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Françoise Choay - progresso e cultura

No documento Livros Grátis (páginas 113-119)

21 entre racionalidade e empirismo, elementos que conferiram às

A. Françoise Choay - progresso e cultura

uma reflexão de fôlego. A perigosa opção panorâmica deve-e ao fato de que, tanto no campo do projeto quanto no mundo contemporâneo, as reflexões e as intervenções que povoam as idéias na hora da ação possuem vertentes distintas, que precisam ser problematizadas para poderem assumir uma proporcionalidade próxima ao real.

2.1. Os teóricos da atuação

Percebe-se uma clara cisão nos agentes aqui escolhidos. Se, de um lado, os anos 60 e 70 ainda mantêm viva a idéia de sentido ou de hegemonia, embora já erodida, nos anos 80 e 90 essa idéia apresenta-se totalmente desgastada. Autores como Françoise Choay, Kevin Lynch, Aldo Rossi e mesmo Collin Rowe140 elaboram seus discursos pretendendo unificar o discurso do projeto. Já Peter Eisenmann, Rem Koolhas e Álvaro Siza declinam claramente dessa pretensão, assumindo um compromisso com a pluralidade de formas de contaminação do tecido social. Percebe-se, nesses autores,

140 As obras fundadoras desses autores, em suas respectivas línguas originais, são as seguintes: CHOAY, Françoise. L' urbanisme, utopies et réalités. Une Anthologie (Paris, Editions du Seuil, 1965) Cambridge: The MIT Press, 1960); LYNCH, Kevin.

The Image of the City, , Cambridge, MA: MIT Press, 1960; ROSSI, Aldo.

L'architettura della città (Padova: Marsilio, 1966); e ROWE, Collin e Fred Koetter.

Collage City. (Cambridge: The MIT Press, 1978).

desde o início de suas trajetórias, uma aberta tendência para a fragmentação dos discursos.

retorno a formas comunitárias passadas (modelo culturalista), que permanecem operativas em nossa contemporaneidade.

Podem ser observadas analogias entre essa construção, centrada nos modelos progressistas e culturalistas, e as polêmicas entre modernos e antigos que fundam o tempo moderno e que retrocedem praticamente ao século XIII na cultura ocidental. Os modernos distanciam-se dos clássicos a partir da assimilação do conceito aristotélico que vincula progresso à perfeição e que, no Renascimento e no século XVIII, foi responsável pelo grande impulso da ciência natural e moderna. A busca de uma beleza supratemporal, que representasse nosso presente de forma direta e clara, acabou determinando que sua própria entrada em cena selaria também sua destruição. O problema é particularmente dramático para as disciplinas de construção do espaço, arquitetônico ou urbanístico, uma vez que a questão do efêmero aí se instala de forma definitiva.

Walter Benjamin – em Obras Escolhidas, v. II, Rua de mão única (São Paulo: Brasiliense, 1987) – destaca como a presença do efêmero, do belo e do autêntico está presente em Charles Baudelaire enquanto uma marca dos tempos modernos, que passam a ser um especialista do prazer fugaz do momento. Para Choay, a

celebração dos novos tempos, proposta pelo modelo progressista, pretendia a cristalização deste efêmero numa forma de operar que colonizasse o mundo a ser construído, fixado num modelo. Daí a presença deste tempo presente que não admite concessão com relação aos tempos passados, pois o presente é intrinsecamente diferente deles.

A rebelião de Choay contra os modelos, tanto progressistas quanto culturalistas, leva-a a se aproximar do empirismo estruturalista de Lynch, Jane Jacobs e Patrick Geddes. A idéia de que a cidade era um livro e que era preciso lê-lo de forma despreconceituosa, sem as amarras do modelo, era típica do estruturalismo em voga, e a autora irá celebrá-lo como a saída para o urbanismo. Fica evidente em Choay sua desconfiança diante da unidirecionalidade do progresso e, por conta disso, ela acredita que é preciso apreender o fenômeno urbano a partir do estudo de suas variedades e especificidades.

