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A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA INSTAURADORA

IMAGINÁRIO, IMAGEM E IMAGINAÇÃO

3.2. A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA INSTAURADORA

Apesar de ter recuperado a imaginação simbólica para o centro das ciências sociais, Freud escamoteia o símbolo em benefício do sintoma, o significado em prol da líbido e da biografia individual, isto é, reduz o simbolismo ao inconsciente pessoal, como vimos atrás. Trata-se de uma hermenêutica cuja lógica redutora, observa Durand (2007), é partilhada tanto pelo funcionalismo como pelo estruturalismo. Assim, para o funcionalismo de Georges Dumézil, um mito ou um símbolo é diretamente inteligível a partir da sua etimologia. Por sua vez, o estruturalismo antropológico de Lévi-Strauss parte da infraestrutura inconsciente – órgão da estruturação simbólica – dos fenómenos culturais, analisa depois cada infraestrutura de forma relacionada uma com a outra e, por último, procura os padrões subjacentes da organização dos fenómenos analisados.

Influenciada pela antropologia de Lévi-Strauss e pela linguística de Saussure20, a teoria do psicanalista Jacques Lacan enferma também do mesmo caráter redutor, muito embora a sua relevância para o estudo do imaginário e, por isso, a breve referência que lhe dedicamos. Lacan (1974-1975) estrutura o espaço habitado pelo ser falante em três registos:

1. O real: constitui o estado natural do qual fomos definitivamente separados pela aquisição da linguagem. Somente nas primeiras semanas de vida estamos dentro deste estado de plenitude; a criança procura satisfazer as suas necessidades sem o sentido de qualquer separação entre ela própria e o mundo externo. A entrada na linguagem, enquanto mediação, marca a nossa irrevogável separação do real;

20 O fundador da semiologia, nos finais do século XIX, Ferdinand de Saussure (1999) define o signo linguístico como uma estrutura composta por um significante (a imagem do signo tal como o percebemos) e um significado (o conceito mental a que se refere, o qual seria comum a todos os que partilham a mesma língua). Os signos organizam-se em códigos de duas formas: paradigmática (um paradigma é um conjunto de signos de onde se escolhe o que vai ser utilizado) e sintagmática (um sintagma é a mensagem na qual os signos escolhidos se combinam); assim, todas as mensagens envolvem seleção a partir de um paradigma e combinação num sintagma.

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ele continua a exercer a sua influência na vida adulta, mas como uma rocha contra a qual todas as nossas fantasias e estruturas linguísticas acabam por fracassar.

2. O imaginário: entre os seis e os dezoito meses – fase especular – a criança, ainda num estado de impotência e descoordenação motora, antecipa imaginariamente a apreensão da sua unidade corporal numa espécie de imagem gestáltica; esta unificação imaginária opera-se por identificação com a imagem do semelhante como forma total, e devolvida a si próprio enquanto olhar, ou com a sua própria imagem especular. Esta experiência primordial está na base do caráter imaginário do ego, constituído como uma imagem ideal e origem das identificações secundárias.

3. O simbólico: na fase edipiana a criança acede à ordem simbólica ao aceitar as normas sociais. As normas, a lei, a estrutura da linguagem configuram o “grande Outro” (por relação com o “pequeno outro”, representado pelo semelhante), a ordem simbólica que antecede o sujeito; este não existe senão no e pelo discurso do Outro, isto é, a linguagem ordena de tal modo a realidade e o inconsciente do sujeito, que este não é mais do que o efeito de uma articulação da lei simbólica. À alienação no desejo do outro, junta-se a alienação no discurso do Outro.

Assim, o imaginário é o lugar da totalidade e das identificações; o simbólico é o campo da linguagem, é o significante, significante mais real do que aquilo que significa, que precede e determina o significado; o real é aquilo que, carecendo de sentido, não pode ser nem simbolizado nem integrado imaginariamente, é o que não pode ser expresso como linguagem, não se pode representar, porque ao re-presentá-lo se perde a sua essência, isto é, o próprio objeto. De modo abreviado, nas miragens do eu, o imaginário; na dependência do dizer, o simbólico; na emergência sem mediação, o real como causa.

