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Bolonha

No documento Livros Grátis (páginas 172-178)

21 entre racionalidade e empirismo, elementos que conferiram às

A. Bolonha

emblemáticos, de modo a produzir a identificação de um sentido capaz de revisar os princípios da produção da cidade.

Um outro elemento presente no início da década de 70 e que também deve ser levado em conta foi a chamada primeira crise do petróleo, que, além de outros reflexos, reforçou a tendência à restauração-reutilização, impulsionando discursos conservacionistas diante de argumentos desenvolvimentistas. Foi nesse contexto que despontou a experiência de Bolonha, que será como um choque de realidade para a Tendenza Italiana.

Campo operativo da Tendenza Italiana, a experiência de Bolonha, serviu de palco de aplicação dos conceitos teóricos de projetistas como Rossi, Aymonino e Gregotti. Esses autores não apenas viram suas teorias serem aplicadas, como também, algumas vezes, envolveram-se nessa aplicação. A cidade italiana foi um caso emblemático nos anos 70 de ajuste de uma visão da cidade a uma realidade prática e complexa. Foi o arquiteto Pier Luigi Cervellati, responsável pela reeestruturação de Bolonha na administração do Partido Comunista Italiano251, que promoveu a possibilidade de desenvolvimento operativo para a Tendenza252.

O centro histórico da cidade envolvia uma área de 450 ha. e uma população estimada em 89.000 pessoas. Em 1971 foi aprovado o Plano Regulador do Centro de Bolonha e, em 1973, o Plano Operativo para o Restabelecimento e Restauração da Edificação

251Depois da guerra, Bolonha teve uma sucessão ininterrupta de administrações comunistas, passando a ser tratada na mídia como Bologna Rossa.

252 Professor na escola de Veneza, Cervellati mantém-se atuante, disponibilizando uma série de livros sobre assuntos variados: CERVELLATI, Pier Luigi e SCANNAVINI, Roberto. Bolonia: política e metodologia de la restauración de centros históricos. Barcelona: Gustavo Gilli, 1976; CERVELLATI, Pier Luigi. “Il ruolo dei centri storici de pianura nel quadro regionale”. - In: Bologna Centro Storico.

Bolonha: Alfa, 1970; CERVELLATI, Pier Luigi. Bolonia, politica y metodologia de la restauracion de centros históricos - Barcelona: Gustavo Gilli, 1976; CERVELLATI, Pier Luigi & MILANI, M. Centri Storici. Florença: Guaraldi, 1977; CERVELLATI, Pier Luigi. La Città Pós Indústriale. Bolonha: Il Mulino, 1984; CERVELLATI, Pier Luigi. La Città Bella. Il Recupero dell'Ambiente Urbano. Bolonha: Il Mulino, 1991;

CERVELLATI, Pier Luigi. L'arte di curare la città. Bolonha: Il Mulino, c2000.

Bolonha, campo de experimentações da tendenza italiana

Econômica e Popular na mesma área, cujo objetivo era sanear e consolidar o setor residencial no centro da cidade. A municipalidade assumia a responsabilidade por uma ampla conservação do centro histórico, encarando-o não só como bem cultural, mas também como estrutura sócio-econômica viva, afastando da área os interesses do mercado imobiliário. Os objetivos eram revitalizar o centro histórico da cidade do ponto de vista funcional, buscando uma adequação entre usos e morfologia arquitetônica. Foram individualizadas três categorias tipológicas precisas e uma genérica, às quais se associaram usos adequados:

• grandes monumentos – centros de pesquisa e cultura;

• palácios senhoriais – organismos institucionais e representativos;

• casas convencionais – habitação social; e

• tipos arquitetônicos particulares – habitação (genérica).

Havia uma clara supremacia da habitação na ocupação do território e um interesse declarado de evitar grandes complexos terciários do comércio. As funções universitárias e culturais faziam a descontinuidade do tecido e as representativas, turísticas e artesanais mesclavam-se com a habitação. Era forte o apelo à manutenção e ao desenvolvimento da identidade e da memória

coletiva do lugar. Fazendo eco à Carta de Amsterdam, a municipalidade assumia integralmente o empreendimento no intuito de manter no local a população pobre aí residente. A intervenção da prefeitura desenvolveu o conceito de “restauração integral”, que pretendia recuperar a cidade histórica originária, removendo as intervenções que a haviam contaminado.

Fala-se muito na reconstrução da unidade figurativa e morfológica do centro de Bolonha como projeto, o que já indica uma certa flexibilização com relação aos usos. Para requalificar e reinserir o centro histórico no cotidiano da cidade contemporânea, estabeleceu-se uma ponte entre forma arquitetônica e usos compatíveis, resultando nos itens marcados acima. Havia uma aceitação do fragmentário, do descontínuo e mesmo do caótico, pois este imenso organismo – o centro de Bolonha – guardava segredos.

