• Nenhum resultado encontrado

CINEMA E IMAGINÁRO

6.4. PROJEÇÃO E IDENTIFICAÇÃO

A passagem do plano corporal ao plano afetivo e dos dados imediatos da consciência aos dados imediatos do inconsciente, é operada pelas abordagens inspiradas na psicanálise freudiana e lacaniana, que ancoram o discurso nos processos da identificação-projeção. Trata-se de dois processos interligados mas opostos: enquanto

65 Tal programação não é alheia à dimensão industrial do cinema, a qual recorre a estratégias como a

sneak preview, que consiste na projeção prévia do filme a fim de recolher a opinião do público com vista

140

na projeção expulsamos de nós e localizamos no outro, pessoa ou coisa, qualidades, sentimentos e desejos que recusamos ou desconhecemos em nós próprios, pelo contrário, através da identificação assimilamos um aspeto, um atributo do outro, transformando-nos segundo o modelo dessa pessoa (Laplanche & Pontalis, 1970).

Estes processos, considera Morin (2011), traduzem a participação afetiva do espetador e dão corpo à magia do cinema, ou seja, ao antropomorfismo e ao cosmomorfismo, ao desdobramento e à transformação. Assim, a projeção automórfica (atribuição a uma pessoa dos mesmos traços de caráter pessoais) dá lugar ao antropomorfismo: projeção noutros seres vivos e coisas materiais traços humanos; através do grande plano os objetos inanimados são animados, adquirem a dimensão mágica da alma. Numa terceira etapa, a projeção passa à alienação: projeção do nosso próprio ser numa visão alucinatória na qual aparece o nosso espetro corporal. A identificação com o mundo pode estender-se ao cosmomorfismo: tendência a dotar o homem de presença cósmica; é através do rosto que o cinema utiliza mais frequentemente as representações cosmomórficas, enquanto espelho quer do universo que o rodeia, quer da ação que se desenrola fora de campo. A dinâmica do filme suscita o intercâmbio entre os homens e as coisas, os rostos e os objetos; na tela, o rosto converte-se em paisagem e a paisagem em rosto, ou seja, em alma.

Esta abordagem antropológica da identificação-projeção dá lugar nos anos de 1960 e 70 à perspetiva semiológico-lacaniana, mais centrada na identificação, e desenvolvida essencialmente por Metz. Colocando as paixões percetivas, o desejo de ver (a pulsão escópica, o voyeurismo) e o desejo de ouvir (a pulsão invocante), como o fundamento do exercício do cinema, Metz (1980) assenta a relação espetador-ecrã numa

identificação especular. O espetador pode identificar-se com múltiplos objetos; pode

identificar-se com uma personagem, mas nem sempre a figura humana está presente no filme ou em todas as sequências, argumenta o autor. Por outro lado, este tipo de identificação não nos diz nada acerca do lugar do eu espetatorial; ausente da tela, em nada fazendo parte do percebido, o espetador é um sujeito omnipercecionante, porque dotado da capacidade da ubiquidade, e porque está do lado da instância percetiva; é um segundo ecrã onde vai depor-se o material percebido-imaginário e no qual esse imaginário realmente percebido acede ao simbólico, instaurando-se como significante do cinema. Assim, o espetador identifica-se consigo mesmo como puro ato de

141

perceção; ao identificar-se consigo mesmo como olhar, o espetador identifica-se também com a câmara, que antes dele olhou aquilo que ele agora olha; o olho imaginário do espetador coincide com o olho real da câmara, fazendo com que o espetador tenha a impressão de que é o seu olhar que modifica a imagem quando há variações dos ângulos de filmagem, e obrigando o espetador a ocupar um determinado lugar na ação.

