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Peter Eisenman e a abstração

No documento Livros Grátis (páginas 143-149)

21 entre racionalidade e empirismo, elementos que conferiram às

F. Peter Eisenman e a abstração

permanece insolúvel para amplos contingentes populacionais de nossas cidades. Rowe, ao centrar sua artilharia sobre as presunções utópicas do homem moderno, construiu uma importante vertente de retorno à cotidianeidade mais prosaica, na qual, certamente a questão da habitação está instalada de forma definitiva.

A trajetória de Eisenman teve ínicio muito antes, na década de 1950, quando fez o mestrado em Cambridge na Inglaterra, ocasião em que se aproximou de Colin Rowe e de suas propostas que celebram a fragmentação do movimento townscape. Retornando a Nova York, em 1967 fundou uma das mais importantes instituições na divulgação do fazer arquitetônico e urbano, o Institute for Architectural and Urban Studies, cuja missão era incentivar o pensamento teórico frente a uma prática profissional cada vez mais mecãnica e automática. Em 1969, montou uma exposição no

Musem of Modern Art de Nova York, o famoso MoMA, intitulada

“Five architects”, juntamente com Michael Graves, Richard Meier, John Hedjuck e Charles Gwathemy, todos radicados em Nova York.

A mostra celebrava – e retomava – temas de composição corbuseanos, ainda do período entre-guerras, a chamada arquitetura branca, e, de certo modo, determinava a ascensão definitiva da cidade como núcleo central de produção de inquietudes culturais.

Pouco depois, em 1973, o Institute for Architectural and Urban Studies lançou uma revista, Oppositions, cuja equipe de colaboradores incluía pensadores bastante heterodoxos. A idéia-força de Eisenman de que o ofício da arquitetura e do urbanismo seria uma operação mental e que se estruturaria num desenvolvimento livre de idéias, explica de certa forma porque Eisenman recebeu com tanto interesse Aldo Rossi nos EUA,e divulgou com tanto ímpeto seu Arquitetura da cidade.

Nesse momento, a obsessão de Eisenman era construir a autonomia das disciplinas, que seria responsável pela produção, sem qualquer contaminação funcional ou construtiva, de uma arquitetura pura.

Suas premissas teóricas – como a de outros estruturalistas, entre os

Eisenman: ênfase na dimensão abstrata da arquitetura e do urbanismo

quais Lynch e Rossi – eram inspiradas na teoria da linguagem de Noam Chomsky205, baseada na gramática generativa.

Trata-se de uma teoria complexa, que se contrapunha fortemente à teoria comportamental ou behaviorista da obtenção da linguagem nos primeiros anos de vida. A abordagem de Chomsky é por demais profunda, abstrata e dependente do conhecimento nativo da língua e está calcada na idéia de correção e incorreção gramatical, que produz o desenvolvimento da língua, como uma relação entre construções gramaticais corretas e incorretas. Chomsky criou a idéia de modularidade, segundo a qual a mente comportava uma estrutura pré-preparada para absorver diferentes linguagens, como uma característica crítica da arquitetura cognitiva da mente. No contexto do estruturalismo, a gramática generativa de Chomsky é considerada como um instrumental que pretende conferir a essa corrente do pensamento a possibilidade da criação de linguagem, e não ser apenas um instrumental analítico.

Eisenman utiliza-se desse instrumental teórico, procurando rechaçar qualquer intento de semantizar a arquitetura. Seu projeto aponta na direção contrária à de Venturi, pois procura a sintaxe como uma

205 CHOMSKY, Noam. The necessary illusion, through control in democratic societies. Boston: South End Press, 1989.

interrelação de signos, fazendo abstração com relação aos objetos que ela representa e também com os intérpretes que dela se utilizam. Outra premissa do pensamento de Eisenman é a obsessão, presente em toda sua obra, de recuperar o espírito moderno, que envolvia muitas vezes uma radicalização da inovação. Assim, em sua revisão histórica, ele elege Terragni como modelo de uma arquitetura de neutralidade construtiva e semântica, uma radicalização do projeto corbuseano. Diz Eisenman:

Pode entender-se o processo de desenvolvimento das formas em Terragni como uma tentativa de suprimir o objeto ou a leitura da estrutura superficial a favor da presença visível da estrutura conceitual profunda.206

O espaço abstrato proposto por Eisenman parece restringir-se à geometria. Abandonando qualquer figuratividade, os elementos manipulados são reduzidos a sua essência: o ponto, a linha e o plano. As dez casas que Eisenman processa nos anos 70, simplesmente numerando-as, demonstram todo seu esforço em busca deste espaço cartesiano e puro. O resultado final não importa tanto, mas sim o processo, o registro das operações de desenho ditadas pela mente e pelo tempo de desenvolvimento do projeto. As

206EISENMAN, Peter. “Dall’oggetto alla relazionalitá: la casa del Fascio di Terragni”.