Como afirmou Solá Morales, “...a concepção linear da história como progresso ilimitado foi destruída pelo pensamento estruturalista”143

Essa fragmentação do sentido acaba atingindo o pensar, e continua operando no mundo contemporâneo, tendo muito de uma crítica ao

143SOLA MORALES, Ignasi. Diferencias. Topografia de la arquitetura contemporánea. Barcelona: Gustavo Gilli, 1990, p. 85.

racionalismo unicista e simplificador, presente no modelo progressista. Françoise Choay coloca-se frontalmente contra a existência do modelo, como um apriori adotado pelos urbanistas para enfrentar o problema da cidade, alinhando-se a uma posição mais empiricista, na qual o próprio estudo do objeto específico construiria a metodologia de intervenção. Alinhando-se explicitamente a Marx, ela considerava que a ordem normativa, proposta preferencialmente pelos urbanistas, envolvia invariavelmente uma certa ingenuidade, uma vez que a cidade espelhava uma determinada forma de produção.

Em contraposição, a ordem determinista implicava a existência de uma lógica anterior à configuração da cidade, que era exatamente a do modo de produção da sociedade de classes. Surge aqui o problema das complexas relações entre base e super-estrutura do marxismo, pois a forma de organização econômica da sociedade tem primazia sobre a forma de organização da cidade. No entanto, essa primazia não acarreta uma relação de causa e efeito linear e vulgar, como alguns apressados tendem a fazer. Se Marx e Engels – que, no esquema de Choay, pertencem ao urbanismo sem modelo – denunciam exatamente a impossibilidade da existência da cidade ideal em função da sua profunda vinculação com o modo de produção capitalista e apontam que o estágio atual da cidade é

consequência de uma ordem determinada, implantada por esse modo de produção, eles encontram-se, por conseguinte, segundo a autora, fora do urbanismo como prática operativa144.

A classificação desenvolvida por Choay para sistematizar o pensamento advindo da problematização da cidade industrial, com suas imensas dimensões e crescimento rápido, inclui dois estágios históricos: o pré-urbanismo e o urbanismo. No primeiro, existe uma clara vertente política e utópica, que se materializa enquanto proposta em romances ou textos críticos e poucas realizações efetivas. No segundo, surge uma vertente mais instrumental e o horizonte é dominado por profissionais operativos – arquitetos e engenheiros – que propõem e promovem realizações variadas, ou projetos manifestos.

Portanto, o urbanismo difere do pré-urbanismo pelo aumento de seu discurso técnico e pragmático, renunciando a pretensões políticas.

Ademais, dentro da mesma classificação desenvolvida por Choay, percebe-se a estratificação, no interior desses dois períodos do

144O raciocínio de Choay beira o que Lukács qualifica como “materialismo vulgar”

sempre atrás de relações de causa e efeito lineares, não percebendo muitas vezes que os efeitos determinam a consolidação das super-estruturas. Para o marxismo, as cidades representavam a infra-estutura que induzia o comportamento da superestrutura.

desenvolvimento, de quatro modelos que atravessam essas categorias temporais: o progressista, o culturalista, a crítica sem modelo e o naturalista. Esses quatro modelos podem ser reduzidas às duas vertentes mais enfatizadas pela autora, uma vez que estão efetivamente contidas na disciplina do urbanismo: o modelo progressista e o modelo culturalista. No campo da cidade, cristalizam-se duas tendências em relação às quais a autora dedica mais atenção, pois elas, de certa forma, operacionalizam todas as atitudes dentro da matéria. Em outras palavras, Choay estabelece um corte, dentro do campo específico da urbanística, entre a celebração dos novas formas de vida e o retorno a um comunitarismo.

Tal abordagem pode ser explicada pelo exame mais atento do texto de Choay, pois, como já foi dito, Marx e Engels vão muito além da ciência do urbanismo. Por outro lado, ela simplifica o modelo naturalista. Dotado de grande complexidade ideológica, esse modelo, que se desenvolveu nos Estados Unidos e que certamente está inserido na operatividade do urbanismo, constitui um marco no urbanismo do Novo Mundo e particularmente no dos EUA. A redução dos embates ideológicos travados nos EUA a uma simples negação da grande cidade e, em contraposição, a uma celebração do espaço rural, embasada nas crenças dos pais da nação, George

Washington e Thomas Jefferson, parece desconhecer, ou negar importância, a complexidade do movimento city beautiful que teve lugar em Chicago. Se é verdade que Louis Sullivan e o próprio Frank Lloyd Wright polemizaram muito com os integrantes do movimento do city beatiful145, sendo inclusive alijados de algumas expressivas intervenções na cidade por causa dessa divergência, o movimento não tem nada de anti-urbano e manteve clara influência nas escolas americanas, chegando a responder por parcela significativa da concepção urbana de Louis Kahn, arquiteto com atuação marcante no momento em que O urbanismo foi lançado.

