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CINEMA E IMAGINÁRO

6.1. O REAL IMAGINADO

Se a génese do cinema se situa, como refere Morin (2011), na fusão do cinematógrafo

de Lumière com a feitiçaria de Méliès, do realismo com o fantástico, a dialética entre os dois pólos subjaz tanto ao desenvolvimento do cinema – como disse o cineasta Andrei Tarkovsky, há cineastas que imitam o mundo (são os naturalistas, os ilusionistas) e aqueles que criam o seu próprio mundo (são os criacionistas, os poéticos) – como à reflexão teórica sobre o mesmo. Por outro lado, as noções de documental e ficção, realismo e irrealismo, realidade e imaginário, conhecem uma significativa evolução semântica, culminando com a sua fusão e inversão, a realidade tornando-se ficção e a ficção realidade.

A par do estatuto artístico do cinema (da relação entre o cinema e as outras artes), é em torno do seu estatuto ontológico (da sua relação com o real) que nasce, nos anos de 1910-20, a teoria do cinema, essencialmente no seio da escola francesa. Assim, como sintetiza Mário Grilo (2008), o criador da ideia da crítica do cinema – Louis Delluc (1890-1924) – elogia a aptidão do cinema para reproduzir o real, a concordância entre a matéria e a imagem (fotogenia). Herdeiro do pensamento dos primeiros teóricos (entre os quais se destacam também Ricciotto Canudo e Germaine Dulac), Jean Epstein (1897-1953) desloca o real para o surreal: o olho do cinema é um “olho surreal” porque é um olho objetivo, capaz de revelar a intimidade mais secreta dos seres e das coisas,

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através de imagens e sons profundamente concretos; o cinema não é um sistema de representação do mundo, mas o mundo (a experiência que temos dele) é que funciona como um sistema de representação do cinema; é a natureza complexa, incerta e maleável do mundo, do real, que a visão do cinema figura; a impossibilidade do real como coisa verdadeira, funda a possibilidade do cinema como verdade relativa. A par da linguagem impressionista (assente na representação de sentimentos através da mobilidade da câmara, com ângulos subjetivos e sobreimpressões), marcada por filmes como A décima sinfonia, Abel Gance (1918), o Albergue vermelho, Jean Epstein (1923) e O falecido Mathias Pascal, Marcel L’Herbier (1926), o cinema deste período expressa a ideologia psicanalítico-surrealista, o sonho de que o mundo dos sonhos e da loucura seria um dia considerado mais real do que o próprio real, nomeadamente a obra do espanhol Luis Buñuel, autor de uma das curtas mais famosas da história do cinema –

Um cão andaluz (1928) – com argumento de Salvador Dali.

Em contraste com as tendências impressionistas, prossegue Mário Grilo (2008), desenvolve-se, na Alemanha dos anos de 1920-30, o cinema da expressão. Na expressão de Lotte Eisner, seu principal teorizador, “o expressionismo não vê, tem visões”; trata-se de libertar as coisas das simples cadeias de factos a que estão acidentalmente ligadas, e reconstruir-lhes a sua identidade eterna. A abstração expressa-se, por exemplo, na estranha inquietude do labirinto emocional dos protagonistas n’ O gabinete do Dr. Caligari (Robert Wiene, 1918), na comunhão do ser incorpóreo com o cosmos, uma construção imagética da metafísica, em Nosferatu (F. W. Murnau, 1922), ou na “nova objetividade” (a mistura da pequena intriga com uma forma dotada de grande significância) de Fritz Lang.

No mesmo período, aparece a escola soviética – com Sergei Eisenstein, Lev Kuleshov, Vsevolod Pudovkin, Dziga Vertov – alimentada pelo desejo de elevar o cinema da ordem da representação para uma ordem da significação e do discurso; deslocando a especificidade do cinema da fotogenia e da mobilidade para a montagem e para os seus efeitos no espetador, o pensamento soviético entende que em vez de reproduzir uma realidade fotográfica, o filme cria a sua própria realidade, enuncia mais do que mostra.

