamente tratam da pobreza. Na verdade os hôtels-Dieu são reduzidos contemporaneamente a idéia de hospitais, mas eles na verdade eram asilos, pois na Idade Média o limite entre pobreza e doença era muito tênue. Com o passar do tempo, eles passam a abrigar também os sem-trabalho, declinando sua origem baseada na

Siena, paradigma da cidade medieval ocidental, onde emerge a

consciência de auto determinação da comunidade

caridade e assumindo um caráter de instituição de aprisionamento e de exclusão. Além do espaço da artificialidade e da independência com relação aos humores da natureza, a cidade passa a ser um lugar onde a própria lógica dos infortúnios e da carência de recursos é abrigada, possibilitando sua superação. Na cidade, a artificialidade ganha uma nova dimensão, permitindo que os homens, em função da acolhida inicial, mudem seus próprios destinos.

Em 1260, o dominicano alemão Alberto, o Grande, escreveu um texto em que faz um aberto elogio à cidade. Baseado em Cícero, o pregador parte da idéia de que uma cidade não “é constituída apenas de pedra, mas de homens e cidadãos”90. Em seguida, ele desenvolve a imagem de que as ruelas estreitas e escuras são o inferno, em contraposição às praças, que representam o paraíso.

Segundo Le Goff, existe uma Idade Média antes e uma Idade Média depois das ordens mendicantes, pois elas iniciaram o processo de construção da autonomia das cidades. Nelas desenvolve-se a imagem daquilo que deve ser a comunidade ideal, calcada numa igualdade pelo menos aparente entre os cidadãos, conforme salienta Le Goff:

90 LE GOFF, Jacques, op. cit., p. 90.

As cidades são, portanto, uma revolução, porque como já se disse sua aparência torna os homens livres e iguais, mesmo que a realidade com freqüência permaneça longe do ideal.”91

As ordens mendicantes são responsáveis pela chamada revolução comunal, termo da lavra dos historiadores e juristas do século XIX, que identificaram uma série de narrativas nas quais fica patente a intenção de emancipar a comunidade da cidade. No século XII, ocorre uma rebelião na cidade de Laon no norte da França, contra o bispo local. Os burgueses, revoltados contra as taxações arbitrárias do cônego, cortam-lhe o dedo que levava o anel de sua ordenação.

Essa é apenas uma de uma série de revoltas mencionadas por Le Goff, que começam a construir, em pontos isolados da Europa, uma consciência da autonomia destas comunidades frente à tradição da Igreja e aos burgueses endinheirados. Ao referir-se a esses acontecimentos, o historiador francês detém-se na descrição da praça de Grève, em Paris, que concentra o mercado de mão-de-obra da cidade. O local reúne apenas os trabalhadores que não pertencem uma corporação organizada, que chegam lá pela manhã e se oferecem para variados serviços. Todas as principais cidades medievais, como Colônia e Florença, contam com locais desse tipo.

Essas praças, que concentram pessoas precarizadas, serão

91 LE GOFF, Jacques, op. cit., p. 91.

freqüentemente focos de revoltas variadas, muitas vezes contra as formas de funcionamento da própria sociedade burguesa. Mas o que importa destacar aqui é a mistura de controle e precariedade, com relação ao poder, que as cidades do medievo europeu comportam.

Acompanhemos mais de perto o desenvolvimento dessas estruturas de modo a entender melhor a complexidade dos processos aí desenvolvidos. Em 1300, apenas 20% da população européia viviam em cidades. Paris, a maior cidade da Europa, contava com 200 mil habitantes, entre os quais uma aristocracia eclesiástica e leiga consumidora de produtos. Três espaços a compunham: o econômico, o político e o universitário. O primeiro ocupava a margem direita do rio Sena e se concentrava no entorno dos mercados construídos por Felipe Augusto, dependendo estreitamente das atividades portuárias fluviais. Aliás, a praça de Grève, acima mencionada, situava-se junto ao porto. Uma forte guilda, a corporação dos mercadores-barqueiros, controlava o trânsito de todas as mercadorias que chegam por via fluvial. A Ile de la Cité abrigava o poder político e ecelesiástico – o rei e o bispo – e no final do século XIII, o Parlamento. Na margem esquerda do Sena, ficava a Universidade, reunindo estudantes, professores e intelectuais. Essa subdivisão da cidade condicionará fortemente o

perfil da Paris contemporânea, revelando uma certa inércia da forma na cidade.

