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Exemplos emblemáticos de atuação

No documento Livros Grátis (páginas 168-172)

21 entre racionalidade e empirismo, elementos que conferiram às

H. Álvaro Siza e a reconstrução do ofício

2.2. Exemplos emblemáticos de atuação

Após esse amplo panorama sobre os agentes formuladores de propostas, podemos voltar para o nosso campo mais específico – o projeto e as cidades. A partir da década de 60, algumas dessas propostas exibiram enorme capacidade demonstrativa frente aos processos acima descritos, atingindo ampla visibilidade, não só na mídia especializada, mas também na grande mídia. A sociedade contemporânea, pós moderna ou pós-industrial, é também urbana, essencialmente urbana245. O ofício de projeto possui ainda profundos vínculos com a cotidianeidade e uma das formas fundamentais de consolidação da ideologia continua sendo as experiências práticas que foram alvo de comentários da mídia, especializada ou não. Numa arte aplicada como o urbanismo e a arquitetura, torna-se necessário investigar essas experiências que assumiram valor emblemático, muitas delas associadas a cidades inteiras, como é o caso de Bolonha, Barcelona, Berlim e Los Angeles, e outras articuladas com pedaços de cidades, exemplificadas por Docklands, em Londres, e Puerto Madero, em Buenos Aires.

245 Em O urbanismo - uma antologia, op. cit., Françoise Choay afirma, logo no início, que a sociedade industrial é urbana (p. 1, nota 9).

No final do século XX e começo do século XXI, essas experiências exercem forte atração por sua maneira de ser e de se constituir, por se estruturarem como formas de habitar particular e por terem se transformado em emblema do enfrentamento das difíceis condições desse período, por parte da ideologia urbanística e arquitetônica.

Evidentemente, elas não são absolutamente independentes do contexto específico que as gerou. Representaram esforços notáveis e criaram, em torno delas, uma expectativa positiva.

O horizonte da cidade contemporânea foi marcado por uma infinidade de caracterizações que começam a emergir a partir da crise do petróleo na década de 70. Foi nesse momento que se intensificaram os processos globalizantes nas grandes corporações, que nasceram, sem dúvida, com o capitalismo, mas que assumiram dimensões jamais imaginadas nas duas últimas décadas do século XX. O poder de controle dos Estados-nações, que até aquele momento estruturara o sistema capitalista, entrava então em declínio, colocando em destaque a gestão da cidade como unidade institucional articuladora da atividade econômica. Paralelamente, tinha lugar o declínio do Estado de bem-estar social, fazendo com que muitas dessas intervenções ganhassem um caráter perverso com relação às populações menos assistidas. Todas as intervenções urbanas foram construídas diante de uma perplexidade

nos discursos explicadores das ciências sociais, que se propunham a interpretar o mundo. E, de certa forma, surgiram ancoradas numa desconfiança pela pretensão homogeneizadora destes mesmos discursos explicadores, e usavam um discurso de afirmação das diferenças e da alteridade inerente a humanidade.

Não se trata de, a partir desses exemplos, identificar modelos de intervenção, capazes por seus alicerces pragmáticos de estruturar possibilidades de atuação. Na verdade, o que se pretende é exatamente combater a inércia criada por estas intervenções, afirmando que outras possibilidades são necessárias de ser construídas. Ao contrário da proposta de Françoise Choay, que identificava a presença de modelos norteadores dessas intervenções, hoje parece não ser mais possível o mapeamento de modelos de atuação, mas sim de visões ou lampejos que misturam pré-concepções e experiências. De certa forma, segue-se uma tendência relativista das ciências sociais em nossa contemporaneidade. Carlos García Vázquez também não aponta mais modelos no esquema que propõe para compreender o desenvolvimento de operações de gestão e de projetos na contemporaneidade, mas sim visões:

Os modelos e categorias que Choay construiu poderiam identificar-se atualmente como “meta-discursos”, termo que o

filósofo francês Jean-François Lyotard utilizou para denunciar as construções históricas lineares e coerentes que a modernidade elaborou para conseguir se legitimar social, política e culturalmente.246

Vázquez esquece-se que o discurso de Lyotard naturalizava o capitalismo como única forma possível de ordenação produtiva, transformando-o no único meta-discurso da pós-modernidade247. Vázquez aponta quatro cidades emblemáticas: a culturalista Berlim, a sociológica Los Angeles, a organicista Tóquio, e, por último, a tecnológica, Houston, todas elas localizadas no chamado Primeiro Mundo.Vázquez também elabora visões de cidade como subcategorias desses tipos e nelas encaixa variadas formas de lidar com a sensibilidade e o interesse visando a construção do habitat.

Esses modelos ou subcategorias foram aqui ordenados em ideologia, fenômeno e operação, da seguinte maneira:

246 VÁZQUEZ, Carlos García. Ciudad hojaldre, visiones urbanas del siglo XXI . Barcelona: Gustavo Gilli , 2004, p. 2.

247 Ver a esse respeito a brilhante construção de Perry Anderson no capítulo 1 de A cultura do dinheiro. Petrópolis: Vozes, 2001.