Para além da redução de todo o conteúdo da psique a uma linguística carecer de fundamento, também a separação entre o imaginário e o simbólico é questionável. Como observa Durand (2008), qualquer produção de imagens constitui não só uma reprodução da realidade mas essencialmente uma interpretação; a partir do momento em que é percecionado, o sensível atinge o simbólico. Contudo, podemos argumentar a

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favor de Lacan, a separação imaginário-simbólico não é total, e o mesmo acontece para o real-imaginário, uma vez que os três registos, de acordo com a sua articulação segundo a fórmula do nó borromeano, não só atuam de maneira conjunta e em uníssono, como se sobrepõem parcialmente; este esbatimento da fronteira entre o real e o imaginário, ao contrário da generalidade das teorias, arreigadas à romântica rutura entre a imaginação e a realidade, constitui uma das dimensões importantes da teoria lacaniana. Ao mesmo tempo ela clarifica a relação entre o real e a realidade; sendo termos habitualmente utilizados de forma arbitrária para designar o mesmo referente, com Lacan eles diferenciam-se, a realidade não sendo mais que o real simbolizado.

Portanto, quer o funcionalismo quer o estruturalismo reduzem o símbolo ao seu estrito contexto social, sintático ou semântico, conforme o método utilizado. Como observa Durand (2007), a redução sociológica é inversa da redução psicanalítica, mas ambas procedem do mesmo modo: enquanto para a psicanálise o inconsciente é uma faculdade sempre cheia com o potencial energético da líbido, pelo contrário, para a sociologia o inconsciente está vazio, limitando-se a impor as leis estruturais aos semantemas transportados pelo social. Contudo, tanto na psicanálise como na sociologia do imaginário, o símbolo só remete para um episódio regional (é reduzido ao signo ou, na melhor da hipóteses, à alegoria), a transcendência do simbolizado é negada em benefício de uma redução ao simbolizante explícito.

Em oposição a esta via reducionista desenvolveu-se uma via amplificadora da imaginação simbólica, em sincronia com o desenvolvimento da imagem direcionado à presentação e ao simulacro. De acordo com Durand (2007), as raízes desta nova via remontam à epistemologia kantiana – na qual o conceito já não é o signo indicativo dos objetos, mas uma organização instauradora da realidade – e muito deve à orientação da filosofia para o simbolismo por parte de Ernst Cassirer (1874-1945): entendendo o esquematismo transcendental de Kant como imaginação, considera que o problema do símbolo não é o do seu fundamento, mas antes o da expressão imanente ao próprio simbolizante, e define o homo sapiens como um animal symbolicum. Esta via é construída sobretudo pela arquetipologia de Carl Jung, pela fenomenologia existencial de Jean-Paul Sartre, pela fenomenologia poética de Gaston Bachelard, pela fenomenologia do suprasensível de Henry Corbin, pela fenomenologia religiosa de

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Mircea Eliade, e pela hermenêutica existencial de Paul Ricoeur. É esta via que nos propomos percorrer seguidamente.

i. Sincronicidade e individuação simbólica

Rompendo com a redutora hermenêutica freudiana, o psicanalista Carl Jung (1875- 1961) parte do conceito basilar da sincronicidade para uma conceção transpessoal e amplificadora do inconsciente. Com base no estudo de sonhos e fantasias, de símbolos, mitos, religiões e rituais de várias culturas e eras, da alquimia e da astrologia, e em sintonia com a física moderna, Jung (1971) demonstra uma correlação entre fenómenos psíquicos e fenómenos não psíquicos, isto é, coincidências significativas entre imagens inconscientes que alcançam a consciência de forma direta ou indireta através de um sonho, associação ou premonição, e situações objetivas que ocorrem no mundo objetivo da matéria. Dado que não se pode explicar tais coincidências de modo causal, terá de ser admitida uma equivalência de sentidos, o que permite supor a existência de uma unidade entre a psique e o mundo, um unus mundus, uma realidade comum que pode ser dada através de diversas formas simbólicas, científicas ou artísticas; trata-se da dimensão psicóide, corolário da sincronicidade. É sobretudo quando a psique está a funcionar num nível menos consciente, como no devaneio, que os fenómenos sincronísticos se manifestam.