In Casabella 344. Milão, 1970, p. 38-41.

operações de adição e subtração, cheios e vazios, rotação e translação são explicitadas e parecem querer demonstrar que o processo não encontra fim. Aliás, o final é o que menos importa; o que conta é a invenção da sintáxis e aquilo que disparou o processo.

Quando a casa de número VI – construída para Massimo Vigneli em 1975, na Cornualha, Inglatera –, foi publicada em House and Garden, cheia de vida cotidiana, Eisenman demonstrou todo o seu descontentamento. Para ele, a casa se desnaturalizava quando recebia móveis e vasos de plantas: o objeto deveria poder resistir ao uso.

Ao final da experiência das dez casas (que na verdade foram 11) e chegando ao limiar dos anos 80, alguns dos companheiros que haviam montado a exposição dos cinco arquitetos em Nova York haviam adotado o discurso da pós-modernidade. Michael Graves havia acabado de construir o edifício de Portland, abandonando a abstração dos primeiros anos em nome de um classicismo palatável.

Richard Méier mantinha-se repetindo a fórmula da arquitetura branca corbuseana, num jogo de elementos que insistia numa receita assimilável e fácil. Já Eisenman deixava de lado a sintaxe generativa de Chomsky e enveredava pelo pensamento de filósofos como Michel Foulcault, Jacques Lacan, Gilles Deleuze e Jacques Derrida.

Naquele momento, como afirma Rafael Moneo,

A fantasia de uma arquitetura autônoma desaparece para dar passo a uma arquitetura contaminada pelo mundo externo com o qual se queira ou não é preciso contar.207

Eisenman abandonou seu distanciamento e neutralidade abstrata para construir a resposta a um tempo que, segundo ele próprio, não contava mais com o futuro. Era claramente uma guinada teleológica, que pretendia dar conta do achatamento da perspectiva de futuro que emergia após o segundo pós-guerra, com a grande concentração de força destrutiva nas mãos do poder. Em 1984, Eisenman publicou O fim do clássico, o fim do começo, o fim do fim, certamente um texto que demonstra toda a sua ansiosa expectativa pelo espírito da modernidade. Sua intenção nesse texto era questionar três dos pilares sobre os quais a arquitetura ocidental estava assentada desde o Renascimento: a representação, a razão e a história. Recorrendo, em seus argumentos, a Jean Baudrillard em seu livro Simulacro e simulações, Eisenman vinculava representação a significado, razão à verdade e história à idéia de atemporalidade.

Ele também se apropria de Foucault, que distinguia dois momentos do desenvolvimento da cultura ocidental: o clássico e o moderno.

207MONEO, Rafael. Inquietud teorica y estrategia projectual. Barcelona: Gustavo Gilli, 2004.

Eisenman, após remeter a idéia de clássico à de racionalidade, considera que todo o tempo pretérito está articulado por essa idéia, desde o Renascimento, incluindo o modernismo e o pós- modernismo, que qualifica como um tempo no qual é possível haver coerência entre linguagem e representação. Para ele, a tendência geral da história da arquitetura está voltada para o aumento da sua capacidade de abstração:

Desse modo, em seu esforço de distanciar-se da tradição de representação anterior, a arquitetura moderna tentou se desvencilhar dos adornos exteriores do estilo clássico. O resultado desse processo de redução foi chamado de abstração.208

Ressurgia em Eisenman a vontade de diferenciar nossa contemporaneidade dos tempos passados, sem antes tentar também se diferenciar do funcionalismo modernista e da arquitetura como mensagem do pós-modernismo. Seu argumento para isso seguia os passos de Baudrillard, no que concerne à incapacidade contemporânea detectada pelo filósofo francês de distinguir realidade e representação:

208 EISENMAN, Peter. “El fin del clasico: el fin del comienzo, el fin del fin”. In MONTANER, Josep María. Textos de arquitectura de la modernidad. Madri: Nerea ,1994, p. 466.