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Sucedendo ao cinema experimental dos anos de 1920 franceses, surge na década seguinte, igualmente em França, o “realismo poético”, com o objetivo de ser fiel ao real de forma lírica. Como refere Journot (2005), trata-se de um cinema caracterizado por um grande cuidado na imagem e por uma poetização que des-realiza de forma paradoxal situações sórdidas de histórias com personagens dominadas pelo seu destino, tratadas geralmente com uma preocupação documental. Filmes marcantes do realismo poético são Atalante (Jean Vigo, 1934), La rue sans nom (Pierre Chenal, 1938) e Cais

das brumas (Marcel Carné, 1938).

O realismo poético francês é mais tarde ofuscado pelo neorrealismo italiano emergente do pós-guerra, com Cesare Zavatini e Robert Rossellini como seus principais mentores. Em oposição ao cinema clássico de Hollywood, observa Ismael Xavier (1977), o neorrealismo relega a montagem para segundo plano, considerando-a manipuladora, e critica a découpage clássica por criar um mundo imaginário que aliena o espetador da realidade; enquanto a planificação põe o falso a parecer verdadeiro, o neorrealismo procura que a imagem não só pareça como seja real. Para além da revolução semiótica, o neorrealismo traz para o cinema novos temas e um olhar não- idealista sobre a realidade moral e económica duma Itália corrompida pelo fascismo e pela guerra: é o caso de Roma, cidade aberta e Alemanha, ano zero (Robert Rossellini, 1945 e 1948), Ladrões de bicicletas (Vittorio De Sica, 1948) ou A Terra treme (Luchino Vinsconti, 1948). A partir do final década de 1940, observa Journot (2005), os realizadores orientam-se para um cinema mais pessoal, para um “realismo crítico”. O autor do conceito, o filósofo húngaro Gyorgy Lukacs, entende que mais do que pela renovação das formas, é através das construções narrativas do passado, investidas de um novo conteúdo, que a realidade social pode ser globalmente apreendida; por exemplo, em Sensibilidade (1954), Visconti adapta um romance do século XIX para questionar a história pretérita e contemporânea de Itália.

O novo pensamento sobre o cinema é refletido, na década de 1950, pela Nouvelle

Vague francesa e, depois, pelas suas réplicas noutros países, como é o caso do Cinema Novo português. O principal mentor da Nouvelle Vague, Bazin (1992), considera que a

fotogenia da imagem e a realidade do som permitem ao cinema tocar a realidade: o objeto não é representado mas reapresentado, tornado presente no tempo e no espaço. Defendendo o respeito pela integralidade fenomenológica dos factos (transparência)

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propõe que a montagem dê lugar, como acontece nos filmes de Orson Welles e Jean Renoir, ao plano-sequência (que regista fielmente a duração real das coisas), à profundidade de campo (que liberta o olhar do espetador) e à unidade do espaço cénico (o garante da verdade na relação da câmara com os atores e com o real).

Numa abordagem semiológico-bergsoniana da imagem cinematográfica, nos anos de 1980, Deleuze (2006) observa uma profunda mudança na relação entre o real e o imaginário, ao nível do cinema moderno, o cinema pós-guerra, relativamente ao cinema clássico, nomeadamente o cinema clássico de Hollywood: assim, o cinema clássico, caracterizado por um regime orgânico/cinético, inclui o real e o imaginário, mas por oposição, enquanto no cinema moderno, inscrito no regime cristalino/crónico, o real e o imaginário trocam de papel e tornam-se indiscerníveis; se o primeiro explora situações sensoriomotoras, encadeadas numa lógica do tipo ação-reação (imagem-

movimento), o segundo cria situações óticas e sonoras puras, que não se transformam

