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IMAGINÁRIO, IMAGEM E IMAGINAÇÃO

1.3. A REPRESENTAÇÃO DO OBJETO

É através do conceito da “representação” que os modernos se dirigem habitualmente à imagem. Recuperando a platónica inscrição da imagem na sua relação com a palavra, a moderna aproximação à imagem baseada na teoria da representação é feita em total coerência com a teoria da linguagem, sustenta o filósofo Michel Foucault (1998). Na sua análise arqueológica do saber moderno, o autor identifica uma rutura na passagem da renascença para o que designa por idade clássica (séculos XVII e XVIII), traduzindo- se na substituição da “semelhança” pelo “signo”.

Assim, até fins do século XVI, foi a semelhança que orientou a exegese e a interpretação dos textos: organizou o jogo dos símbolos, deu a conhecer as coisas visíveis e invisíveis, e guiou a arte de as representar. Tal similitude, a forma como as coisas seriam suscetíveis de se assemelhar umas às outras, era pensada em torno de quatro figuras principais:

1) conveniência: é uma semelhança ligada ao espaço, à vizinhança dos lugares; são convenientes as coisas que, ao aproximar-se umas das outras, se tocam e comunicam entre si (o animal comunica com a planta, a terra com o mar, o homem com tudo o que o rodeia);

2) emulação: é uma espécie de conveniência liberta da lei do lugar, como se agisse, imóvel, à distância, segundo uma semelhança sem contacto; como acontece com o reflexo e o espelho, as coisas dispersas no mundo relacionam-se umas com as outras;

3) analogia: é lugar de sobreposição da conveniência e da emulação, mas com um poder maior, porque as similitudes já não assentam nas semelhanças visíveis e maciças das coisas, mas em relações mais subtis; face à polivalência, à

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reversibilidade que cria entre as coisas, a analogia tem um campo universal de aplicação, podendo aproximar todas as figuras do mundo;

4) simpatia: opera livremente nas profundidades do mundo, possuindo o perigoso poder de assimilar, tornar as coisas idênticas umas às outras, fazendo-as perder a sua individualidade, o que levaria, no limite, à redução do mundo a uma massa homogénea; para evitar tal, a simpatia é compensada pela sua figura gémea, a antipatia, que mantém as coisas no seu isolamento e impede a assimilação.

Fazendo parte da grande distribuição das similitudes, a linguagem constitui-se como lugar das revelações (substituindo a platónica ideia da contemplação), no qual o valor de signo e a função de redobro se sobrepõem. O entrelaçamento da linguagem e das coisas num espaço que lhes seria comum, supõe o privilégio absoluto da escrita. A primazia da escrita traduz a coexistência de duas formas indissociáveis no saber do século XVI: a não distinção entre o que se vê e o que se lê, entre o observado e o relatado, entre o visível e o dizível.

No século XVII, continua Foucault (1998), o pensamento deixa de se mover no terreno da semelhança para se instalar numa análise feita em termos de identidade e diferença. Com o racionalismo cartesiano, as velhas crenças supersticiosas ou mágicas dão lugar à entrada da natureza na ordem científica; a linguagem retira-se do meio dos seres e entra na sua era de transparência e neutralidade. Os vários domínios do saber constituem-se tendo como fundo uma ciência geral da ordem (mathesis), cujo centro é o quadro, e o sistema dos signos o seu instrumento. Contrariamente ao sistema de signos reinante desde o estoicismo – que era ternário (significante, significado e conjuntura) – o novo sistema adota uma disposição binária. A Lógica de Port-Royal6 liga o significante exclusivamente ao significado, e define o signo segundo três variantes: origem da ligação (natural ou convencional), tipo de ligação (pertença ou separação), e certeza da ligação (certa ou provável). Nenhuma destas três formas de ligação implica necessariamente a similitude; a relação do significante com o significado abandona o

6 A Lógica de Port-Royal é o nome popular da La logique, ou l'art de penser, um importante manual sobre lógica publicado anonimamente em 1662 por Antoine Arnauld e Pierre Nicole, dois proeminentes membros do movimento Jansenista, centralizado em Port-Royal. Tal manual tornou-se muito popular por introduzir o leitor à lógica e exibir fortes elementos cartesianos na sua metafísica e epistemologia, exercendo uma grande influência até ao século XX.

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espaço em que uma figura intermediária assegura o seu encontro e aloja-se no interior do conhecimento, o lugar entre a ideia de uma coisa e a ideia de uma outra.