Um signo começa a ser uma réplica, ou em termos de Baudrillard, a simular quando a realidade que representa está morta. Quando desaparece a distinção entre representação e realidade...a representação perde sua fonte a priori de significação, e então é quando passa a ser tão-somente simulação.209

A questão da descontinuidade do tempo contemporâneo e da sua real dimensão de transformação é algo que acompanha o fazer arquitetônico e o pensamento filosófico desde tempos imemoriais. A argumentação de Eisenman permanece fiel ao hegelianismo, dentro de uma concepção dialética da história na qual se percebe a presença do zeitgeist (espírito do tempo). Eisenman irá então caracterizar o modernismo como um zeitgeist de pretensão atemporal, livre, portanto, de valores preconcebidos, mas se acreditando portador de uma verdade histórica. Segundo ele,

(...) não há verdade (uma verdade atemporal) ou um significado (um significado atemporal). No momento em que surge a possibilidade de que o atemporal se libere da ancoragem do temporal (a história), surge também a possibilidade de que o atemporal se libere do universal para produzir uma atemporalidade que não seja universal.210

209 EISENMAN, Peter, op. cit., p. 467.

210 EISENMAN, Peter, op. cit., p. 471.

O argumento permanece preso ao hegelianismo, tanto no reconhecimento da sucessão de zeitgeist, quanto na capacidade desta sucessão ter um valor demonstrativo para o desenvolvimento humano e também na sua capacidade de gestar um tempo além da história. O desprezo pela continuidade inevitável das ações humanas foi retirado de Nietsche, que, em sua análise, considera que o conhecimento e a razão se haviam transformado numa fé cega, que pouco se diferenciava dos tempos pretéritos, em que se acreditava em ídolos mágicos, e por isso eles estruturavam essa continuidade. A vontade de potência e de plena realização do humano não poderia mais depender da vontade da verdade, que simplesmente não existe, ou existiu apenas episodicamente.

Para Eisenman, a arquitetura não clássica deveria partir não mais da simulação, mas da dissimulação, a única maneira de deixar intacta a diferença entre ilusão e realidade. Sua descrição da dissimulação aproxima-se muito do esforço de Deleuze para caracterizar a cópia, o ícone ou os simulacros pré-socráticos, como o próprio Eisenman reconhece211. Essa questão remete-nos à distinção entre aparência e essência, ou modelo e cópia, que são fundamentais para a

211 EISEMANN, Peter. “El fin del Classico: El fin del comienzo, el fin del fin”. In HEREU, Pere, MONTANER Josep Maria e OLIVERAS, Jordi. Textos de

Arquitectura de la modernidad . Barcelona: Nerea, 1999, apud DELEUZE, Gilles.

Plato and the Simulacrum. Cambridge: The MIT Press, 1983.

concepção do projeto, pois o arquiteto está continuamente interpretando uma realidade e propondo sua transformação. Para Eisenman, nessas operações procede-se a uma contínua dissimulação da compreensão do real.

O que Eisenman propõe, reiteradamente, é que nos desprendamos das noções clássicas de origem e fim, numa operação muito similar à importância dada ao processo nas dez casas, uma tentativa de construção de um grau zero de avaliação de nosso presente imediato. Toda essa vontade de demonstração do processo acaba por denunciar a presença do arbitrário no processo de projeto, no qual o analítico distingue-se do propositivo apenas efemeramente. A partir de Eisenman essas duas categorias do projeto estarão definitivamente embaralhadas, no qual o arbitrário da individualidade continua se referindo a uma qualidade de contar história. Na realidade, Eiseman pretende construir uma objetividade a partir da autobiografia de cada arquiteto, que passa a ter que demonstrar potência em contar esta história.

Eisenman permanece em busca de uma arquitetura e uma cidade atemporais, recolocando a racionalidade em um patamar que a distingue definitivamente da verdade, transformando-a apenas numa língua. Esta língua de Eisenman será destituída de sua inércia

estrutural, pretendendo se transformar numa possibilidade de síntese. O problema do modus operandi deste arquiteto é sua vinculação a uma certa pretensão de autonomia da arquitetura e da urbanística, nunca realizada inteiramente, mas constantemente proposta como sentido. Em relação a esse aspecto, a reflexão de Eisenman contém um efeito colateral, determinado pela sua proposição de estetização radical do ofício, pelo afastamento radical do uso e pela aproximação do contemplativo. Esse efeito colateral, diante da construção geral de Eisenman, deve-se a uma afirmação inevitável de um afastamento do cotidiano, enveredando por uma importância desmesurada do espetáculo.

A questão do uso e da contemplação sempre representou, nos campos da arquitetura e da urbanística, uma equação complexa, na qual as duas categorias devem ser encaradas como constituidoras das disciplinas. A chave para a as relações entre uso e contemplação encontra-se numa vigília contínua e interminável que pretende que as duas dimensões se relacionem de forma dialética, nunca dualista. Assim, na nossa reflexão, mais precisamente na sua proposta de retomada da questão da habitação, não pretendemos negar o contemplativo, mas sim estabelecer uma ligação radical com o uso, num esforço de reconstrução da essencialidade das duas disciplinas, a arquitetura e a urbanística.

No documento Livros Grátis (páginas 143-149)