A relativização do tempo e do espaço inerente aos fenómenos sincronísticos leva Jung (2002) a questionar a limitação da psique à mente humana individual. Assim, a par do inconsciente pessoal postula a existência do inconsciente coletivo que, ao invés de um sistema pessoal encapsulado, é uma objetividade ampla como o mundo e aberta ao mundo. Enquanto o inconsciente pessoal deve a sua existência à experiência pessoal e é constituído sobretudo por conteúdos esquecidos ou reprimidos da consciência, os conteúdos do inconsciente coletivo nunca estiveram na consciência, devendo a sua existência apenas à hereditariedade; enquanto o inconsciente pessoal é composto essencialmente por complexos21, o inconsciente coletivo é constituído por arquétipos.

21 Na psicanálise ortodoxa, um “complexo” é um conjunto organizado de representações e recordações de forte valor afetivo, parcial ou totalmente inconsciente; sendo constituído a partir das relações interpessoais da história infantil, um complexo pode estruturar todos os níveis psicológicos (Laplanche & Pontalis, 1970)

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O conceito de arquétipo, um correlato do inconsciente coletivo, indica a existência de determinadas zonas na psique que estão presentes em todo o tempo e lugar. Formas universais sem conteúdo, que organizam temas, símbolos e imagens, os arquétipos são evidenciados nos sonhos, na imaginação ativa (sequência de fantasias que é gerada pela concentração intencional), nos delírios dos doentes mentais, e nas fantasias em estado de transe. Mais do que sinais ou alegorias, os arquétipos são símbolos verdadeiros e genuínos, na medida em que são ambíguos, cheios de pressentimento e inesgotáveis. Ao contrário da interpretação semiológica freudiana, que reduz de forma unívoca o símbolo ao sintoma sexual do indivíduo, Jung interpreta o conteúdo imaginário da pulsão simbolicamente, como sentido espiritual do instinto natural. O símbolo é multívoco, não pode ser assimilado a um efeito que se reduziria a uma única causa; enquanto para Freud o símbolo é algo que oculta, para Jung (2011) o símbolo é revelador de algo; a obra de arte não é um sintoma de qualquer inadaptação do seu autor, mas uma experiência visionária com caráter originário; uma sombra do artista para Freud, a obra de arte é para Jung uma realidade independente da vontade do criador e, como tal, o artista é uma sombra da obra de arte.

A função simbólica é o lugar de passagem, de reunião dos contrários (tal como acontece no termo alemão do símbolo, sinnbild: sinn = sentido e bild = imagem), constitutiva do processo de individuação: o “processo simbólico é uma vivência na imagem e da imagem. O seu desenvolvimento apresenta geralmente uma estrutura enantiodrómica (…), apresentando portanto um ritmo de negativo e positivo, de perda e ganho, de escuro e claro” (Jung, 2002, p. 47). Este processo de individuação é estruturado por vários arquétipos, nomeadamente a sombra, a anima, o animus, a

persona, o self22 e o herói.

Pela sua especial importância no imaginário cinematográfico detemo-nos brevemente sobre o arquétipo ou mito do herói, através da abordagem do junguiano Joseph Hendersen (1964). O mito do herói é o mais comum, varia muito nos seus detalhes ao nível dos tempos ou das diversas culturas, mas apresenta sempre a mesma estrutura de

22 A sombra constitui o lado obscuro da personalidade, representa qualidades e atributos desconhecidos do ego, os comportamentos imorais e a espontaneidade das emoções; a anima representa as tendências psicológicas femininas e o animus o elemento masculino do inconsciente da mulher; a persona é a forma pela qual nos apresentamos ao mundo, a parte de nós que desejamos tornar pública, a nossa máscara; o

self representa os esforços do homem para alcançar a unidade, a totalidade, a integração de todas as

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base: nascimento humilde, provas da sua precoce força sobre-humana, ascensão rápida ao poder e à notoriedade, luta triunfante contra as forças do mal, falibilidade perante a tentação do orgulho, declínio por traição ou por um ato de sacrifício heroico, onde sempre morre. Tendo como função desenvolver no indivíduo a consciência do ego, das suas próprias forças e fraquezas, de forma a prepará-lo para as difíceis tarefas que a vida lhe vai impor, a imagem do herói evolui de maneira a refletir cada fase de evolução da personalidade humana. Tal evolução é exemplificada pelo ciclo heroico dos Winnebagos, uma tribo de índios norte-americanos, descrito por Paul Radin, o qual identifica quatro etapas distintas:

1. Ciclo Trickster: Trickster é uma personagem dominada pelos seus apetites, com a mentalidade de uma criança; é cruel, cínica e insensível; frequentemente supera as fraquezas físicas através de truques ou do humor subversivo; aparece por vezes sob a forma de animal, passa de uma proeza maléfica a outra, e no final adquire a aparência de um homem adulto; por exemplo, o deus nórdico Loki é um autêntico arruaceiro; no século XX, um dos grandes Tricksters é Charles Chaplin.