Ao mesmo tempo que descarta a semelhança, a nova ordem lança fora com ela a imaginação. A imaginação situa-se do lado da semelhança, só se exerce apoiando-se nela, e a semelhança só aparece pela virtude da imaginação; lugar do erro situado nos confins do saber, é onde passam a habitar a imaginação e a semelhança, as repetições incertas e as analogias nebulosas. Como observa Durand (2007), a impugnação cartesiana das causas finais e a consequente redução do ser a um conjunto de relações objetivas, eliminam do significante tudo o que era sentido figurado, e a imaginação é violentamente anatemizada: Brunschvicg considera-a um pecado contra o espírito, Alain a infância confusa da consciência, Malebranche a “louca da casa”. Estamos perante o terceiro fator do movimento iconoclasta, a última fase da desmitologização do pensamento ocidental. A vitória do signo sobre o símbolo e a recusa da imaginação não puderam deixar de repercutir-se na arte: depois das ambiciosas alegorias do Renascimento, a arte dos séculos XVII e XVIII – maneirismo, barroco e rococó – converte-se em simples diversão, num mero ornamento; a imagem artística já não procura evocar, e o seu papel cultural, tal como o do artista, é minimizado ao extremo.

Partindo da Lógica de Port-Royal e da noção de “quadro”, o historiador e filósofo pós-estruturalista Louis Marin (2001) analisa a problemática da representação ao nível da pintura. Começa por recordar que, de acordo com os dicionários, no século XVII, “representar” significa “substituir algo ausente por algo presente”, significado que vale também para o signo; atualmente significa também “exibir”, “mostrar algo presente”, ou seja, apresentar, operação simultaneamente mimética (autoriza o presente a representar o ausente) e performativa (constrói a identidade do representado e a sua propriedade, assegurando deste modo a sua legitimidade).

Portanto, “representar significa apresentar algo, representando um outro” (Marin, 2001, p. 352). Toda a representação, todo o processo de significação envolve duas dimensões: uma reflexiva, a apresentação de algo, e outra transitiva, a representação de um ausente; se a transitividade substitui uma coisa ausente por uma coisa presente que está em relação com ela, a reflexividade mostra que a representação é representação; enquanto a primeira mantém a vinculação da imagem ao ente inerente ao regime do

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opacidade e da transparência do signo representacional, propostas pelas abordagens da

semântica e da pragmática contemporâneas; a transitividade cria transparência, a reflexividade produz opacidade. Assim, o que está em causa na representação é o difícil e complexo equilíbrio entre a transparência e a opacidade, é evitar que representação e presença se confundam, é manter a imagem afastada do simulacro.

A tensão entre a opacidade e a transparência é também para o filósofo Jacques Rancière (2011, p. 21) o epicentro do regime representativo das artes. Ao contrário do que acontece com a imagem baseada na relação simples que apenas produz a semelhança do original, o jogo de operações que produz arte “é antes o regime de uma certa alteração de semelhança, isto é, de um certo sistema de relações entre o dizível e o visível, entre o visível e o invisível”. Não sendo a imagem uma exclusividade do visível (há visibilidade que não cria imagens, e imagens todas elas compostas por palavras), o regime mais corrente de imagem relaciona o visível e o dizível, investindo simultaneamente na analogia e na dissemelhança. Mais do que produzir semelhanças, a representação artística submete-as a um triplo constrangimento ou três formas de regulação:

1) regulação do visível através da palavra: a palavra faz ver, revela o escondido, convoca o ausente, põe debaixo dos olhos o que está distante no espaço e no tempo; contudo, este fazer ver não nos deixa ver as formas que evoca e finge mostrar, funciona pela sua própria contenção; trata-se da dependência do visível em relação à palavra, de um modo de visibilidade da palavra que organiza ao mesmo tempo uma certa retenção da palavra;

2) regulação das relações entre saber e não saber: a representação é um espraiar ordenado das significações, uma relação regulada entre aquilo que compreendemos ou antecipamos, e aquilo que acontece de surpresa, de acordo com a lógica da revelação progressiva e contrariada, analisada na Poética de Aristóteles;

3) regulação da realidade: por um lado, os seres da representação são fictícios, subtraídos a qualquer forma de existência mas, por outro lado, estes seres fictícios não deixam de ser seres de semelhança, cujos sentimentos e ações devem ser partilhados e apreciados; é uma regulação de racionalidade própria da

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ficção, que separa a razão das ficções da razão dos factos empíricos, que em vez de submeter os atos de palavra aos critérios de autenticidade e utilidade normais das palavras e das imagens, os sujeita apenas a critérios intrínsecos de verosimilhança e de conveniência.

