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Docklands, Londres

No documento Livros Grátis (páginas 178-184)

21 entre racionalidade e empirismo, elementos que conferiram às

B. Docklands, Londres

como cunhas entre duas práticas profissionais então em processo de consolidação no horizonte profissional da década de 80: o arquiteto do objeto arquitetônico, vinculado à gestação formal, e o arquiteto planejador, que elaborava os planos diretores (o primeiro tratava de arquitetura, o segundo pensava a cidade). O profissional planejador encaminhava-se para uma prática em que se observava um claro declínio das operações de desenho e a emergência de preocupações econômicas, sociológicas e ambientais. Já o arquiteto do edifício, não mais responsável pelas cargas do planejamento e das estratégias de mais longo prazo presentes nos planos diretores, enveredava por um discurso estetizante ou construtivo limitado, centrado na forma do edifício. Esse esgarçamento da atividade profissional permanece até hoje, determinando uma série de procedimentos parciais e localizados, que não dão conta da responsabilidade geral do arquiteto.

De uma forma ou de outra, a Tendenza pretendia reunificar a atuação profissional reconstruindo os limites de operação da profissão em torno da questão da construção, que, como intervenção, deveria trazer em seus alicerces todas as proposições de planejamento e de projeto. Essa rebelião da arquitetura contra o Plano Diretor estava alicerçada também nas manipulações que este havia sofrido e que, baseado numa linguagem hermética e

tecnocrática, o transformaram em um instrumento para iniciados. O Plano Diretor lançava mão, cada vez mais, de um discurso tecnicista e totalizador, enquanto a sociedade como um todo tendia para discursos acessíveis, que possibilitassem a ampliação de sua interferência e, ao mesmo tempo, para discursos que privilegiassem a localidade frente às totalizações. O risco, que hoje aparece diante dos profissionais de forma clara e transparente, é o da perda de importância dos sistemas da cidade, que determinará um perigoso decréscimo da relevância das visões totalizadoras da metrópole.,

baseada no declínio do welfare state, determinou um declínio da indústria como empregadora de mão-de-obra.

Essa nova fase da ordem social e econômica passou a ser caracterizada e polarizada na distribuição ocupacional e também na renda, passando a existir poucos empregos de salários altos e muito mais empregos de valores baixos, achatando as parcelas de consumo médio. Os salários mais baixos são invariavelmente ocupados por minorias étnicas e raciais de imigrantes, que não desfrutam de proteção contra o desemprego e estão concentrados nos setores de restaurantes caros, butiques, lojas de alimentos finos, empresas de comida e de serviços. O setor de serviços de alto padrão – financeiras, seguradoras e empresas ligadas à informação – passou a ser glamourizado, vindo a concentrar os maiores salários. A fragmentação espacial do trabalho buscava a produção de bens onde quer que o custo da mão-de-obra e a economia de fatores fossem compensadores, desde que não voltassem a formar grandes concentrações no território, para barrar a construção de solidariedades.

No final da década de 60, planejadores afirmavam que Londres apresentava uma carência crônica de área de escritórios – apenas 16.000 ha., frente a 30.000 ha. de Nova York e 40.000 ha. de Tóquio –, o que acarretava um risco na perda da hegemonia dentro das cidades globais. Encostada na torre de Londres, a imensa área de 13 quilômetros de extensão – que, no século XIX, correspondia ao maior porto do mundo – era marcada pela presença de escombros industriais. Essas zonas começaram a ser conformadas no final do século XVIII, com o objetivo de assgurar aos navios ingleses operações de descarga seguras. Mundos vastos, escondidos atrás

Docklands, Londres: especulação e segregação no tecido da cidade.

de altos muros, abrigando construções de tijolos, pisos de tábua e estruturas metálicas esbeltas, que haviam sido levantadas por ricos mercadores londrinos, ávidos de lucrar com o comércio ultramarinho, essas instalações bloqueavam a percepção do Tâmisa para a cidade e, ao final do século XIX, já se encontravam obsoletas em função do tamanho dos navios. Durante a Segunda Guerra Mundial, essa parte de Londres foi duramente castigada pelos bombardeios alemães, e ao final da guerra o seu estágio de destruição equiparava-se ao de Berlim. O fato é que, segundo Diana Ghirardo,

O mundo das docas fora sempre afastado da vida da maioria dos londrinos, já que era habitado por pessoas ligadas ao transporte marítmo, de marinheiros a estivadores, e, embora seus homens do mar e seus portuários possam ter ajudado a fornecer as mercadorias necessárias, eles quase não se integravam à vida do resto da cidade..., nunca foi ligada ao centro de Londres por uma linha direta do metrô, e o acesso rodoviário era irregular.259

Em virtude do seu esvaziamento, diversas tentativas de ocupação foram feitas durante a década de 1970. O governo conservador do primeiro-ministro Edward Heath (1970-1974) contratou uma consultoria de engenharia que sugeriu que a área pasasse a ser ocupada por novas e luxuosas residências, marinas, atividades de

259 GHIRARDO, Dianne Yvone. Arquitetura contemporânea, uma história concisa.

São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 209.

