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Colin Rowe e a perda do sentido da história

No documento Livros Grátis (páginas 138-143)

21 entre racionalidade e empirismo, elementos que conferiram às

E. Colin Rowe e a perda do sentido da história

Arquiteto britânico nascido em 1920, Colin Rowe aproximou-se, por volta da década de 60, do movimento townscape, literalmente paisagem urbana, mas que na verdade possuía um significado ideológico de retorno ao pinturesco, a uma plástica do casual e a uma arquitetura anônima. O termo, usado para descrever a paisagem urbana corriqueira das cidades européias, a partir de 1949 passou a representar uma corrente de desenho, que, segundo o próprio Rowe, se aglutinava

...com um artigo de Thomas de Wolfe (pseudônimo de um conhecido crítico britânico do momento) Townscape: Plea for an English architecture founded on the Rock of sir Uvedale Price, publicado em Architectural Review em dezembro de 1949.193

A esse artigo se seguiram outros, assinados por Gordon Cullen e que foram reunidos no livro-manual de Townscape, lançado em 1961 e que combatia abertamente as utopias modernas homogenizantes e autoritárias. A obra celebrava o traçado orgânico e pitoresco das cidades e aldeias medievais da Europa, numa crítica direta à racionalidade da grelha xadrez e da cidade modernista.

193 ROWE, Collin e KOETTER, Fred. Ciudad Collage. Barcelona: Gustavo Gilli, 1981, p. 37.

Posteriormente, em 1981, Rowe lançou, juntamente com Fred Koetter, Cidade Colagem, obra que contrapõe a uma racionalidade grandiloqüente, um cotidiano real e casual, seguindo a linha inaugurada por Cullen em 1961, que negava totalmente a pretensão de sentido para a história humana e para a cidade. Rowe movia um combate sem tréguas à idéia de Hegel baseada na convicção da existência de uma razão inerente à história, que resultaria em estágios cada vez mais aprimorados da humanidade. Seguidor de Kant, Hegel retomava um tema caro ao pensamento teleológico vinculado à tradição judaico-cristã – a busca de um fim ao qual Deus nos conduziria –, fundamentando-o, contudo, de modo novo: a filosofia tomava o lugar da religião, a razão tomava o lugar de Deus e o otimismo histórico tomava o lugar do apocalipse. Para Rowe, os arquitetos encontravam-se, na contemporaneidade, diante do declínio do impulso revolucionário, e eram incapazes de formular um ato de ruptura, exatamente pela constatação de ausência de sentido para a história humana. Percebe-se, mais uma vez, uma concepção do tempo que rompia com a estrutura linear e progressiva dos modernistas, e que procurava incentivar uma vigilância constante – e

não mais racional, como na Tendenza – do acúmulo do fazer humano, de modo a intuir ou indicar alguma direção194.

O sentido coerente e determinado da história humana é, sem sombra de dúvida, uma construção kantiana, que apontava para uma crença num evolucionismo ingênuo, que os acontecimentos contemporâneos estão recorrentemente negando195. Kant inicia o ensaio Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, determinando o caráter natural das atitudes humanas.

As ações humanas seriam, na realidade, um acontecimento natural como outro qualquer e, como tal, governadas por leis naturais universais. Para ele, a narrativa que se ocupava dessas atitudes humanas, que podia ser a liberdade da vontade ou as suas

194 Para uma discussão das várias concepções do tempo em diferentes épocas, ver TERRA, Ricardo Ribeiro, op. cit.

195 Alguns teóricos apontam a desconfiança com relação à técnica, que se desenvolve a partir da revelação do enorme potencial destrutivo que a ciência gerou. As bombas atômicas de Nagasaki e Hiroshima representam um marco.

Outros apontam a enorme quantidade de controle burocrático concentrado nos Estados-nação modernos, que gestaram um desenvolvimento tecnológico sem precedentes não acompanhado daampliação da emancipação do homem comum.

Outros ainda apontam que a expansão capitalista, depois dos anos 1950 deixou de ser unidirecionada, abandonando uma certa centralidade, baseada no chão da indústria, passando a ser polidirecionada. Outros, enfim, consideram que os anos 1950 e 1960 representaram a massificação de todos os ideais modernistas do comportamento cotidiano, que passaram a ser acessíveis a todos, gerando uma emergência de visões não mais unidirecionada. Provavelmente, as mudanças que vivenciamos com relação à nossa concepção de desenvolvimento histórico são tributárias de todas essas transformações.

manifestações mais incisivas, era a história. E esta história possuía, em suas linhas gerais e a partir do jogo da liberdade da vontade humana, um curso regular:

... o que se mostra confuso e irregular nos sujeitos individuais poderá ser reconhecido, no conjunto da espécie, como um desenvolvimento continuamente progressivo, embora lento, das suas disposições iniciais.196

