• Nenhum resultado encontrado

UM ENQUADRAMENTO PARA OS NOSSOS OLHOS

CINEMA E IMAGINÁRO

5.1. UM ENQUADRAMENTO PARA OS NOSSOS OLHOS

O cinema germina e surge inserido na lógica da representação visual iniciada na pintura renascentista; nascida sob o signo da sombra, de acordo o mito de Plínio, e presa a um determinado local (murais, frescos), ao longo do quattrocento a pintura liberta-se do espaço, adquire mobilidade, e assume-se como representação do real. Assim, e como vimos no primeiro capítulo, a pintura moderna converte-se num plano (superfície material de inscrição), com um campo (o modo como a representação organiza o plano) e uma moldura (limite do plano de representação); representar é “pôr em quadro”, é realizar um enquadramento.

92

É da mesma forma, assinalam Aumont, Bergala, Marie e Vernet (2008), que se nos apresenta a imagem fílmica: uma superfície bidimensional e delimitada por um quadro, o limite da imagem. A porção do espaço imaginário contido dentro do quadro é designada por campo; normalmente percecionamos o campo como inserido num campo mais vasto, o fora de campo: conjunto de elementos (personagem, fonte sonora, etc.), que não estando incluídos no campo, lhe são ligados pelo espetador, imaginariamente, e pelo próprio filme (através de entradas e saídas de campo, interpelações diretas do fora de campo por uma personagem do campo, etc.).

Mas o espaço representado não se prolonga apenas lateralmente ou na nossa direção; estende-se também em profundidade, ilusão baseada no modelo de perspetiva iniciado no quattrocento – perspetiva artificialis39, monocular ou central: é um tipo de representação estruturado através da convergência das linhas de fuga num ponto geometricamente, e da colocação da linha do horizonte ao nível dos olhos do observador, o resultado de convenções ensaiadas na máquina, nomeadamente na

camera obscura (que cria uma imagem que obedece às leis da perspetiva monocular), e

que germinaram numa cultura determinada; como observa o cineasta e teórico João Mário Grilo (2008), se a perspetiva artificialis domina o modo de representação ocidental do século XV ao século XIX, tal facto traduz o longo advento do olho ao centro da consciência, de Platão a Leonardo Da Vinci, emergindo com este o homem cinematográfico, espécie de Cíclope que rejeita todo o seu corpo e paralisa todos os outros sentidos, para olhar cada vez mais longe. Numa análise histórica da perspetiva, realizada nos anos de 1920, Erwin Panofsky (1996) advoga que a perspetiva na arte desempenha a mesma função que o mito, a linguagem ou a religião – organizar, ao nível da representação, um mundo de objetos, criar uma ordem e um sentido. Por outro lado, a perspetiva central não é alheia à emergência do antropocentrismo humanista; ao copiar a visão do olho humano, ela institui um ponto de vista, correspondente, no quadro, ao olhar do pintor. Para além de uma conceção hierárquica da existência humana e de uma visão cêntrica do mundo, considera Arnheim (1996), tal ponto de vista significa que a imagem é organizada para um olho colocado perante ela, isto é, que a representação supõe um sujeito que a olha e cujo olhar ocupa um lugar

39 A designação de perspetiva artificialis surge por oposição à perspetiva naturalis: enquanto a perspetiva natural, resultado da ótica, se preocupa com a definição de regras para bem olhar as coisas, a perspetiva artificial, produto de uma razão matemática e de uma cultura socialmente determinada, procura estabelecer regras sobre como as coisas devem ser dispostas para serem bem olhadas.

93

privilegiado. Trata-se no entanto de um olhar estático, que o cinema, como, de resto, a própria pintura moderna (o impressionismo, o cubismo, etc.), se encarregará de dinamizar, através da multiplicação dos pontos de vista, como veremos mais à frente.

A par da perspetiva e para além do movimento da câmara (que trataremos mais à frente), a ilusão da profundidade depende da nitidez da imagem, cujo grau define a

profundidade de campo. Presente desde o princípio nos filmes de Lumière ou Griffith,

observa René Gardies (2008), a profundidade de campo desapareceu durante longos anos em consequência da evolução técnica, antes da sua redescoberta nos anos de 1940 por Jean Renoir e Orson Welles, e defendida pelo grande ideólogo do realismo cinematográfico dos anos de 1950, André Bazin, como marca de um cinema que liberta o olhar.

A partir de meados dos anos de 1930 o cinema integra também um elemento longamente explorado pela pintura – a cor. Aliás, observa o crítico de cinema Marcel Martin (2005), com vista a aumentar o realismo, já Méliès, Pathé e Gaumont mandavam colorir manualmente os seus filmes, processo que não sobreviveu devido às despesas envolvidas com o aumento do comprimento dos filmes e do número de cópias; apenas resistiram até ao fim do mudo, as tintagens, ou seja, o tingimento da película com diversas cores uniformes, desempenhando uma função meio realista e meio simbólica: o azul representava a noite, o verde era aplicado às paisagens, e o vermelho utilizado para incêndios, catástrofes e revoluções.