lazer e serviços. Contudo, o projeto esbarrou em uma forte reação da classe trabalhadora e não foi adiante. O governo seguinte, chefiado pelo trabalhista Harold Wilson (1974-1976), aceitou as reinvindicações das comunidades de trabalhadores do porto e criou a Comissão Mista das Docklands, organismo vinculado ao todo-poderoso Great London Council (GLC), a autoridade de planejamento da região metropolitana da capital inglesa. O plano elaborado em 1976 pelo GLC previa a reurbanização da área, conferindo clara predominância à habitação popular, destinando alguns trechos às indústrias e à armazenagem e uma área ínfima aos escritórios. O The Times declarou-se contra o projeto, apontando para a existência de uma contradição irreconciliável entre democracia e empreendimento:

A comissão Mista das Docklands fora muito timidamente influenciada pela crença de que faro e amplitude de visão não se coadunam inteiramente com democracia.260

O mesmo tom era usado por um observador acadêmico citado por Peter Hall, segundo o qual o projeto era um construtor de impasses:

O estilo que condiciona esse processo urbanístico é o da consulta e da persuasão... cumpre ao processo encontrar meios de ganhar a confiança de grupos potencialmente em

260Times, edição de 20 de setembro de 1976, citado por HALL, Peter. Cidades do amanhã. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 417.

conflito... participação e consulta demasiado amplas tornam este estilo enfadonho. As decisões parecem nebulosas de tão generalizadas que são.261

O próprio Hall pronunciou um discurso em 1977 no Royal Town Planning Institute, em que se declarava favorável à adoção da desregulamentação diante do quadro de retrocesso do crescimento que se instalava em várias cidades. Hall menciona Hong-Kong como um modelo de cidade vinculada ao antiplanejamento que era alternativa às convenções britânicas amarradas ao Estado de bem-estar social. Num tom irônico, típico da fleuma britânica, apontava como possível uma solução que, porém, ao mesmo tempo desaconselhava:

Uma área dessas de maneira alguma se coadunaria com as modernas convenções britânicas de bem-estar social. Mas poderia tornar-se plena de vigor, economicamente falando caso seguisse o modelo de Hong Kong... Não espero ver o governo britânico trabalhando nesta solução de imediato e faço questão de acentuar que não a estou recomendando como solução para os nossos males urbanos. Digo que é um modelo, e modelo extremo, de uma solução possível.262

É evidente, nesse momento, a ascensão de um novo discurso que ligava as formas de desenvolvimento urbano com consulta popular a

261 HALL, Peter, op. cit., p. 417, citando LEDGERWOOD, 1985, p. 133.

262 HALL, Peter, op. cit., p. 421.

um desinteresse dos empreendedores e uma forte pressão para se flexibilizar regulamentações edilícias para permitir que os empreendedores desenhassem a cidade. Hall chega mesmo a apontar o governo de Hong Kong como promotor do maior programa de habitação popular do mundo não comunista, correlacionando implicitamente que os recursos arrecadados de um lado podiam retornar de outro.

O governo conservdor de Margareth Thatcher ascendeu ao poder em maio de 1979, sucedendo ao trabalhista James Callaghan (1976-1979). Portadora de um discurso que advogava a desregulamentação da economia, Thatcher criou, em 1981, uma corporação privada, a London Docklands Developments Corporation (LDDC), com o objetivo explícito de favorecer a iniciativa particular.

No ano seguinte, o governo Thatcher definiu a Zona Empresarial, na qual era oferecida aos incorporadores atrativos sedutores, tais como nenhum imposto territorial sobre a incorporação durante dez anos, dedução de 100% do capital investido e isenção de qualquer controle de planejamento263. Estava claro o desmonte das estruturas de planejamento da velha Londres, materializado com a extinção, ainda em 1982, do Great London Council. Recusava-se abertamente

263GHIRARDO, Dianne Yvone, op. cit., p. 212.

a se pensar a cidade no longo prazo e, ao mesmo tempo, priorizava-se a ampliação dos espaços de serviços, que acabariam por se concentrar em Canary Wharf. Esse local, com 21km2 de área e situado numa curva pronunciada do Tâmisa, bem ao lado da City, foi denominado, em um passado distante, de Isle of Dogs, ganhando a denominação de West India Docks no século XVIII, quando comerciantes britânicos ali instalaram um espaço para a manipulação de mercadorias vindas do mundo todo.

A primeira obra a garantir a melhora da conexão da área com o resto da cidade foi a construção da ligação rodoviária, a Docklands Highway, que custou 200 milhões de libras aos cofres públicos. Em seguida, foi a vez da conexão ferroviária, também bancada pelo poder público, que ficava na beira do Tâmisa se mostrando inadequada para a conexão geral da área. Por último foi construída a linha do jubileu do metrô de Londres, cujas obras foram iniciadas somente em 1993, depois da quebra dos incorporadores de Canary Warf, os canadenses Olímpia & York.