Esta tripla regulação podemos identifica-la nas artes representativas em geral, nomeadamente ao nível do cinema. Contudo, para Rancière (2001, p. 156) a “representação tem como lugar de eleição o teatro, o espaço de manifestação inteiramente votado à presença, mas mantido, por essa mesma presença, numa dupla retenção: a retenção do visível pelo dizível, e a retenção das significações e dos afetos pelo poder da ação – uma ação cuja realidade é idêntica à realidade”.

Ao nível da pintura, propõe Marin (2001), o efeito de opacidade está estreitamente relacionado com o “pôr em quadro”7; os principais mecanismos de que qualquer representação dispõe para se apresentar a si mesma, e que acentuam a reflexividade em detrimento da transitividade, são três:

1) fundo ou plano: é o suporte material da inscrição e da figuração, que permite a qualquer coisa ser trazida à vista; a par da sua relação com outras figuras, a superfície relaciona-se também com o referente; enquanto a profundidade ilusória criada pela perspetiva, que nos conduz para o infinito, nega a presença do suporte, a eliminação da profundidade fá-lo emergir como parede, como área limitada, e a pintura apresenta-se como pintura, e não como representando algo;

2) campo: é tudo o que vai cobrir o fundo, a quarta parede frontal do cubo cenográfico; devido à sua transparência muitas vezes o campo não é notado pelo espetador, a menos que o pintor o faça emergir através de um detalhe excessivo; cria a neutralidade dos corpos que falam, como se, à maneira de Diderot, imaginássemos as figuras fechadas, no palco, comportando-se como se não fossem observadas, e jamais rompêssemos a barreira invisível para as distrair;8

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Importa recordar que durante a Renascença a pintura se liberta do lugar; o espaço pictórico emancipa-se das paredes, e os retábulos dão lugar aos quadros.

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A composição do campo é analisada pela perspetiva formalista de Arnheim (1996) em termos do “equilíbrio”, o qual se aplica às composições nas quais todos os fatores se determinam mutuamente, em que o todo assume o caráter de necessidade de todas as partes. Entre outros, o equilíbrio é determinado por dois fatores principais: o peso dos elementos (influenciado pela sua localização, profundidade espacial, tamanho, luz, cor, isolamento, configuração, densidade, direção e interesse intrínseco) e a

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3) enquadramento: é a fronteira, o limite que separa a imagem do seu exterior; o seu significado em diferentes línguas reflete as várias dimensões da noção: é a moldura (do francês “cadre”, termo que deriva do quadrado); enquanto “cornice” (termo arquitetónico adotado pelo italiano; a cornija e as entalhaduras de friso na arquitetura clássica) é proteção, ornamento, opulência e projeção; como “frame” (do inglês), é um elemento estrutural da construção da pintura, pois ao separar o mundo da representação do mundo real, o quadro torna-se objeto de contemplação.9

Na sua dimensão reflexiva, a representação apresenta-se a alguém. Como escreve Marin (2001, p. 357), a “apresentação representativa é apanhada na estrutura dialógica do emissor e recetor, quem quer que eles sejam, a quem o enquadramento fornecerá um dos lugares privilegiados para ‘produzir conhecimento’, ‘induzir crenças’, ‘produzir sentido’, como um lugar de instruções e injunções que o poder da representação, e na representação, dirige ao leitor-vidente”.

A consciência da ideia da representação no século XVII é bem expressa na pintura, através da recorrente representação do pintor a representar e da presença do quadro dentro do quadro. A obra mais paradigmática desta nova consciência é provavelmente o quadro As meninas (1656) do espanhol Diego Velázquez. Com efeito, nela vemos um pintor a pintar um grande quadro, voltado de costas para nós e, para além de outras personagens, vemos vários quadros a forrar todas as paredes do interior, todos eles obscuros, com exceção de um, cujo halo de luz faz dele uma superfície refletora dotada de visibilidade. Trata-se, nas leituras de Foucault (1998) e de Marin (2001), do confronto entre a opacidade e a transparência, entre a pintura e o reflexo, entre a ordem da representação e a ordem do duplo. A opacidade, a invisibilidade é acentuada pelo olhar do pintor, enquanto objetivador do objeto da representação; o ponto invisível que o pintor fixa não está dentro do quadro, o seu olhar dirige-se para nós espetadores que o olhamos, num jogo de incessante permuta entre contemplador e contemplado, obrigando-nos a entrar no quadro. Mas sabemos que o espelho, pela posição que ocupa,

direção das forças percetivas (criadas através da atração entre elementos, da configuração dos objetos, das linhas visuais, do movimento e da palavra).