Kahn inicia um ambíguo processo de construção de um elo tênue entre arquitetura contemporânea e suas fontes históricas, que, aliás, contava nos Estados Unidos com uma tradição importante, desenvolvida pelo movimento city beautiful de Chicago e pelo academicismo. Como a história da arquitetura européia iria atuar diante das imensidões americanas, que deviam ser colonizadas pelo capitalismo ocidental? A virtude de Kahn reside na sua capacidade de reduzir o processo de projeto, apesar de suas complexas estruturações, a um didatismo objetivo e verificável. Sua maneira de

145 Para uma compreensão mais acurada do movimento americano, ver FRAMPTON, Kenneth. GA Document Special Issue 2 Modern Architecture 1851-1919. Tóquio: A.D.A. Edita, 1981, e CIUCCI, Giorgio. La ciudad americana de la Guerra Civil al New Deal. Barcelona: Gustavo Gilli, 1975.

agrupar o programa, não mais subordinado à objetividade ingênua do funcionalismo, mas a valores simbólicos que estruturam a distribuição dentro do tema, constitui uma verdadeira revolução146. Do ponto de vista cronológico, Kahn representa o retorno à manipulação do material histórico, típico do historicismo que precede as vanguardas arquitetônicas do século XX. No entanto, essa atitude coaduna-se à exigência de verificabilidade das sínteses arquitetônicas ou urbanas, que hoje é particularmente sentida por todos os temas. Com efeito, nos discursos de todas as disciplinas passou a operar, a partir da massificação instalada nos anos 60, mais do que uma tecnicalidade, uma busca de justificação socialmente aceita. Kahn também conceitua a arquitetura e a cidade como instituições humanas por excelência, propondo um desenvolvimento contínuo para ambas. Tudo isso acaba por caracterizar a sistematização de Choay como uma simplificação rápida. De certa forma, essa maneira de compor era profundamente sedutora num país como os Estados Unidos, que ainda não havia desenvolvido tradições. Por isso, concordamos com Manfredo Tafuri quando ele afirma:

146 Os conceitos de Kahn de “programa morto” e “programa vivo” representam para os militantes de projeto uma verdadeira revolução no processo de interpretação de um tema, seja ele urbano ou arquitetônico. Ver a esse respeito, SCULLY, Vincent.

Louis Kahn. Nova York: Rizzoli, 1985, e KAHN, Louis. Conversa com estudantes.

Barcelona: Gustavo Gilli, 1998.

O historicismo da escola kahniana é um apelo ao mito europeu da Razão; nessa medida, é um fenômeno de oposição à tradição pragmatista americana, em equilíbrio entre uma irracionalidade feroz e um cinismo culpado147.

Indo-se além da redução simplificadora feita por Choay do embate ideológico nos EUA, o que cabe salientar aqui é que a negação da grande cidade, presente em Broadacre City de Wright148, só é possível exatamente pelo advento da sociedade industrial e pelo incrível desenvolvimento dos meios de transporte, que a sociedade industrial produziu. Portanto, a proposição da cidade naturalista ou da anti-cidade aproxima-se muito do modelo progressista que tem por principal característica a celebração da nova sociedade industrial, podendo, na verdade, ser absorvido como uma subcategoria do modelo progressista que a torna possível.

Com efeito, o sistema ideológico arquitetônico do século XX sofreu o impacto da emergência dos EUA como grande potência industrial e

147 TAFURI, Manfredo. Teorias e história da arquitetura. Lisboa: Presença, 1981, p.

94. 148 Wright escreveu três livros sobre o urbanismo, nos quais invariavelmente

propunha a dissolução da cidade no campo. O primeiro, de 1932, recebeu o título de Disapearing City. Dois anos depois, juntamente com os integrantes de Taliesin produziu-se uma série de desenhos sobre essa proposta de cidade, que foi denominada Broadacre City (cf. PFEIFER, Bruce Brooks. Frank Lloyd Wrights Drawings. New York: Harry N. Abrams, 1990).

financeira, o que forçou seus arquitetos e urbanistas a uma maior celebração da nova sociedade e a uma negação das operações passadistas, mais recorrentes na Europa149. Em outras palavras, há nos EUA – e em todo o continente americano, inclusive no Brasil – uma inércia ideológica instalada, que empurra os arquitetos americanos para a celebração da nova sociedade, enquanto na Europa a presença das velhas estruturas determina uma celebração de antigos arranjos comunitários.