A capital francesa representa, emblematicamente, as diferentes funções da cidade – a troca, a informação, a vida cultural e o poder – que se desenvolveram de forma particular no Ocidente. No entanto, se a cidade possui uma vertente de mudança e de adaptação às novas condições sociais, ela comporta, em sua conformação física uma inércia do construído, que resiste à passagem do tempo. Nos tempos da modernidade do início do século XX, acreditou-se que essa inércia instalada havia sido superada pelas imensas possibilidades da técnica; contemporaneamente, porém, ela foi resgatada como um valor em si. Essa arquitetura da cidade – que, muitas vezes, resiste às transformações operadas na economia, na política e na sociedade – é uma concentração de esforços tão extraordinária que simplesmente não pode ser suprimida.

Nas cidades, o dinheiro é muito mais necessário do que no campo, uma vez que aí muitas coisas que o camponês precisa são obtidas pela simples troca de produtos. Nas cidades, as atividades humanas – como morar, vestir e se alimentar – exigem a presença da moeda.

Daí o surgimento dos banqueiros, que nas cidades ocidentais terão nos judeus sua figura representativa. Em virtude da grande

quantidade de moedas, a função principal dos judeus é o câmbio e o empréstimo a juros. Desde o século XIII, eles estão proibidos de ter terras e foram sendo expulsos de todos os ofícios consolidados.

Gradualmente, o ódio começa a aparecer. No início do século XIV, os judeus são expulsos da Inglaterra e no final do mesmo século da França. Nas cidades da Europa Central, da Itália e da Península Ibérica formam-se guetos de judeus.

Desenvolve-se, assim, aquilo que Arrighi considerou como fundamento do modo de produção capitalista: a filiação incodicional à forma monetária. Esse início da submissão à forma monetária estabelece a separação entre valor de uso e valor de troca, que na cidade é potencializado a partir dos humores do mercado. Com isso as cidades também tornam-se centros da vida social e política, onde são guardadas riquezas, mas também conhecimentos, técnicas e obras de arte. Lefebvre sintetiza essa situação:

A própria cidade é uma obra, e esta característica contrasta com a orientação irreversível na direção do dinheiro, na direção do comércio, na direção das trocas, na direção dos produtos”.

92

92 LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade (tradução de Rubens Eduardo Frias) . São Paulo: Centauro, 2001, p. 4.

Já na Antigüidade o camponês era considerado uma pessoa grosseira e rústica em oposição ao homem da cidade. Na Idade Média, o camponês foi o último a converter-se ao catolicismo, mantendo-se pagão durante muito tempo. O trabalho, hoje visto como um valor importante para a construção do indivíduo, era olhado com desprezo na Baixa Idade Média. Apenas a partir de São Bento, no século IX, que se passou a valorizar o trabalho como uma forma de penitência e de oração. Essa valorização parte da regra de São Bento que insiste na importância do trabalho manual e representa um importante acontecimento na história ocidental. As cidades tornam-se locais onde a ociosidade é depreciada, pois nelas é que são vistos os resultados do trabalho nas suas mais variadas formas – catedrais, estátuas, móveis, casas, torres, arcadas, praças etc. Nas cidades é irrefutável a presença de todos os tempos dessa concentração de esforços variados, que marcam seu território de uma maneira definitiva e sem retorno.

Outro relato importante sobre as cidades medievais da Europa e sua forma de estruturação social é o de Henri Pirenne em sua obra fundamental, As cidades da Idade Média. A unidade espacial destacada por ele é um acidente geográfico, o Mar Mediterrâneo, o mare nostrum que os romanos denominavam com tanto carinho e interesse. Para as populações bárbaras que invadiram o Império

Romano a conquista desse espaço era vital. Roma deixa de ser a capital do Império no século IV da era cristã, sendo substituída por Constantinopla. Em certo sentido, o que os invasores queriam era se instalar naquele centro de comércio e desfrutar de seu conforto e das conquistas da civilização ali alcançadas. Os invasores se dirigirão para esta franja da costa do mar Mediterrâneo; os vândalos se instalam no norte da África, os visigodos na Aquitânia e na Espanha, os borgúndios no vale do Ródano e os ostrogodos na Itália.

A Igreja do Ocidente estrutura-se em torno deste mesmo centro de comércio e de vida que é o Mediterrâneo, vindo as dioceses católicas a assumir as antigas divisões administrativas do Império Romano. Mesmo Roma, a Cidade Eterna, é entregue no século IV ao papado, depois que a capital do Império transfere-se primeiro para Ravena, no mar Adriático, e depois para Constantinopla. A partir daí a palavra civitas passa a ter o sentido especial de cidade episcopal de centro diocesano. Pirenne destaca a permanência de formas organizacionais típicas do Império Romano nas cidades da Itália, da Espanha e mesmo da Gália. A presença dos decuriões, espécie de magistrado que possui autoridade jurídica e administrativa sobre a comunidade, do defensor civitatis, e mesmo da figura responsável pela cobrança dos impostos de pedágio por

utilização das estradas também atesta uma certa continuidade. A própria base monetária dos romanos se estende no tempo, prosseguindo até o Império Merovíngio, com a figura de Victória Augusti estampada em suas moedas. Pirenne destaca também a permanência, no início da Idade Média, de mecanismos de controle societário típicos do Império Romano, mas ao mesmo tempo uma atomização do conceito de civitas como comunidade íntegra.