O aspecto geral de Canary Warf é muito próximo ao das operações habitacionais promovidas anteriormente nas cidades americanas, como na região ao sul de Manhattan de Battery Park, junto ao World Financial Center, projeto de César Pelli. Aí, arcadas protetoras

abrigam um comércio chique e portarias refinadas, as edificações apresentam uma altura constante, observa-se a presença da rua-corredor. Enfim, há uma homogeneidade geral historicista, que se contrapõe a detalhes diferenciados. A arquitetura no estilo sub-Sullivan264 de Chicago é uma clara referência. Afinal, Skidmore, Owings & Merril (SOM) realizaram o plano de massas e César Pelli foi contratado para a concepção da torre. Esta – a mais alta de toda Londres, com 50 andares ou 244 metros – foi criticada pelo Príncipe de Gales, por não guardar uma proporção adequada com a escala da cidade e com a Isle of Dogs.

Além de Pelli e SOM, grandes escritórios americanos se engajaram em projetos na área, como o Kohn Petersen & Fox (KPF) e o Pei Cobb Freed. Escritórios europeus do continente também foram chamados a participar do empreendimento, entre os quais Koetner and Kim, Aldo Rossi e Hanna/Ollin Landscpae. Essas escolhas geraram protestos entre os britânicos, que acabaram conseguindo fazer incluir o escritório de Norman Foster e o James Stirling and Wilford265. Na realidade, o papel de todos esses grandes arquitetos contemporâneos restringia-se a revestir uma massa pré-determinada

264 GHIRARDO, Dianne Yvone, op. cit., p. 225.

265Stirling já havia morrido, mas seu escritório continuava atuando, recebendo a incumbência de três torres residenciais na margem do rio em Westferry Circus

por SOM, detalhando sua portaria e sua cobertura. A Olímpia & York inaugurou um tipo de empreendimento para o qual qualificou os escritórios participantes de “arquitetos conceituais”, retirando-lhes qualquer responsabilidade sobre os sistemas construtivos em geral.

Cabe também mencionar que uma das melhores realizações da área – o edifício do Financial Times, de Grinshaw & Partners, situado na estrada de East India Dock – também foi atingido pela nervosa volatilização de funções no espaço da cidade contemporânea.

Grinshaw & Partners imaginaram uma engenhosa edificação, na qual o principal chamariz noturno seriam as poderosas impressoras da corporação de notícias do Times, colocadas por trás de uma elegante fachada de vidro sem molduras. A idéia era mostrar esse funcionamento para a cidade durante a noite para a produção do jornal. Em 1995, apenas sete anos após a inauguração da edificação, as impressoras foram removidas para outro local, tirando o dinamismo desta demonstração.

A máxima de Marx – “tudo que é sólido desmancha no ar” – materializava-se cada vez mais na cidade contemporânea. A ansiosa volatilização do capital financeiro, sempre em busca de novas paragens, chegava as edificações, determinava que arranjos funcionais pré determinados fossem constantemente desfeitos.

Embora Docklands deixasse patente a crise do Plano Diretor na Europa, o desfecho da operação londrina demonstrou igualmente que a cidade dos empreendedores também construía impasses e ineficiências generalizadas. O incorporador canadense Olímpia&York possuía investimentos globais vultuosos em cidades como Nova York e Toronto. O terreno de Canary Warf envolvia 28,5 ha., que se transformaram em 929.000 metros quadrados de escritórios, 250 restaurantes e outras instalações comerciais.

Em 1986, com a atenuação da exigência de que as empresas bancárias deveriam se manter na velha City londrina, houve um forte boom imobiliário na cidade, conhecido como big bang. Os terrenos e novos empreendimentos localizados na Zona Empresarial, com aluguéis mais baratos e possibilidades de instalações tecnologicamente mais desenvolvidas, sofreram um intenso processo de valorização, passando de 50 mil libras/acre em 1981 para 10 milhões de libras/acre em 1988266. No entanto, em 1990, devido à forte recessão econômica, a Olímpia & York começou a vender espaços por preços muito mais baixos, chegando em 1993 à bancarrota. Nesse ano, seu endividamento total alcançava a cifra de 20 bilhões de dólares.

266Dados colhidos em GHIRARDO, Dianne Yvone, op. cit., p. 218.

Durante a segunda metade dos anos 90, Canary Warf apresentava um aspecto desolador – escritórios desocupados, estações de trem e estacionamentos completamente vazios. A ocupação da torre de Pelli era de apenas 1/3, apesar da London Transport, corporação controladora do transporte de massa da capital inglesa, ter sido obrigada a se mudar para lá. Era mais uma das crises sazonais do nervoso capitalismo contemporâneo, que hoje já se encontra novamente vivendo melhores dias, afinal a torre de Pelli já apresenta 4/5 de sua área totalmente ocupada. Apenas uma dimensão permanece inalterada, Londres continua sendo uma das capitais do primeiro mundo com maior número de sem teto. Em 1991 atingiam a espantosa cifra de 75 mil pessoas. E, assustadoramente entre os anos de 1985-86 em meio a plena expansão econômica do big bang estimativas informavam que 1,8 milhão de pessoas se mantinham abaixo da linha da pobreza, duas vezes mais que na década indústrial de 60.

No documento Livros Grátis (páginas 178-184)