Por essa razão, Kant é considerado o primeiro dos filósofos modernos históricos ou com uma concepção teleológica da história, o que significa a construção de uma concepção objetiva do desenvolvimento dos fatos. É verdade que muitos teóricos apontam que esta idéia de tempo estava profundamente alicerçada num desenvolvimento anterior característico do mundo ocidental. A idéia de tempo desenvolvida pelo cristianismo é bastante peculiar, pois ao conceber a redenção, abre a possibilidade de conceber o tempo como um processo de aprimoramento. E, de certa forma esta forma de conceber o tempo já está presente no judaísmo, uma vez que o Messias poderá vir a qualquer momento, mudando todo o sentido dos acontecimentos197.

196 KANT, Imanuel, op. cit, p. 3.

197 Para uma interessante visão sobre a concepção da história, ver TERRA, Ricardo Ribeiro, op. cit.

O que importa salientar é que uma certa nostalgia do modernismo não nos deixa perceber que a emergência do discurso histórico, nos idos dos anos 60, caminhava em dois sentidos. Num, mais conservador, pretendia-se a restauração de tradições e enraizamentos definitivamente esgotados pela modernidade. Num outro, mais crítico e racional, reivindicava-se um esforço de reinterpretação da história, sugerindo que cada geração reconstrói a montagem de seu passado, não necessariamente dando-lhe um sentido. Ou melhor, dando-lhe efetivamente um sentido sem que este, contudo, seja unidimensional ou dirigido, ou ainda possível de ser desmontado a posteriori.

Na realidade, o progressismo de Hegel é sombrio e um tanto suntuoso, muito distante, de fato, do complexo de ciência e secularismo de Saint Simon...Sem embargo, ainda que outrora vívido, devemos reconhecer finalmente que é também uma luz que só permite uma visão restritiva e monocular, e portanto desde o prisma da ótica normal, devemos reconhecer e podemos falar da decadência e caída da utopia.198

A visão de Rowe de denúncia do hegelianismo imperante nas formulações utópicas do movimento modernista baseava-se em Edmund Burke, pensador e político inglês do século XVIII, que

198 ROWE, Collin e KOETTER, Fred, op. cit., p.32 e 35.

escreveu um livro sobre a Revolução Francesa em 1790199. Para Burke, a sociedade humana desenvolve-se não tanto por intermédio de uma atividade racional, mas sobretudo por meio de sentimentos, hábitos, emoções, convenções e tradições, sem as quais ela desaparece. Segundo ele, em determinadas situações, o olhar racional é incapaz de vislumbrar, operando uma distorção da realidade, que se negava a ser enquadrada. Burke defendia a idéia da limitação da Razão em face da complexidade das coisas, propondo que, perante a fragilidade da razão humana, a humanidade deveria respeitar a obra dos seus antecessores, porque só assim seria possível trabalhar em prol do desenvolvimento social.

Para o pensador inglês, os instintos e sentimentos humanos podiam levar o homem a atuar corretamente, enquanto a razão o enganava ou abandonava. Do ponto de vista da sociedade, as tradições, tendo-se desenvolvido paulatinamente, sendo permanentemente testadas e amplamente divulgadas, representam um tipo de bom senso acessível a toda a gente, e que pode servir à sociedade melhor do que uma intelectualização elaborada, sendo que os sentimentos são o acompanhamento emocional necessário a uma

199 Rowe e Koetter mencionam explicitamente Edmund Burke e seu livro Reflections on the Revolution in France (p. 26). A obra de Burke foi publicada pela Editora da UnB em 1982, com o título Reflexões sobre a Revolução em França (1790).

opinião sólida e amadurecida. Com toda essa argumentação, Burke não negava que a continuidade histórica de uma determinada comunidade impusesse mudanças, mas essas mudanças, necessárias, não deviam ser processadas com base em experiências e invenções, mas sim de acordo com princípios inerentes à própria sociedade.

Percebe-se em Rowe uma clara desconfiança frente aos discursos libertadores, opção típica da cultura britânica pelos cenários cômicos e irônicos, em detrimento dos cenários trágicos e grandiloqüentes, como que enfatizando uma vertente humana contaminada e imperfeita. Percebe-se, também, sua desconfiança diante da tendência, manifesta na cultura ocidental desde o Renascimento, pela construção de cenários justos e eticamente corretos, que, na verdade, abafavam terríveis desejos de regulação:

Em poucas palavras, tratou-se de uma combinação que contribuiu para a substituição da fórmula do Cenário Cômico de Sérlio pela do Cenário Trágico, uma convenção que se insinuou em situações existentes, a fim de converter um mundo do acontecer casual e medievo em uma situação muito mais integrada, de comportamento sério e digno.200

200ROWE, Collin e KOETTER, Fred, op. cit., p. 20.