Porém, a verdadeira invenção da cor cinematográfica aconteceu quando os realizadores compreenderam que ela não tinha de ser realista, e que devia ser utilizada sobretudo em função dos valores lumínicos e das implicações psicológicas das diversas tonalidades. Assim, para o crítico de cinema Angelo Moscariello (1985, pp 39-40) a cor no filme deverá cumprir uma função essencialmente psicológica: “Deverá ser, não «bela», mas «significativa». Somente deste modo terá a sua presença uma justificação expressiva e poderá servir para dizer coisas que não poderiam ser ditas sem a sua intervenção”. Criticando ilustres citações pictóricas na história do cinema – como por exemplo, o Elvira Madigan (Bo Widerberg, 1967) inspirado no impressionismo francês, o Barry Lyndon (Stanley Kubrick, 1975) que evoca a pintura inglesa do século XVIII, ou o La montagne sacrée (Alexandre Jorodowsky, 1973) que homenageia a pintura surrealista – porque restringem a autonomia da linguagem fílmica, este autor

94

defende que só quando a cor consegue ser irredutível a qualquer outro código presente é que se poderá falar de função qualificante da cor e de emprego antinaturalista dos recursos cromáticos.

Entre as funções aptas a produzir sentido, destaca como as mais eficazes, a psicológica e a crítica. Na primeira, a escolha cromática corresponde ao ponto de vista psicológico de um dos protagonistas ou à exigência de definição ambiental. Entre outros filmes, destaca o Deserto rosso (Michelangelo Antonioni, 1964), de cores apagadas, envoltas por uma dominante cinzenta que unifica as várias matizes privando- as das gradações mais vivas; trata-se de ilustrar o mundo visto pelos olhos de uma mulher que sofre de neurose e se sente separada da realidade; no Satyricon (Federico Fellini, 1969), as cores carregadas e desprovidas de bom gosto denotam a vulgaridade do mundo representado, sublinhando a existência lúgubre, próxima da desagregação material e espiritual; em Nosferatu (Werner Herzog, 1979 – um remake tributário ao clássico vampiro de F. W. Murnau, Nosferatu, a symphony of horror, 1922) cabe à dominante azul que impregna todas as cores a função de conferir à narrativa o tom de lucidez que acompanha a narrativa do princípio ao fim, sugerindo a presença do mal através de uma espécie de expressionismo cromático inserido na construção figurativa geral. Ao contrário da função psicológica, a intervenção crítica da cor reflete o ponto de vista do autor, a sua análise da realidade representada, desempenhando uma função dissonante no interior da escrita fílmica. Assim, no Dillinger è morto (Marco Ferreri, 1969), as cores cruas e brilhantes, de aspeto metálico, denunciam a invasão multicolor dos objetos a que o homem é sujeito na civilização tecnológica e a consequência ao nível dos sentimentos humanos. Já no Lancelot du lac (Robert Bresson, 1974) as cores frias servem para desmistificar a ideia de uma Idade Média romântica e gerar um efeito de distanciamento do espetador. No La terra vista dalla luna (Pier Paolo Pasolini, 1966, um dos cinco contos do filme Le streghe) as cores fantasiosas conotam a ação de um sentido irrealista e conferem-lhe um tom de alegoria moral, suspensa entre o divertimento e a meditação filosófica.

A utilização parcial da cor, isto é, limitada a algumas partes do filme serve igualmente fins expressivos e também narrativos. É o caso d’ O feiticeiro de Oz (Victor Fleming, 1939) no qual um furacão leva uma personagem de um mundo triste e deprimido (a preto e branco) para uma terra fantástica, já a cores. Em A lista de

95

Schindler (Steven Spielberg, 1993), a cor surge apenas no final, no corpo de uma

criança, expressando a réstea de esperança da tragédia do holocausto. A própria ausência total de cor pode adquirir valor expressivo: no Manhattan (Woody Allen, 1979) a escolha do preto e branco corresponde (em sintonia perfeita com a banda sonora) a uma atitude nostálgica do protagonista relativamente a um mundo dos anos de 1940; também no Frankenstein junior (Mel Brooks, 1974) a ausência de cor representa uma homenagem ao cinema de terror dos anos de 1930, reinterpretado com uma mistura de ironia e nostalgia.

Da pintura o cinema herda também a ideia da composição. Como observam Aumont e Marie (2009), o significado da composição nas artes plásticas – organização da superfície da imagem – foi retomado pelo cinema na época do mudo, através da disposição geral da linhas, direções do movimento, arranjo da luzes e das sombras, harmonia das cores, colocação das personagens e dos objetos, etc..

Em suma, da pintura o cinema herda o enquadramento, multiplicando os pontos de vista, a profundidade, potencializando-a através do movimento da câmara, a cor, reinventando a sua expressividade, e a composição, criando sucessivas organizações dos elementos presentes no quadro.

A procura do realismo por parte da pintura encontra na fotografia a sua expressão mais fiel, ao mesmo tempo que automatiza a sua representação.