Existia também um claro apelo à questão da identidade e da memória coletiva. Tal qual colocado no livro de Rossi, a arquitetura seria uma construção sensível da cidade e um processo de longa duração. A cidade foi dividida em dez unidades ambientais, nas quais buscou-se identificar padrões de solidariedade comunitária, numa tentativa de localizar, no território, “formas de vida e de

identidades homogêneas”253. A proposta continha uma clara passagem do zoneamento genérico para um figurativo, embasado em diretivas tipológicas. Com relação ao corpo legislativo subseqüente, tinha igualmente lugar a passagem de um corpo legal limitador para um metodologicamente transparente ou socialmente manipulável. A qualidade era aliada aos elementos a serem revitalizados, havendo uma clara idealização de valores pré-industriais e medievais, que conferiam à intervenção um caráter anacrônico. Essa atitude acabou convertendo a transformação numa operação muito mais figurativa que estrutural254.

A implantação dos projetos desenvolveu-se ao longo da década de 1970 e converteu Bolonha em paradigma das intervenções para conservação de centros históricos no mundo todo. Giulio Carlo Argan, num ensaio magnífico, publicado em 1979, abordou a intervenção de Bolonha numa perspectiva histórica:

Resultados muito importantes, os mais importantes na Itália, foram obtidos em Bolonha, onde a prefeitura assumiu o encargo de uma regeneração integral do tecido urbano do centro através de procedimentos que, ao mesmo tempo, destinavam-se a restabelecer um grau de dignidade social e

253CERVELLATI, Píer Luigi e SCANNAVINI, Roberto, op.cit.

254TAFURI, Manfredo, History of Italian Architecture, 1944-1985, op. cit.

submeter os edifícios a uma restauração propriamente dita.

Devo porém observar: 1 que nas camadas populares bolonhesas subsiste um grau bastante elevado de coesão e apego à cidade e ao bairro; 2 que em Bolonha, as opções políticas da administração municipal facilitaram a adoção de uma política que procurou conter e reprimir a especulação na construção civil.255

Argan assinalava a especificidade de Bolonha, destacando que os laços afetivos entre a população e a cidade como um todo, ou com suas partes, eram particularidades que não podiam ser generalizadas para outras cidades, particularmente para Roma, onde a impessoalidade da grande cidade tinha rompido esses laços.

Ele aponta assim para o problema central da mobilização, ou desmobilização, da população atingida, que irá invariavelmente fazer a fortuna ou o fracasso das intervenções urbanas. Identifica também, de forma arguta, a questão do desenvolvimento das grandes aglomerações urbanas como um desequilíbrio entre quantidade e qualidade, como já visto no primeiro capítulo. Para Argan, o problema da cidade contemporânea, desde o advento da era industrial, envolvia uma demanda quantitativa inusitada de alojamentos, que não poderia ser atendida de forma qualitativa, como as cidades tinham operado até então. A solução envolvia a

255 ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade (tradução de Píer Luigi Cabra). São Paulo: Martins Fontes, 1992.

ampliação da produção de um habitat mais equilibrado, enquadrado pelos valores da cidadania e pelo respeito à natureza, enfim uma produção não alienada da cidade.

A experiência de Bolonha legitimava em muitos aspectos o discurso contido em A arquitetura da cidade de Rossi. Porém, logo se colocaram no horizonte novas intervenções, não relacionadas aos tecidos históricos compactos e morfologicamente coerentes, mas sim a trechos da cidade dominados por auto-pistas, antigas instalações industriais abandonadas ou centros de articulação dos transportes de massa. Carlo Aymonino já havia apontado para as descontinuidades presentes na cidade industrial, que, na verdade, refletiam processos de implantação viária de uma racionalidade determinada por aspectos econômicos capitalistas256. Na cidade tradicional, a arquitetura se havia consolidado por processos históricos de longa sedmentação, enquanto na cidade industrial a determinação havia sido condicionada por uma funcionalidade imediatista hegemônica.

A Tendenza, ao indicar essas descontinuidades entre diferentes formas de gerar cidade, também apontava uma saída operativa: “a

256 AYMONINO, Carlo. Lo studio dei fenomeni urbani . Roma: Edizzioni Officina, 1977.

cidade por partes”. Diante das imensidões nas quais nossas cidades tinham se transformado, Rossi, Aymonino e Gregotti haviam salientado que a compreensão da totalidade só era possível a partir do enfrentamento de trechos ou partes histórica e morfologicamente coerentes. Daí a importância dada ao recorte desses pedaços, que deveriam estar embasados por discursos socialmente compartilhados e acessíveis, longe das abstrações urbanísticas só compartilhadas pelos iniciados. A estratégia, apesar de não ter exatamente esse objetivo, acabou embasando a crítica ao Plano Diretor totalizante, destacando no discurso de arquitetos e urbanistas a importância dos sistemas na cidade. Na verdade, este foi um efeito colateral da proposta, que nunca fora colocado explicitamente desse modo.

