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CINEMA E IMAGINÁRO

5.2. FOTOGENIA E O ENCANTO DO DUPLO

A invenção da fotografia na década de 1820 (pelo artista e físico francês Louis Daguerre) cria uma nova relação da imagem com o real. Na sua análise ontológica da fotografia, na década de 1940, Bazin (1992) observa que a originalidade da fotografia relativamente à pintura reside na sua objetividade essencial, libertando a pintura da procura da semelhança e atirando-a para a categoria de objeto; para além da semelhança, a fotografia transfere a realidade da coisa para a sua reprodução, satisfazendo a nossa obsessão de realismo. Também para o semiólogo Roland Barthes (1980, p. 114) a ordem fundadora da fotografia é a emanação do referente: “de um corpo real que estava lá, partiram radiações que vêm tocar-me; `isto foi´ é o noema da

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fotografia”; sendo um certificado de presença, o seu poder de autenticação é superior ao da representação.

É na qualidade latente do duplo, defende Morin, no clássico ensaio socio- antropológico O cinema ou o homem imaginário, de 1956, que reside o encanto da fotografia, um dos pilares da visão mágica do mundo que o cinema constitui. O duplo é a “imagem fundamental do homem, anterior à consciência de si mesmo, reconhecida no reflexo ou na sombra, projetada no sonho, na alucinação e na representação pintada ou esculpida, fetichizada e magnificada nas crenças, na supervivência, nos cultos e nas religiões” (Morin, 2011, p. 319). Como resposta, entre outras, à necessidade que luta contra a erosão do tempo, o homem desdobra incessantemente a vida em imagens (mentais ou materiais), cria um duplo de todas as coisas, abre o mundo ao imaginário. Ao mesmo tempo que constitui a presença de uma ausência, a fotografia também parece revelar o invisível do original, a alma da pessoa (ao que não é alheia a tradicional expressão “olha o passarinho” inerente ao ato de tirar uma fotografia, tendo em conta a associação simbólica da ave ao espírito) ou do objeto, como se a imagem material tivesse uma qualidade mental de que carece o original, a qualidade de duplo, um ego alter. Em suma, a fotografia contém os genes da imagem (mental) e do mito (duplo), e cria um campo mágico-afetivo onde reina a recordação, o fantasma, a alma.

São pois estas virtudes, conclui Morin (2011, p. 39), que a fotografia transmite ao cinematógrafo, sob o nome genérico de fotogenia: “qualidade complexa e única de sombra, de reflexo e de duplo, que permite às potências afetivas próprias da imagem mental fixar-se na imagem saída da reprodução fotográfica”. Esta herança é naturalmente transformada pelo cinematógrafo: enquanto a fotografia pode diminuir de tamanho até caber num bolso, a projeção cinematográfica pode ocupar a dimensão de uma parede; se na fotografia a imagem não pode dissociar-se do seu suporte, no cinema a imagem é desmaterializada, torna-se impalpável, fugaz; enquanto a fotografia se presta a uma utilização essencialmente privada, o cinema é um espetáculo coletivo; por último, o fetichismo inerente à fotografia só ao nível da foto ou do autógrafo da vedeta encontra um paralelo no cinema. Porém, a projeção acentua as qualidades de sombra e reflexo da imagem cinematográfica, ao mesmo tempo que o movimento a dota de uma corporeidade acrescentada. Enquanto agora vacila entre o caminho da sombra e o puro

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reflexo, sobretudo até à aparição da cor o cinema é mais marcado pela qualidade da sombra, podendo esta substituir os próprios atores.

Redundantemente presente no cinema expressionista e no cinema noir, a sombra projetada por uma personagem constitui a imagem viva do seu eu fantasmagórico, do seu duplo. Igualmente expressiva é a aparição da personagem como sombra: como refere Arnheim (1996), a iluminação vinda de trás dá a uma figura a sinistra qualidade da obscuridade; esta figura escura não se apresenta positivamente como um corpo sólido material com textura de superfície percetível, mas apenas negativamente, como um obstáculo à luz, sem volume e sem profundidade, criando a misteriosa sensação de uma sombra movendo-se no espaço, como uma pessoa. Atitude oposta à utilização expressionista da iluminação é adotada pelo cinema neorrealista; como observa Martin (2005), o neorrealismo italiano tornou a colocar no lugar de honra as iluminações sem ângulos e pouco contrastadas, manifestando uma recusa total de qualquer dramatização artificial da luz.

Paral além do duplo, é sobretudo no jogo de luz e sombra (justamente designada tecnicamente de “fotografia” do filme) – apreendidas como duas forças antagónicas, imagem do conflito entre o bem e o mal, a virtude e o pecado, Deus e o Diabo – que a visão do cinema toma corpo. Antes de mais, assinala Arnheim (1996), a luz é um dos mais poderosos meios para criar a ilusão da tridimensionalidade: os gradientes de claridade criam profundidade, e as transições súbitas de claridade provocam saltos de distância; por outro lado, se a sombra própria do objeto define volume, a sombra projetada define espaço e opera como um objeto adicional. Em segundo lugar, os vários tipos de luz criam diferentes valores plásticos e dramáticos. Assim, em termos da sua qualidade, a luz focalizada cria fortes contrastes luz-sombra, evidenciando e escondendo elementos do campo, compondo um ambiente misterioso, um clima de intimidade ou angústia, e cria um movimento dirigido, guiando o olhar do espetador; a luz dispersa suaviza os elementos representados, criando uma atmosfera de tranquilidade e paz. Quanto à direção, se a luz frontal elimina as sombras, tornando os objetos planos, a lateral acentua o contraste luz-sombra e o volume; a contraluz realça o contorno dos objetos e anula o seu volume, desmaterializando-os. Por fim, relativamente à sua altura, a luz alta, ao imitar a luz solar, acentua o realismo, ao invés da luz baixa que sugere um ambiente irreal, fantástico.

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A herança fotográfica herdada pelo cinema foi muito cedo realçada por Louis Delluc, um dos iniciadores da crítica cinematográfica francesa, nos anos de 1920, ao eleger a fotogenia como uma das dimensões importantes da linguagem do cinema; considerando a marca distintiva do cinema relativamente ao teatro, a sua aptidão para reproduzir o real, entende a fotogenia como a concordância entre o real e a imagem, a capacidade do cinema para perceber melhor a beleza do mundo, e inerente à conceção arquitetónica do filme.

Reconhecendo-o também como filho natural da fotografia, Moscariello (1985) chama a atenção para o oposto destino escritural do filme: enquanto a fotografia se limita a fixar o dado contingente sem poder organizá-lo numa sequência discursiva, o filme transforma o mundo em discurso, subtraindo as coisas à morte a que as condena a duplicação mecânica da fotografia; se o tempo do filme só pode ser o presente, o da fotografia é sempre o passado, passado este destinado a ser revivido individualmente em relação com a história pessoal e os afetos do espetador.

Em suma, da fotografia o cinema herda a fotogenia, a aptidão para reproduzir o real; contudo, o caráter material e privado da imagem fotográfica é desmaterializado e coletivizado pela imagem cinematográfica; o dado contingente da fotografia dá lugar à sequência discursiva; para além da modelização do espaço, o jogo de luz e sombra cria uma determinada atmosfera e adquire um poder transubstanciador dos corpos.