Observa-se o fracionamento numa infinidade de comunidades, sendo a estrutura organizacional do Império Romano preservada agora no âmbito intra-muros.

Essa ordem será abalada durante o século VII da era cristã, com as invasões islâmicas, que depois de tomarem de assalto o Império Persa (grosso modo o atual Irã), chegam até o oceano Atlântico, retornando até as portas de Constantinopla. O Islã irá destruir a centralidade do Mediterrâneo, impulsionando seu centro de gravidade para o norte, possibilitando o aparecimento do Império Franco, marcando a transição, no século IX, do período carolíngio para o merovingio. Pirenne lembra que

sem o Islã, sem dúvida, não seria possível o Império Franco, e Carlos Magno resulta inconcebível sem Maomé...O império de Carlos Magno é essencialmente continental, não se comunica

com o exterior, vive em uma situação de isolamento quase completa.93

O Mediterrâneo transforma-se aos poucos num mar muçulmano e a conquista das suas principais cidades pelos árabes torna impossível a manutenção do comércio de longa distância. A narrativa de Pirenne está preocupada com a escala do espaço geográfico no sistema de cidades que o antigo Império Romano havia montado nas margens do Mediterrâneo, e que não fora destruído por ocasião das primeiras invasões bárbaras. A escala do comércio reduz-se drasticamente, impõe-se uma escala da economia baseada na troca e não mais na moeda, os burgos tendem a uma quase autonomia e auto-suficiência. Do século IX ao século XI a cultura urbana sofre um achatamento de seu horizonte de controle do território, ficando restrita a um microcosmo.

Essa mistura de precariedade e incerteza constrói, em contrapartida, uma forte noção de comunidade e uma acentuada pulverização do poder, que, assim, se torna mais próximo e acessível. As cidades dioceses e os burgos dominados por condes apresentam uma

93 PIRENNE, Henri. Las Ciudades de la Edad Media. Madri: Alianza Editorial, 1972, p. 22.

relação quase simbiótica com seu entorno imediato. Pirenne descreve abaixo uma cidade-diocese:

Apesar de carecer de dados precisos, (...) é possível supor a natureza da sua população. Compunha-se do clero da igreja catedral e de outras igrejas agrupadas em torno a ela, dos monjes dos monastérios... de mestres e estudantes das escolas eclesiais, de servidores e por último de artesãos livres ou não, que eram indispensáveis em função das necessidades do culto e da existência cotidiana do clero. Quase sempre encontramos um lugar, onde semanalmente na cité os camponeses dos arredores traziam sua produção, um mercado...As cités, ao mesmo tempo que residências episcopais, eram também fortalezas. Durante os últimos tempos do Império Romano foi necessário rodeá-las de muralhas para colocá-las ao abrigo dos bárbaros94.

A partir do século XI, com a diminuição das investidas árabes e normandas, inicia-se um processo de restabelecimento das rotas comerciais, principalmente terrestres, que será responsável pela reconstrução, de forma diferenciada, da vida urbana na Europa.

Determinadas regiões desenvolverão um sistema de cidades que acabam configurando um Estado nacional, mas a maioria ainda permanece organizada como cidades-estados por um longo periodo. O que importa destacar na narrativa sobre a cidade medieval é a particularidade desse processo, que acontece num

94 PIRENNE, Henri, op. cit., p. 45 e 47.

longo período e conforma, ao mesmo tempo, uma forte consciência comunitária e uma relação simbiótica entre poder e população.

Essas condições jamais se manifestarão no Oriente, permanecendo a cidade, nessa parte da Terra, dependente dos humores de um poder autárquico.

A estrutura característica, a consciência local aprimorada e o desenvolvimento particular na sua relação entre poder e indivíduo da cidade medieval acabaram por gerar uma forma de organização da produção própria ao modelo ocidental. O restabelecimento das atividades comerciais entre as cidades fez surgir um agente que, aos poucos, torna-se independente do poder imobiliário e do eclesiástico, pois, a partir da troca ou da produção de mercadorias, consegue reunir uma base monetária que lhe confere autonomia.

