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Berlim

No documento Livros Grátis (páginas 195-200)

21 entre racionalidade e empirismo, elementos que conferiram às

D. Berlim

Berlim é uma cidade emblemática do século XX. Seu território foi palco, talvez como o de nenhuma outra cidade, de todas as vicissitudes que afligiram este dramático período da história humana.

Quando, em 1989, Berlim auto-proclamou-se capital da Alemanha unificada, teve lugar uma impressionante concentração de

propostas, desenhos e soluções que dão testemunho de uma visão ideológica da cidade contemporânea.

Nesse momento, a cidade se reconstrói a partir de duas realidades instaladas em seu território: de um lado, a incrível fragmentação determinada por imensos cataclismas históricos (bombardeios, muro de separação), e, de outro, a ideologia do movimento moderno, que no lado ocidental optou por uma reconstrução a partir dos pressupostos da Carta de Atenas, e no lado oriental baseou-se em um urbanismo mais acadêmico, mas também de escala moderna. O traço mais marcante é uma franja, ainda perceptível, de 40 a 100 metros de largura por 2km de extensão, ao longo do antigo muro em toda sua parte ocidental. Autores como Carlos Vázquez e Zaida Muxi qualificam essas mudanças como típicas de uma visão culturalista contemporânea, de clara hegemonia da Tendenza italiana, em que uma certa continuidade foi privilegiada.

Esse intenso processo de reconstrução foi desencadeado em 1979, quando a cidade ainda estava dividida, pela Internationale Bauastellung (IBA), uma exposição internacional de arquitetura que pretendia remodelar Berlim Ocidental a partir da inserção de empreendimentos habitacionais que recuperassem áreas centrais da cidade como espaços de moradia. Na realidade, desde o início do século XX, observava-se em Berlim uma forte tendência para o uso da habitação multifamiliar e para o aproveitamento de sua capacidade regenerativa. Em 1931, por causa de um forte déficit

habitacional presente em toda a sociedade alemã, teve lugar a primeira feira de soluções habitacionais, da qual são testemunhas as emblemáticas Siedlungen modernistas de Walter Gropius, Hannes Meier e Ludwig Mies van der Rohe, conjuntos habitacionais patrocinados por grandes corporações alemães.

Em 1957, realizou-se a Interbau, da qual participaram expoentes da arquitetura mundial como Gropius, Oscar Niemeyer e Le Corbusier.

Novo e notável esforço na produção habitacional, essa exposição foi um marco no território da cidade. Nessas duas ocasiões, a ideologia hegemônica da cidade é o modernismo corbusiano, pautado pela Carta de Atenas, isto é, edifícios sob pilotis, soltos em parques e indiferentes ao traçado de ruas e avenidas, invariavelmente posicionadas na periferia284. Enfim, a cidade de Berlim possui um patrimônio invejável de soluções modernas para o tema da habitação multifamiliar, que talvez só seja igualado ao de Viena.

Em 1979 - numa iniciativa que partiu do SPD, o poderoso Partido Social Democrata alemão, mas que seria implementada pelos

284 Alguns autores, como Kenneth Frampton, em História crítica da arquitetura moderna e Anatole Kopp, compreendem o desenvolvimento do modernismo como um embate ideológico entre as proposições mais pragmáticas dos alemães, ligados a uma pesquisa em torno da habitação coletiva e as de Le Corbusier, com sua identificação do problema na cidade e não na habitação

Neu Iba, novos empreendimentos habitacionais na região de Tirgarten, antes da queda do muro

conservadores da CDU, que tomaram o poder na cidade em 1982 firmou-se o slogan “whonen in der Innerstadt” - viver no centro da cidade. Era uma clara demonstração de sintonia com a Carta de Amsterdam, que propalava a reutilização de arquiteturas históricas sem destruir o tecido social instalado. Havia também um nítido anseio por superar os preceitos da modernidade, retomando aspectos da cidade européia tradicional: coesão espacial, uso intenso do solo urbano, reconstrução da rua-corredor e afirmação da cidade colagem ou em partes.

Duas vertentes estavam em cena: a Altbau-IBA (“velha construção”), que pretendia atuar sobre construções pré-existentes; e a Neubau-IBA (“nova construção”), que promovia as novas inserções em terrenos vazios, buscando preencher e retomar a espacialidade da rua-corredor. Comandada por Hardt-Walther Hämer, a velha construção concentrou-se no bairro de Kreuzberg, numa série de edificações do século XIX que não haviam sido demolidas pelos bombardeios da guerra. Era clara a influência do modelo bolonhês de atuação. O próprio Hämer comprometeu-se a consensuar as propostas com os habitantes, impedindo a relocação da população

residente, composta predominantemente por imigrantes turcos285. O slogan de propaganda da Altbau Iba era behutsame Stadterneurung (“renovação com respeito”) e pretendia renovar a situação dos decadentes sobrados sem expulsar seus moradores. Kreuzberg e a região de Luisenstadt eram caracterizadas por uma sucessão de sobrados do século XIX, bastante estigmatizada exatamente pela presença do muro, o que determinou uma total falta de conexão da região com o resto da cidade desde a década de 60.

Ao contrário, nas áreas das novas construções ainda se sentia a forte presença da destruição dos bombardeios da Segunda Guerra Mundial. As intervenções concentraram-se em três trechos da cidade: ao sul de Tiergarten, em Tegel, o antigo porto fluvial, e em Prager Platz, uma praça de conformação redonda. As intervenções mobilizaram mais de 100 arquitetos,286 que atuaram principalmente no preenchimento das quadras seccionadas de Berlim. Foram erguidas edificações amarradas nos 22 metros de altura, entre seis e oito pavimentos, que era o determinado pelo contínuo de sobrados da cidade do século XIX, que assim ressurgia, como que para apagar as feridas da Berlim bombardeada e da Berlim modernista.

