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CINEMATIZAÇÃO DO IMAGINÁRIO CONTEMPORÂNEO

CINEMA E IMAGINÁRO

5.7. CINEMATIZAÇÃO DO IMAGINÁRIO CONTEMPORÂNEO

Como vimos até agora, o cinema condensa e transforma diversas características de outras artes, criando uma imagem enquadrada para os nossos olhos, dotada do encanto do duplo, ritmada pelo movimento que nos transporta para outros mundos, banhada pelo som que nos incorpora no ambiente do filme, e capaz de satisfazer a nossa necessidade de narrativas e magia.

À semelhança do imaginário que se estende desde os gestos reflexos até aos mitos, também o filme envolve a totalidade do nosso ser, desde o cinestésico até ao espiritual, dos sentimentos às ideias. O poder de envolvimento do cinema é explicado pela riqueza percetiva da imagem cinematográfica e consequente proximidade com o mundo: é a impressão de realidade e vida da imagem cinematográfica que leva à participação afetiva do espetador (Morin, 2011); porque o cinema é mais percetivo do que as outras artes, mobiliza a perceção segundo um maior número de eixos (Metz, 1980); o facto de cativar e misturar todos os sentidos, explica a poderosa ilusão que o filme realiza (Susanne Langer, 1953); porque tem poderes formais particulares, sintetizando muitas qualidades sensoriais e funcionando essencialmente como estímulo epistemológico primário, o cinema cria uma comunhão básica do sujeito com o mundo, uma proximidade imediata (immediacy), radicada na anterioridade das formas primitivas, formas que atraem e são processadas mais imediatamente do que outras (Joseph KicKasola, 2004). A par da natureza da imagem cinematográfica, o poder de envolvimento do cinema é indissociável do contexto de encontro do espetador com o filme; como salienta o teórico da imagem e do cinema Jean-Louis Schefer (1980), para além das imagens, o cinema produz também as suas próprias condições de existência,

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uma noite experimental artificial e única, cuja natureza abordaremos no capítulo seguinte56.

Se o caldo alquímico do cinema em geral inclui as mais diversas artes, determinadas correntes ou autores privilegiam mais uma ou outra arte, criando diferentes géneros de filmes (por exemplo, enquanto o filme épico explora sobretudo a literatura, o filme estético privilegia a dimensão plástica da pintura) e ainda outras correntes recusam qualquer influência das outras artes (como é o caso do Kinokismo, liderado pelo construtivista russo Dziga Vertov (1896-1954), cuja procura de um “cinema puro”, de um “cinema-verdade” assenta na depuração de qualquer intruso).

Ao mesmo tempo que recriou a herança recebida das outras artes, o cinema também transformou essas artes: a pintura abandonou a preocupação realista, a ideia da representação para se converter em objeto (influência partilhada com a fotografia), e ao mesmo tempo procurando expressar o tempo que passa (impressionismo), o movimento (cubismo, futurismo, etc.); também a fotografia procurou representar o movimento (através do desfocado ou da sobreimpressão) e o tempo que passa (pela série) (Aumont & Marie, 2009); o movimento, a montagem57 e o enquadramento cinematográficos são adotados pela arquitetura: por exemplo, os ecrãs cinematográficos são espelhados nas horizontais aberturas das fachadas arquitetónicas contemporâneas, conduzindo o olhar da dimensão vertical para a horizontal; o cinema criou novas composições musicais para a respetiva banda sonora, e conotou outras de novos e acrescidos significados; ao nível do teatro e da dança é frequente a inclusão de imagens em movimento, permitindo fazer interagir dois níveis de ficção58; ao nível da literatura, o romance italiano do pós-guerra foi influenciado pelo cinema neorrealista, e a conceção do

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Étienne Souriau (1953) alarga o “universo fílmico” a sete níveis: a realidade afílmica (o que existe independentemente de qualquer atividade cinematográfica), a realidade profílmica (a amostra do mundo real implicada no filmológico), a realidade filmográfica (imagem no filme), a realidade filmofânica e realidade ecrãnica (fenómenos relativos à projeção do filme, e o que se situa no ecrã), a realidade diegética (realidade suposta pela significação do filme), os factos espetatoriais (factos subjetivos postos em cena pela personalidade do espetador), e o plano criatorial (uma espécie de plano de transcendência do sujeito de enunciação).

57 A influência da montagem cinematográfica em toda a arte contemporânea é bem assinalada pelo filósofo e crítico Eduardo Paz Barroso (2008).

58 Veja-se a peça A elegante melancolia do crepúsculo, 2013, com dramaturgia e encenação de dois ilustres colegas (Roberto Merino e Luísa Pinto, respetivamente) que insere imagens filmadas do protagonista, permitindo-lhe mover-se entre o ator e a personagem, atravessando a permeável tela de uma dimensão para a outra.

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espaço-tempo das obras da “école du regard” é visivelmente influenciada pela linguagem fílmica (Moscariello, 1985).

Por outro lado, defende Teresa Cruz (2003), a cinemática é a condição moderna da imagem: o caráter crescentemente simulacral da cultura e da tecnologia contemporâneas, enquanto procura de aproximação à essência da vida, passa essencialmente pela cinética da imagem. Ou seja, o cinema, que emergiu a partir de outras artes, desenvolveu-se contaminando essas mesmas artes e a cultura moderna, cinematizando a imagem e o imaginário contemporâneo.

Enquanto medium, defende a teórica da imagem Teresa Flores (2007), o cinema é uma arte colada à modernidade; o cinema é um medium essencialmente moderno porque mantém as condições de não interatividade, distância, imobilidade e duração, que os novos media têm vindo a modificar; a lógica do cinema do século XX reflete a lógica industrial da produção em massa – padronização, linearidade, produto acabado. Com efeito, os novos media e as novas artes, são frequentados por diferentes relações de imagens e diferentes relações com os interlocutores; o retorno da herança recebida do cinema traduz-se quer enquanto forma de auto-reflexão e desconstrução da linguagem cinematográfica (como acontece com a videoarte), quer deixando marcas próprias (como se verifica com o impacto da linguagem televisiva na cinematográfica).

Certamente que não só o médium, com a contínua evolução tecnológica, como a própria imagem cinematográfica, continuarão a perseguir a pedra filosofal, a procurar transmutar as mais diversas imagens em renovadas imagens em movimento, estabelecendo novas interações com as outras artes, e a transformar a consciência pela sabedoria. Com uma curta história, o cinema já (re)viveu, de modo condensado, a longa história de outras artes antecessoras: conheceu progressivas fases históricas, atravessou diferentes regimes de imagem, estabeleceu variáveis relações com o real, criou diversos tipos de relação com o espetador e com a sociedade; é ao aprofundamento destas dimensões que dedicamos o capítulo seguinte.

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Capítulo VI

CINEMA, IMAGINAÇÃO E REAL

Depois da análise das inter-relações entre o cinema e as outras artes, procura-se agora refletir sobre as interações entre o cinema e a imaginação do interlocutor, realizador e espetador, e analisar a dinâmica da imagem cinematográfica na dimensão imaginária do homem e sua relação com o real. Assim, começamos por nos deter na forma como o cinema opera na relação entre o real e o imaginário, para depois nos determos mais longamente nos processos de interação cinema-espetador, na experiência mágica do cinema.