2. Ciclo Hare: Hare (a lebre) é uma personagem mais civilizada, sem os impulsos infantis e instintivos do trickster; embora não tenha ainda alcançado a plenitude da estrutura humana, surge como o fundador da cultura – o transformador; podemos ver esta personagem refletida na figura de Prometeu, que rouba o fogo – elemento fundamental de transformação da humanidade – dos deuses para dá-lo ao homem.

3. Ciclo Red Horn: Red Horn vence difíceis provas pela astúcia ou pela força; tem poderes sobre-humanos ou deuses tutelares para garantir a vitória sobre as forças do mal; no final o herói-deus vai embora deixando Red Horn e os seus filhos na Terra; os perigos que ameaçam a felicidade e a segurança nascem agora do orgulho do próprio homem; Buda tal como Cristo são a imagem do poderoso homem-deus; proteger ou salvar a donzela em apuros era o mito preferido da Europa medieval.

4. Ciclo Twin: unidos originalmente no ventre materno, os Twins foram separados ao nascer; representam os dois lados da natureza humana – Flesh é conciliador, brando e sem iniciativas, Stump é dinâmico e rebelde; por muito tempo permanecem invencíveis, até sucumbirem vítimas do abuso da própria força; tal como no ciclo do Red Horn, encontramos neste ciclo o tema do sacrifício ou morte do herói como

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a cura necessária para o orgulho cego; Rómulo e Remo, os gémeos criados por uma loba e que fundaram Roma, são o exemplo mais conhecido do quarto ciclo do mito do herói.

Os quatro ciclos do mito do herói representam os esforços do homem para lidar com os problemas do crescimento; a imagem do herói é um meio simbólico pelo qual o ego se separa dos arquétipos evocados pelas imagens dos pais na sua primeira infância. Para além do ajustamento biológico, a tarefa do herói tem por objetivo libertar a anima, necessária a qualquer realização criadora verdadeira.

Em suma, a sincronicidade entre a psique e a matéria, entre a temporalidade individual e a intemporalidade arquetípica, amplifica a relação do homem com o mundo – desloca o homem de um mundo biológico e biográfico para um mundo transcendental, cósmico e espiritual – e revela um simbolismo multívoco, instaurador de significados inesgotáveis, cuja função criadora permite articular o inconsciente com o consciente, sintetizar opostos com vista à individuação e à plenitude. Tal otimismo é criticado por Durand (2007): se Freud apresenta um conceção muito estreita do simbolismo, Jung tem uma conceção demasiado ampla da imaginação simbólica, e ao mesmo tempo demasiado centrada no processo de individuação, confundindo os termos. Porém, como veremos no ponto seguinte, é na arquetipologia junguinana que Durand assenta um dos pilares fundamentais da sua abordagem do imaginário, do mesmo modo que, em termos mais específicos, a associação do devaneio à sincronicidade influencia a poética do devaneio de Bachelard.

ii. A consciência imaginante como ato de liberdade

A partir de uma perspetiva fenomenológica de inspiração husserliana, centrada na descrição das estruturas da consciência transcendental através da intuição, Jean-Paul Sartre (1905-1980), o filósofo do existencialismo, começa por questionar, na década de 1930, a conceção clássica da imagem, desde Descartes até Hume: como consequência da dedução apriorística da imagem e sem atender à experiência interior, a imagem era entendida como mero resultado da perceção, uma memória; ao fazer da imagem uma coisa, tal conceção não permite explicar a relação da imagem quer com o pensamento quer com as outras coisas do mundo (Sartre, 2008).