Visão Cidade Ideologia Operação Fenômeno Cidade

Culturalista

Cidade paradigma Berlim

Cidade da Disciplina

Cidade planejada

Cidade pós histórica

Cidade Sociológica

Cidade paradigma Los Angeles

Cidade Global

Cidade Dual Cidade do espetáculo

Cidade Organicista

Cidade paradigma Tóquio

Cidade Natureza

Cidade dos Corpos

Cidade Vivida

Cidade Tecnológica

Cidade paradigma Houston

Cidade Cibernética

Cidade do chip

Cidade Sustentável

Cada uma das visões de Vázquez desemboca em desdobramentos ideológicos, operativos e fenomenológicos ou comportamentais, que são exemplificados como tipos de cidade. Essas 12 cidades seriam como capas ou folhas, daí o título do livro “cidade folheada”, o que denota um certo relativismo. Porém, o que fica mais patente no seu método é a pulverização em uma série de exemplos que não conseguem prescindir da base geográfica. De algum modo, este é o

mesmo posicionamento de setores radicalizados da esquerda acadêmica brasileira, com pouco ou nenhum compromisso com a operacionalidade, que invariavelmente montam seus esquemas interpretativos que só criticam sem oferecer alternativas.

Nesta pesquisa a proposição é outra. Para nós, o urbano é uma antecipação das possibilidades humanas, uma procura pelo funcionamento utópico já instalado. A pergunta que se interpõe na nossa contemporaneidade é saber se é possível falar de modelos ideológicos rígidos, que guiam o processo do projeto e do plano, ou se se trata apenas de mera resposta das municipalidades e planejadores às pressões hegemônicas do marketing e da mercadoria? O discurso ideológico da diferença e da personalidade acabou contaminando também as cidades? O discurso da alteridade operacionaliza uma participação maior ou determina que as intervenções sejam guiadas por interesses especulativos?

Segundo Vázquez, hoje impera uma hegemonia quase absoluta do culturalismo na produção da cidade efetiva. Para Choay, o que caracterizava o culturalismo em contraposição ao modelo progressista era seu desdém pela emergente sociedade industrial e um apego e uma predileção por valores espirituais essenciais como a comunidade, o artesanato, a agricultura e a religião. Isso

desemboca numa mistificação da cidade antiga, particularmente no seu arquétipo medieval. Na atualidade, seu combate não se dá mais contra a sociedade industrial, nem contra o conceito de civilização ocidental, mas sim contra a globalização e a cultura de massas. Seu combate também não se dá mais contra a cidade do século XIX, que seus predecessores criticavam tanto. O seu objetivo é a manutenção ou o retorno a valores comunitários ou civilizatórios embutidos nas cidades do passado, inclusive na cidade do século XIX, e seu principal alvo de ataque é a cidade do zoneamento especializado, o rodoviarismo da cidade modernista e a torre com desenvolvimento em altura.

Existem nuances regionais na tendência culturalista, que estão profundamente imbricadas aos lugares onde operam. Na Itália, essa tendência encaminhou-se para o neo-racionalismo e para a reconstrução do campo de atuação da arquitetura; no mundo anglo-saxão, para um historicismo e a uma atitude pintoresca mais radical, e no mundo ibérico para um realismo programático, que muitas vezes tangenciava um empirismo operacional. São estes os três modelos de intervenção, em eterna construção, que despontam como formas de fazer cidade na vertente culturalista atualmente hegemônica.

No entanto, é forçoso reconhecer que esse modelo hegemônico de se fazer cidades nas vertentes italiana, anglo-saxã e ibérica, vem demonstrando uma grande incapacidade de promover uma cidade da inclusão, gerando e gestando processos especulativos, que produzem cada vez mais concentração de renda, “expulsões brancas” e “gentrificação”248. A cidade S.A. ou cidade-empresa tem se revelado um dos mais cruéis mecanismos de produção de concentração de renda, pois, por trás de uma capa de inovação, repete-se invariavelmente uma velha fórmula, mediante a qual o investimento é público, mas a aferição de lucro é sempre privada.

Esse lucro privado é usufruído, de uma maneira cada vez mais intensa, de forma concentrada por grandes corporações internacionais, que se associam ou simplesmente atropelam os investidores locais pulverizados, ampliando ainda mais a concentração de renda. Finalmente, cabe fazer nessa apresentação, a exemplo do que foi feito na parte dos pensadores, um alerta sobre o investimento numa perigosa visão panorâmica sobre exemplos variados de cidades, que na verdade, isoladamente, poderiam, por si só ,se constituir numa tese de fôlego. Mais uma vez, o que se pretende é uma visão panorâmica sobre exemplos

248Termos que rementem ao processo de troca da população nas áreas atingidas pela renovação urbana.

emblemáticos, de modo a produzir a identificação de um sentido capaz de revisar os princípios da produção da cidade.

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