Esta identificação primária (com a câmara no momento da filmagem) permite e condiciona a identificação secundária, a identificação à personagem, como figura do semelhante e como foyer dos investimentos afetivos do espetador. Fruto da diminuição da vigilância, o espetador pode simpatizar, por identificação, com qualquer personagem; por outro lado, a identificação à personagem não é nunca massiva e monolítica, mas, pelo contrário, extremamente fluida, ambivalente e permutável ao longo do filme: por exemplo, numa cena de agressão, o espetador pode identificar-se simultaneamente ao agressor, com um prazer sádico, e ao agredido, com angústia; numa cena em que se exprime um pedido afetivo, ele pode identificar-se simultaneamente àquele que pede, através de um sentimento de falta, e ao que recebe o pedido, com prazer narcísico; mesmo em situações estereotipadas, encontramos esta mutabilidade fundamental da identificação, esta ambivalência de posturas, esta reversibilidade de afetos, que fazem do prazer do cinema um prazer melado, frequentemente ambíguo e confuso. O jogo identificatório simultâneo constitui para Metz uma condição indispensável à compreensão do filme: assim, ao nível da identificação secundária, o espetador deve julgar ser a personagem, a fim de que esta beneficie, por projeção analógica, de todos os esquemas de inteligibilidade que ele traz dentro de si; mas também deve julgar não ser ela, de modo a que a ficção se possa estabelecer como tal.

O poder omnipercecionante atribuído por Metz ao espetador, equivalente ao do vigilante panótico foucauldiano, é questionado por Žižek, a partir do final da década de 1980, apresentando uma nova perspetiva sobre o olhar no cinema (baseado no gaze lacaniano) e sua relação com o desejo. Žižek, como sintetiza Todd McGowan (2007), defende que os espetadores vão ao cinema porque gostam de o fazer, criticando as teorias anteriores porque nenhuma delas considera o fenómeno do prazer como central no cinema ou, quando muito, apenas como mero produto secundário de um outro apelo:

142

os espetadores gostam do cinema porque espelha o seu funcionamento mental (Münsterberg), porque os transforma (Eisenstein), porque lhes apresenta a realidade (Bazin), ou porque lhes dá um ponto de identificação (teorias psicanalíticas dos anos de 1970 e 80). Nestas últimas questiona igualmente a abordagem voyeurista do olhar no cinema, um olhar que pode ver sem ser visto e, portanto, representando o poder máximo; na análise que faz a partir de uma cena do Psycho (Alfred Hitchcock, 1960), identifica o olhar com o aumento do desejo do espetador e consequente perda de domínio. Como o próprio afirma “o cinema é a arte de despertar um desejo para depois brincar com ele, a arte de organizar os nossos desejos” (Žižek, 2006)66

.

“Para além do princípio do prazer”67, situa-se a pulsão de morte, o medo e o horror. A par da herança do teatro, enquanto jogo que o homem faz com a perda e o medo das ameaças do mundo (Michael Goldmann, 1981), o cinema não só potencia o medo que certas imagens sempre provocaram, como acrescenta o medo do invisível que o fora de campo cria, e o sofrimento que a “visão bloqueada” inflige (enquanto na televisão podemos mudar de canal ou baixar o som, no cinema somos como que obrigados a manter os olhos fixos no ecrã) (Bonitzer, 1982). Schefer (1979) compara a sala de cinema a um matadouro: vamos ao cinema para experienciar simulações mais ou menos terríveis e não para sonhar. Numa perspetiva mais moderada, e sublinhando o caráter fictício do medo, Teresa Flores (2007) considera que os filmes processam o terror (o perigo generalizado) em medos localizáveis; o cinema funciona como o bang-

jumping, a experiência da queda sem cair realmente. Em todo o caso, estaremos perante

uma outra forma de satisfação do desejo, uma outra forma de prazer, como o prazer da purificação da alma inerente à catarse aristotélica (uma outra forma de processar o terror), com a qual iniciamos o ponto seguinte.

A concluir este, e em síntese, as abordagens inspiradas na psicanálise espelham a imagem de um homem regido pela lei do desejo inconsciente (uma máquina

energética), um espetador em estado pré-hipnóide, e palco dos jogos de identificação-

projeção, desdobramento-transformação, de ambivalências e conflitos entre o real e o imaginário, entre o eu e o seu duplo, entre o ser e o não ser.

66 Guia pervertido do cinema (documentário dirigido por Sophie Fiennes e narrado por Žižek, 2006).

67

Cita-se o título de uma das obras mais importantes de Freud, de 1920, na qual o pai da psicanálise introduz, depois da pulsão de vida (eros), a pulsão de morte (thanatos) no funcionamento do inconsciente.

143