285VÁZQUEZ, Carlos GarcÍa (op. cit., p. 40) menciona a porcentagem de 50% de turcos.

286 Para um levantamento completo das intervenções da IBA em Berlim, consultar a revista Architecture and Urbanisme, maio 1987, edição especial.

Vale destacar que entre os 100 arquitetos mobilizados internacionalmente encontravam-se várias figuras do star sistem, cujos projetos estavam voltados para a restauração de imagens históricas da rua-orredor e da continuidade da cidade.

Vásquez, ao sublinhar o caráter artificial dessas recuperações, qualifica Berlim como uma “cidade pós-histórica”, uma vez que falseava a própria história, ao abafar seu passado de feridas e modernista. A IBA propunha a revitalização da cidade a partir da inserção da moradia no seu centro, pois esse uso garantiria uma sazonalidade não especializada em horários rígidos e uma utilização variada da rua. A variação de horários de uso da rua que a habitação geraria na cidade aumentaria o controle social dos espaços públicos, então dominados pela marginalidade e pelos negócios excusos. Para Josep Paul Kleihues, o arquiteto da municipalidade encarregado do projeto, criou o conceito de

“reconstrução crítica”, gerado pela contemporaneidade. Segundo Carlos Vásquez,

Kleihues propôs o conceito de “reconstrução crítica”: recuperar o anterior tecido histórico, sua forma, suas tipologias e sua escala mas com arquiteturas contemporâneas.287

287VAZQUES, Carlos Garcia, op. cit., p. 40.

Percebia-se, também, em Berlim uma clara influência da vertente estruturalista da Tendenza italiana, que considerava a cidade, pelo menos em seu trecho ocidental, dominada por uma essência que o próprio Kleihues denominava racionalismo ilustrado, como se todo o território urbano houvesse sido colonizado pela arquitetura de Friedrich Schinckel. A concisão da arquitetura do Novecentos berlinense, de certa forma, ofuscou a incrível capital do entreguerras que havia sido o embrião de um dos mais poderosos movimentos do século XX, o modernismo.

Na condição de capital do centro da Europa, Berlim havia abrigado movimentos sociais importantes, como a fracassada revolução de Rosa Luxemburgo, em 1918 e 1919, a República de Weimar, com seus expoentes como Bertold Brecht, Gropius, Mies van der Rohe e Wassily Kandinsky, as figuras de industriais como Siemens e Krupp e cientistas como Robert Koch e Albert Einstein e, ainda Hitler e Speer. A partir de 1960, dividida por um muro, a cidade tornou-se a capital da guerra fria. Tudo isso foi esquecido em nome de um intenso processo de reconstrução que a transformaria na capital do século XIX. Diante dessa imensa variedade, elegeu-se a concisão clássica de Schinkel como única força ideológica construtiva e relevante, falseando o passado da cidade.

Em 1989, mais precisamente às 23:30 horas do dia 9 de novembro, a televisão da Alemanha Oriental anunciou a decisão do governo demissionário da República Democrática Alemã de franquear a passagem do muro. A 1:00 da manhã, centenas de pessoas desceram o Unter den Lindem até a Porta de Brademburgo, confraternizando com os guardas que já se dedicavam a guardar cacos do antigo muro. Dois anos depois, o Parlamento alemão, o Bundestag, decidiu trasladar a capital da agora Grossdeutschland288 para Berlim, esperando transformar a sonolenta cidade dividida pelo chamado Muro da Vergonha em uma cidade global.

As previsões apontavam para grandes negócios, pois a nova capital seria a sede de uma das economias mais poderosas do mundo, com 80 milhões de habitantes e elemento de ligação entre as culturas da Europa Ocidental e do Leste europeu289, que agora se agregava à economia de mercado. As expectativas eram de transformar a cidade num dos nós mais importantes da economia do capitalismo tardio. Sua população passaria dos 4,3 milhões de habitantes para

288A expressão “Grossdeutschland” – a Grande Alemanha – está profundamente vinculada à história da nação, um Estado de unificação tardia e que teve uma das fronteiras mais elásticas do continente europeu durante os séculos XIX e XX.

289 A caracterização da Alemanha como uma transição entre a Europa do leste e do oeste está inscrita em seu próprio nome. Afinal, Deutschland é a terra ou reino do oeste.

5,7 milhões em 20 anos, e seriam criados 600.000 novos empregos, a maioria de alta qualificação. Para poder dar suporte a esse desenvolvimento, a cidade teria de construir com 800.000 novos apartamentos, novas sedes do poder, centros financeiros e industriais, equipamentos culturais, infra-estrutura de transportes etc.

Berlim possuía uma particular situação dentro das cidades européias, pois o centro ainda era densamente habitado, tanto no lado ocidental quanto no oriental. Carlos Vázquez fornece mais informações a respeito:

Devido às restrições territoriais que sofria, o setor ocidental teve que crescer dentro de seu núcleo urbano; no lado oriental, a administração socialista optou por construir macro- blocos de habitação nas numerosas quadras arrasadas pela guerra.

Graças a isso, o centro de Berlim não sofreu os fenômenos de despopulação característicos do pós-guerra e também pôde conservar intacto um magnífico entorno natural e agrícola.290

Existiam também incontáveis vazios devido à presença do muro e às marcas dos bombardeios aliados e uma nítida subdivisão em dois centros: o do lado oriental, era dominado pela Karl Marx Alle, enquanto o do lado ocidental era marcado pela Kurfürstendamm e pela presença de generosas auto-pistas, fruto do rodoviarismo das décadas de 60 e 70. As intervenções feitas em Berlim já como

290 VÁZQUEZ, Carlos García, op. cit., p. 43.

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