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Na sua proposta de uma psicologia fenomenológica da imaginação, onde procura analisar como a imagem se dá e descrever a estrutura própria da consciência que torna possível o ato de imaginar, Sartre (1996) concebe a imagem como uma forma de consciência e, como tal, dotada de uma estrutura intencional; a imagem é um ato de consciência em relação com um objeto e não um conteúdo inerte. Esta oposição “imagem – objeto exterior” expressa a diferença entre a imaginação e a perceção: enquanto a consciência percetiva se apresenta como passiva, a consciência imaginante é dotada de uma função ativa; enquanto a perceção nos dá os objetos apenas através de projeções de perspetivas, a imaginação proporciona-nos representações sintéticas e holísticas dos seus objetos; ao contrário da perceção, a consciência tem uma relação com o objeto de maneira direta, sem intermediários. Apesar da ausência do objeto, a imagem é uma presença na sua totalidade imediata, é um equivalente, um analogon do objeto. A imaginação é a condição sine qua non da liberdade: a consciência imaginante é uma espontaneidade pura, que conserva o objeto em imagem e o dota de novas qualidades em função da intenção e do desejo. Esta vinculação ao desejo faz da vida imaginária uma vida próxima da consciência mágica; tal como o ato mágico, o ato de imaginar é um encantamento destinado a fazer aparecer a coisa que desejamos, de modo a podermos possuí-la; e a magia, o fascínio que o imaginário exerce sobre nós é o meio pelo qual podemos estabelecer projetos existenciais futuros.

A conceção da imagem, não como simples recordação mas como correlato da imaginação, um objeto-imagem que se oferece imediatamente pelo que é, e o posicionamento da imaginação no cerne da consciência livre, constituem o grande contributo de Sartre para um imaginário existencialista. Contudo, ao opor a imaginação ao pensamento, ao conceber a imaginação como produto do pensamento e ao serviço deste, minimiza o papel da imaginação. Tal desvalorização deve-se, segundo Durand (2007), ao facto de Sartre ter aplicado o método fenomenológico de forma restrita, preso num solipsismo psicológico, sem consultar o património imaginário da humanidade constituído pela poesia e pela morfologia das religiões. Se esta última tinha sido uma das grandes fontes inspiradoras de Jung, a poesia constitui a pedra filosofal da fenomenologia bachelardiana.

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Centrado no fazer-se, na criação absoluta, o filósofo Gaston Bachelard (1884-1962) procura na poesia o reflexo da experiência cósmica humana. Bachelard (2008a) define duas vias opostas de conhecimento: a via da ciência objetiva, da qual deve ser eliminado todo o símbolo, e a via da subjetividade poética, que assimila o mundo ao ideal humano; as imagens, vistas como obstáculos para a abstração científica, revelam- se uma fonte criadora para o devaneio da imaginação poética.

Afastando-se da psicanálise e da sociologia que reduzem o imaginário ao inconsciente (aos sintomas oníricos e às sequências míticas, respetivamente), Bachelard volta-se para o subconsciente poético, expresso através de palavras, e para o devaneio do leitor de poemas, que encontra a felicidade na leitura; mais do que a pintura, o verdadeiro domínio para se estudar a imaginação é a obra literária, em particular a poesia, onde tudo é movimento e contínuo élan. O método fenomenológico adotado por Bachelard (1996, pp 2-3) para explorar as imagens poéticas “resume-se em acentuar- lhes a virtude de origem, em apreender o próprio ser da sua originalidade e em beneficiar-se, assim, da insigne produtividade psíquica que é a da imaginação”. Ao contrário da fenomenologia estática e niilista de Sarte (que põe entre parêntesis o conteúdo imaginativo), observa Durand (2007), a fenomenologia de Bachelard é dinâmica e amplificadora, na qual o símbolo conduz à instauração de um ser que se manifesta por uma imagem singular, e só por ela.

Concebendo a imaginação como “a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade”, Bachelard (1998, p. 18) inscreve a dinâmica criadora das imagens na experiência do corpo em relação com a matéria. Trata-se de uma imaginação material, oposta à tradicional imaginação formal assente na exaltação da ocularidade. Ilustrada pela profusão de metáforas visuais aplicadas ao conhecimento, como ponto de vista, enfoque, perspetiva, leitura, etc., a predominância da visão como sentido coextensivo ao pensamento remonta à antiga Grécia, onde o ato