9 É nestes mecanismos da representação que radica a origem do dispositivo da imagem fílmica, como veremos na segunda parte.

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reflete o objeto representado na tela que Velázquez pinta, o rei Filipe IV e a sua esposa Mariana.

Portanto, estamos simultaneamente perante a representação da representação clássica – um pintor a representar um dos objetos preponderantes na época, a realeza – e a arte moderna, um pintor a representar-se a si mesmo, a autorepresentar-se, e a representar o espetador; trata-se, podemos pensar, da premonição da rutura entre o saber clássico e o moderno, a passagem da representação do objeto à autorepresentação; é sobre este novo regime da representação que nos debruçamos no capítulo seguinte.

A concluir este importa realçar duas ideias principais. Em primeiro lugar, a representação expressa o desejo de salvaguardar a imagem relativamente ao simulacro e de a conter dentro da clássica tradição do eikon, conferindo-lhe, contudo, uma maior liberdade; a imagem constitui-se como um signo cuja relação com o referente deixa de ser assegurada pela ordem das próprias coisas, para se alojar no interior do conhecimento, a explicação já não se situa no sagrado nem no ontológico, mas antes na cultura, perdendo o simbolismo evocador. Trata-se de uma relação entre a transparência e a opacidade, uma relação paradoxal, ambivalente, envolvendo simultaneamente a ligação com o referente e a separação do mesmo. Em segundo lugar, a clássica relação que a imagem estabelece entre o visível e o invisível (quer divino, quer metafísico) é deslocada para a relação, por um lado, entre o visível e o dizível (apresentando-se este como regulador daquele) e, por outro, entre o visível e o real, o que se traduz na colagem do visível ao olhar, devidamente enquadrado, e na consequente procura do realismo; a par do realismo obtido pelo tratamento da luz, a qual deixa de se apresentar como um atributo dos objetos para se tornar um efeito da iluminação, conforme analisamos num ensaio anterior (Muga, 2008), a perspetiva cria um local de receção, o que implica a substituição do valor de culto da imagem pelo valor de exposição e de consumo, transformando o mundo em espetáculo.

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Capítulo II

AUTOREPRESENTAÇÃO: ENTRE O CONSCIENTE E O INCONSCIENTE

O regime da autorepresentação traduz, por um lado, a eleição do homem como objeto de estudo e, por outro, o retorno da imaginação simbólica. Citando Foucault (1998, pp 54-55), a partir do século XIX “a teoria da representação desaparece como fundamento geral de todas as ordens possíveis; a linguagem como quadro espontâneo e «quadriculado» primeiro das coisas, como intermediário indispensável entre a representação e os seres, desvanece-se por seu turno; (…) À medida, porém, que as coisas se enrolam sobre si, pedindo só ao seu devir o princípio da sua inteligibilidade e abandonando o espaço da representação, o homem, por seu turno entra, e pela primeira vez, no campo do saber ocidental.” Estamos perante a emergência da individualidade, consequência e exigência dos dispositivos e técnicas disciplinares ao serviço das políticas do biopoder (a anatomopolítica, a política da manipulação dos corpos, e a

biopolítica, a medição e ordenamento de populações), o poder que deixa de condenar à

morte, para fazer viver e gerir a vida (Foucault, 1994, 1999).

Esta caminhada em direção ao indivíduo estrutura-se em torno da relação entre o sensível e a imaginação, entre o exterior e o interior, ou entre os dados imediatos da consciência e os dados imediatos do inconsciente. A dialética entre estes polos, segundo Durand (1993), constitui uma ambiguidade nas ciências do homem, um paradoxo sociocultural no qual o progresso das luzes revolucionárias e das consolidações positivistas convive com o desenvolvimento e a amplificação do intimismo romântico.

Depois de uma breve abordagem da consciência do exterior, mergulharemos com mais tempo nas profundezas do inconsciente, tanto na perspetiva da ciência como na da estética.

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