Resultado e instrumento desse processo, a cidade potencializa seus lucros e possibilita sua total independência dessa base física, pois a abstração monetária acaba por mobilizar toda a sociedade. Segundo Pirenne, durante o período exclusivamente senhorial, que dura até o século X, não existia nenhum tipo de riqueza que não estivesse embasado na propriedade da terra.

Com o desenvolvimento do comércio, ressurge o capital mobiliário, organiza-se uma classe orgulhosa de sua comunidade urbana, e

cuja principal atividade é concentrar cada vez mais moedas. Graças a ela, o dinheiro, que estava guardado em monastérios e casas senhoriais, volta à circulação, convertendo-se em parâmetro de valor e passando a balizar todas as trocas. Paulatinamente, a sociedade assume consciência de autonomia, pretendendo, ao mesmo tempo, realizar mais comércio, libertar-se das tradições religiosas, enfim fundar uma vida na qual o indivíduo seja o senhor de seu destino. É claro que essa liberdade e essa autonomia são prerrogativas apenas dos que conseguem acumular uma base monetária, mas, de qualquer modo, o discurso de ruptura com a tradição instala-se definitivamente, determinando a presença da idéia do moderno no cenário das cidades.

Desde o século XI, diversas partes da Europa começam a ser

“contaminadas” por uma ideologia que coloca a capacidade humana como criadora de seu próprio destino: o humanismo. Na verdade, esse espírito já se manifestara episodicamente, na Europa, durante a Alta Idade Média, como na renovatio carolíngia, que ocorre nos séculos VII e VIII na Inglaterra e em Roma. Mais tarde, no século XII, os proto-humanistas na Inglaterra, norte da França, Alemanha e Países Baixos, todos elegeram o mundo da antigüidade como exemplo. Para eles, “imitar os antigos não é copiá-los, mas

tornar-nos digtornar-nos deles, construir tornar-nossa dignidade e humanidade em face da deles” 95.

O termo humanista circula de forma mais efetiva pela Itália a partir do século XIV, e referia-se àquele que estuda os clássicos, o que incluía o estudo do latim, da literatura clássica e da versificação segundo a ordem dos dictadores. Segundo Paul Kristeller, essa denominação era usada desde o século XI, e vai ganhando, com o tempo, um conteúdo mais laico, no qual diminui a importância da gramática e intensifica-se o da retórica96. No século XV, o humanismo assume em Florença – devido a condições históricas específicas que impulsionaram o patriotismo dos seus habitantes e reduziram o poder oligárquico – conotações integralmente civis, fundindo-se o indivíduo com a polis e a civitas.97.

Esse sentimento já está presente em 1374 com Petrarca, que utiliza a filosofia e a gramática com finalidades laicas, para compreender o real e si próprio, restituindo ao homem uma natureza mais humana.

95 BRANDÃO, Carlos Antonio Leite. Quid Tum? O combate da arte em Leon Battista Alberti. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000, p. 36.

96 KRISTELLER, Paul Oscar. Concetti rinascimentali dell´uomo e altri saggi.

Florença: La Nuova Itália, 1978.

97 “As ameaças dos Visconti de Milão sobre Florença” em 1380, foram “repelidas em 1402 e definitivamente afastadas por Cosimo de Médici com o tratado de não agressão de 1455”. Para uma descrição detalhada, ver BRANDÃO, Carlos Antônio Leite, op. cit., p. 32.

Na realidade, o humanismo permanece religioso, mas a sua religiosidade é libertada dos dogmas e assume uma vertente moral, na qual o herói clássico domina a aspiração individual. Para Petrarca, o conhecimento não é algo definitivo, estando sujeito à interpretação individual e, portanto, potencializador da mudança do mundo. Em outras palavras, na medida em que a construção do mundo é tarefa do individuo, da sua interpretação é também possível imaginar um mundo modificado.

Pretarca dá início a uma reinterpretação dos antigos filósofos, adequando muitas vezes os pensamentos destes à nova realidade.

Propõe a reavaliação dos escritos gregos, considerando Platão mais conciliável com os dogmas cristãos e abalando a autoridade de Aristóteles. Esse retorno à Idade Antiga é importante para caracterizar a ideologia da cidade ocidental como um lugar da liberdade, do livre arbítrio humano, do desenvolvimento de um espírito comunitário particular e da intenção de construção de um poder legítimo.

Desde esses tempos até os nossos dias, a conformação das cidades, evidentemente, transformou-se de forma contínua, assumindo disposições diversas e atitudes filosóficas variadas. De todo modo, o impulso tomado no momento da superação do sistema feudal foi fundamental para a cidade ganhasse a capacidade de

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