Todavia, o que se destaca de forma mais exemplar em Bolonha é seu cuidado com os processos de gentrificação, que contemporaneamente atingem qualquer intervenção na pós-ocupação. Havia uma preocupação recorrente, que permanece com Cervellatti até os dias de hoje, no que se refere ao crescimento interminável das cidades, uma busca por uma maior compacidade.

Cervellatti menciona constantemente a necessidade de promover centralidades nas periferias intermináveis de nossas cidades,

procurando, apesar de suas particularidades, generalizar o caso de Bolonha.

A luta encarnada por Bolonha referia-se também a uma aproximação entre habitação e equipamentos culturais, que era a característica fundamental das cidades pré-industriais. Nesse sentido, Bolonha está plenamente encaixada na vertente culturalista, que retrocede a modelos anteriores para a construção de sua cidade idealizada. O caso específico de Bolonha, apesar das potencialidades de generalização contidas nos esforços de Cervelatti (1976), possuía claras limitações. A cidade era um organismo histórico, tipicamente europeu, e pelo menos grande parte do seu centro fora construído na época pré-industrial. O problema da negociação com o tecido social geral acabou gerando uma representação anacrônica, típica da consideração de que teorizações generalizantes não se adequavam ao problema ou deviam ser consideradas de forma periférica. A questão foi bem colocada por Bernardo Sechi:

...minha idéia é que a regra da representação e da mesa de negociação se interpõe ao plano é típica de sociedades que continuam a crer que seu arcabouço institucional e seus conflitos sociais imediatos são capazes de questionar o próprio sistema, isto é, típico de sociedades e economias nas quais o

campo e políticas regionais são centrais na regulação de importantes relações sociais.257

Fica claro que o exemplo de Bolonha encerrava uma séria restrição local, ofuscando problemas de ordem macro que atuavam nessa mesma esfera. Hoje, quando se caminha pelas ruas de Bolonha, percebe-se a pressão da indústria turística num país com a visibilidade da Itália, que acabou, de certa forma, potencializando aqueles ideais artesanais, pré-industriais e medievais da proposta.

Nesse momento, parecia que a Tendenza servia apenas para as cidades européias mais históricas, sendo descartável na cidade genérica. Daí a importância legitmadora das intervenções em Kop van Zuid, na zona portuária de Roterdam, onde Rossi implantou, em 1982, uma série de bandas edificadas que pretendiam coser o tecido esgarçado dos antigos armazéns. O mesmo pode se dizer do projeto da estação Cardona, em Milão, concebido por Vittorio Gregotti em 1984 , no qual o arquiteto italiano optava por uma macro-estrutura arquitetônica que funcionava como um grande articulador urbano, abrigando funções diferenciadas como as de parque e de praça.

Essas intervenções inseriam-se em contextos descontínuos e esgarçados por atividades industriais. Alem disso, colocavam-se

257SECHI, Bernardo. Il Piano – revista urbanística nº 78, 1985, p. 71.

como cunhas entre duas práticas profissionais então em processo de consolidação no horizonte profissional da década de 80: o arquiteto do objeto arquitetônico, vinculado à gestação formal, e o arquiteto planejador, que elaborava os planos diretores (o primeiro tratava de arquitetura, o segundo pensava a cidade). O profissional planejador encaminhava-se para uma prática em que se observava um claro declínio das operações de desenho e a emergência de preocupações econômicas, sociológicas e ambientais. Já o arquiteto do edifício, não mais responsável pelas cargas do planejamento e das estratégias de mais longo prazo presentes nos planos diretores, enveredava por um discurso estetizante ou construtivo limitado, centrado na forma do edifício. Esse esgarçamento da atividade profissional permanece até hoje, determinando uma série de procedimentos parciais e localizados, que não dão conta da responsabilidade geral do arquiteto.

De uma forma ou de outra, a Tendenza pretendia reunificar a atuação profissional reconstruindo os limites de operação da profissão em torno da questão da construção, que, como intervenção, deveria trazer em seus alicerces todas as proposições de planejamento e de projeto. Essa rebelião da arquitetura contra o Plano Diretor estava alicerçada também nas manipulações que este havia sofrido e que, baseado numa linguagem hermética e

tecnocrática, o transformaram em um instrumento para iniciados. O Plano Diretor lançava mão, cada vez mais, de um discurso tecnicista e totalizador, enquanto a sociedade como um todo tendia para discursos acessíveis, que possibilitassem a ampliação de sua interferência e, ao mesmo tempo, para discursos que privilegiassem a localidade frente às totalizações. O risco, que hoje aparece diante dos profissionais de forma clara e transparente, é o da perda de importância dos sistemas da cidade, que determinará um perigoso decréscimo da relevância das visões totalizadoras da metrópole.,

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