Françoise Choay aponta como saída para os impasses da ideologia urbanística uma atitude mais empiricista, que qualifica como antrópolis. Essa proposição assenta-se em três vertentes: um urbanismo da continuidade, uma contaminação pela sociologia e, por último, uma análise estrutural da realidade. A prática de Patrick Geddes é o horizonte norteador da primeira, o livro de Jane Jacobs150 baliza a segunda e o livro de Kevin Lynch151 constitui a referência da última. Todas as três modalidades começam a

149 Para um interessante debate sobre o tema, ver BENEVOLO, Leonardo. A cidade na história da Europa. Lisboa: Presença, 1995. Nessa obra, o autor pergunta se existe uma ideologia do espaço público na cidade européia. Ver também a antologia de textos sobre a cidade americana de CIUCCI, Giorgio, op. cit.

150JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cdades (tradução de Carlos S. Mendes Rosa). São Paulo: Martins Fontes, 2000.

151LYNCH, Kevin. A imagem da cidade (tradução de Jefferson Luiz Camargo). São Paulo: Martins Fontes, 1997.

entender a cidade não mais como fenômeno único, mas como uma multiplicidade irredutível.

Particularmente fortes nos países anglo-saxões a partir de Geddes e Lewis Mumford, essas correntes foram e podem ainda ser consideradas como um desdobramento do modelo culturalista, embora mais independente em relação à sua pretensão ordenadora e enveredando por uma crítica empírica dos modelos progressista e culturalista. De certa forma, a antrópolis desenvolveu-se fora do campo do urbanismo, entre sociólogos, historiadores, juristas, psicólogos, que começaram a denunciar o reducionismo presente nas soluções implantadas nos dois modelos e a alimentar uma revisão na compreensão da cidade. Havia claramente uma tentativa de recalcar uma forma operativa de atuação dos arquitetos e urbanistas, que, de certo modo, passam não mais a propor cidades, mas a interpretá-las. Há também uma crítica a uma estetização da ciência urbana:

...o erro dos urbanistas progressistas quando compõem seus projetos como quadros ou obras de arte. Os urbanistas culturalistas pressentiram este engano; mas permaneceram ainda dentro de uma estética. A consciência de uma irredutível diferença de natureza entre percepção estética e percepção da

cidade deveria ser uma das chaves do planejamento a surgir.152

Na sua manipulação do conceito de modelo, Choay parece estar construindo uma crítica aos aprioris dos arquitetos e urbanistas, pretendendo substituí-los por uma investigação exaustiva e prévia desprovida de pré-conceitos. Mas seria possível eliminar o arbitrário na atividade de projeto, ou de planejamento, ou ainda na interpretação da cidade? A expressão autobiográfica é um componente fundamental da atividade de projeto e carrega sempre consigo uma vertente arbitrária e particular para as complexas decisões envolvidas. Na verdade, um objeto como a cidade – que, por sua natureza ou por seu estatuto de realidade, não pode ser reduzido a um utensílio, mas é isso e, simultaneamente, símbolo – precisa ser interpretado pela sensibilidade humana, longe da objetividade imediata. Esse arbitrário da sensibilidade particular de cada época ou de determinados seres humanos precisa possuir, ademais, uma certa dose de neutralidade, permitindo que a vida, em sua diversidade, preencha seus poros.

A criação de estruturas flexíveis e capacitadas de desempenhar diversificadas funções parece ser o grande desafio de nosso tempo.

152CHOAY, Françoise, op. cit., p. 48.

A crítica de Choay insere-se num esforço que elegia o símbolo como valor maior a ser considerado na organização da cidade. Passadas quatro décadas de sua elaboração, a lógica da sociedade tardo-capitalista parece estar sobrecarrregada de símbolos, indicando, para a arquitetura e a urbanística, a necessidade de retorno ou reconstrução da essência de sua objetividade sintética. Essa objetividade sintetizadora, para a arquitetura e para o urbanismo, é representada pela habitação, que permanece sendo o problema primordial de amplos contingentes populacionais em nosso mundo contemporâneo.

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