Por trás desse retorno à cenografia pitoresca, que remetia a Camilo Sitte, havia uma proclamação do processo e uma vontade de explicitar a crueza do cotidiano real das cidades, que não poderiam mas ser reduzidas à ordenação sistêmica das utopias. Essa desconfiança de Rowe frente aos meta-discursos tinha fortes alicerces na contra-cultura dos anos 60 e permanece operando contemporaneamente. Hoje, é forçoso reconhecer que o processo de desenvolvimento da modernidade sofre e se beneficia de descontinuidades que lhe são inerentes. É absolutamente urgente reconhecer que, apesar do desenvolvimento de toda modernidade e de sua expansão pelo mundo, ela sempre apresentou descontinuidades. Pode-se mesmo afirmar que uma das suas características marcantes é a convivência entre antigüidade, arcaísmo e revolução201.

A história humana sempre foi marcada por descontinuidades, seu desenvolvimento nunca foi homogêneo e linear, havendo sempre

201 Neste aspecto, o Brasil parece ser um paradigma notável, onde sempre se combinou, tanto na esfera do Estado e da sociedade, quanto na da arquitetura e da economia, modernismo e permanência do arcaico. Nossa história é exemplar.

Fizemos a independência, mas não terminamos com a escravidão, proclamamos a república mas não instituímos um Estado de direito burguês, criamos uma face indústrial moderna, sem enfrentar os graves problemas do campo, como a reforma agrária. Enfim, vivemos uma interminável imcompletude, sempre presos ao aparecimento de um ciclo econômico virtuoso capaz de nos libertar de nossa face arcaica. Para uma discussão mais aprimorada das descontinuidades da modernidade no Brasil, ver IANNI, Octávio. A idéia de Brasil moderno. São Paulo:

Brasiliense, 2004.

convivências entre estruturas diferenciadas de organização societária, como na passagem das sociedades tribais à emergência dos Estados agrários, ou destes à revolução urbana202. O marxismo sempre chamou atenção para essa questão, diferenciando modelos e mostrando sua convivência intrincada e sua construção, de certa forma, interdependente. As mudanças que ocorreram na história humana desde o século XIII foram tão dramáticas e abrangentes que seu impacto foi, muitas vezes, enquadrado na moldura de um evolucionismo linear e vulgar. A história na sua confusa sucessão de esforços humanos, não necessariamente convergentes, foi, com freqüência, contada a partir de um enredo ordenado e sistemático, que absolutamente não correspondia à realidade.

Essa condição pode ser comprovada pela inusitada emergência do paradigma bio-centrado, que não era antevista por nenhum agente inserido na década de 50. Ademais, acreditamos que o ecologismo ou o paradigma bio-centrado não podem ir contra a construção daquela individualidade renascentista, que tornou possível a sinergia societária que vivemos hoje em dia. O homem abandonando a mimesis da natureza ou da história, concentra-se em expressar seu

202 Para uma visão evolucionista da sociedade, longe de qualquer linearidade e simplificação ver RIBEIRO, Darcy. O processo civilizatório. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

universo interior, pretendendo uma arte funcional e não separada da ética, da ciência e da filosofia, conforme assinala Anthony Giddens:

A história não tem a forma totalizada que lhe é atribuída por suas concepções evolucionárias – e o evolucionismo, em uma ou outra versão, tem sido bem mais influente no pensamento social do que as filosofias teleológicas da história que Lyotard e outros tomam como seu alvo primordial de ataque.203

O que nos parece importante a ser destacado no discurso de Rowe é sua desconfiança frente às ortodoxias, que esquecem da existência efetiva da humanidade, engajada na luta pela sobrevivência ou pela sustentabilidade individual, muito longe, portanto, dos discursos heróicos. A cotidianeidade, que envolve exatamente estas lutas pontuais da existência, precisa de um desenho que celebre a diversidade. Esta é a componente viva do discurso ideológico de Rowe, que permanece atuando e contaminando as diversas formas de se pensar a cidade e o projeto contemporâneos. A contemporaneidade experimenta um enfraquecimento do discurso de adiamento da felicidade, uma emergência ansiosa por sua realização nas condições objetivas de nossas sociedades. Daí o despontar do tema da habitação, tanto no campo da urbanística quanto na arquitetura, pois este cotidiano

203 GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade (tradução de Raul Fiker). São Paulo: Editora Unesp, 1991, p. 15.

permanece insolúvel para amplos contingentes populacionais de nossas cidades. Rowe, ao centrar sua artilharia sobre as presunções utópicas do homem moderno, construiu uma importante vertente de retorno à cotidianeidade mais prosaica, na qual, certamente a questão da habitação está instalada de forma definitiva.

No documento Livros Grátis (páginas 138-143)