jamais em ações, ficando o movimento subordinado ao tempo (imagem-tempo); em vez de se prolongar em movimento a imagem ótica e sonora pura, uma imagem atual, encadeia-se com uma imagem virtual e forma com ela um circuito59. Especialmente apto a desempenhar o papel de imagem virtual, a criar um circuito de indiscernibilidade com a imagem atual, é o sonho e, sobretudo o devaneio, a fantasmagoria e a dança; mais do que o flashback (imagem-lembrança), são as perturbações da memória e os fracassos do reconhecimento que criam grandes circuitos entre as toalhas do passado e as pontas do presente. Elegendo Yasugiro Ozu como o pioneiro do cinema-cristal, Deleuze destaca a capacidade de Carl Theodor Dreyer ou Krzysztof Zanussi para aplicar o princípio de indiscernibilidade, por exemplo, ao alimentar um diálogo com um conteúdo científico ou metafísico, e simultaneamente determinado pelo quotidiano e pelo trivial.

59 A abordagem deleuziana é criticada pelo filósofo Jacques Rancière (2001): por um lado, questiona o corte epistemológico com o espetador, como se a imagem existisse por si, como se não fosse constituída pelo olhar e pela imaginação; por outro lado, considera que a imagem-movimento e a imagem-tempo, mais do que duas eras do cinema (aliás a imagem-tempo é semelhante à imagem-afeção, uma das categorias da imagem-movimento), são dois pontos de vista sobre a imagem, o dos acontecimentos da matéria-imagem e o das formas do pensamento.

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Na sua face ideológica, tal mudança de regime da imagem cinematográfica espelha a crise do esquema explicativo60 do mundo anterior à segunda guerra mundial, a rutura da unidade do homem e do mundo, uma rutura que já não nos deixa senão uma crença neste mundo; por outro lado, na linha do «cinema direto» de John Cassavetes e de Shirley Clarke, do «cinema da vivência» de Pierre Perrault e do «cinema-verdade» de Jean Rouch, Deleuze defende que o que o cinema tem de apreender não é a identidade de uma personagem, mas antes o devir da personagem real quando ela se põe a ficcionar; o que se opõe à ficção não é o real, não é a verdade dos mestres ou dos colonizadores, mas sim a função fabuladora dos pobres.

Baseado numa leitura de Lacan cruzada com a dialética hegeliana, o filósofo e psicanalista Slavoy Žižek (2008) inverte a relação real-imaginário, defendendo que a ficção é mais real do que a própria realidade. Para elaborar a teoria, o autor baseia-se na obra do cineasta polaco Krzysztof Kieslowski, mais precisamente na sua passagem do documentário para a ficção, que o próprio justifica com razões éticas (pela consciência da obscenidade que é mostrar diretamente experiências íntimas da «vida real», «o pavor das lágrimas reais»). Porém, Žižek (2008, pp 11-12) questiona se o uso de uma máscara (a ficção) é uma forma de respeito de Kieslowski por aquilo que deve permanecer escondido, ou se “ele está perfeitamente consciente da dialética de «usar uma máscara»: a nossa identidade social, a pessoa que assumimos ser nas nossas trocas intersubjetivas, é já «uma máscara», envolve já o recalcamento dos nossos impulsos inadmissíveis, e é precisamente nas situações em que se trata «apenas de um jogo», em que as regras pelas quais se pautam as nossas trocas na «vida real» se encontram temporariamente suspensas, que nos podemos permitir exibir estas atitudes recalcadas.” Da tensão dialética entre realidade documental e ficção em Kieslowski, Žižek (2008, p. 15) retira a seguinte lição: “se a nossa realidade social se apoiar numa ficção ou fantasia simbólicas, a consumação última da arte cinematográfica não é recriar a realidade dentro da ficção narrativa, seduzir-nos a tomar (erradamente) a ficção pela realidade, mas, pelo contrário, fazer-nos reconhecer o aspeto ficcional da própria realidade, sentir a realidade como uma ficção. (…) Se os documentários constituem uma intrusão na realidade pessoal dos protagonistas e ferem esta realidade, a ficção faz

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Em vez da causalidade, estaremos perante a abertura à sincronicidade; não será por acaso que a primeira grande obra do regime cristalino é do japonês Ozu, cuja cultura se baseia mais na sincronicidade do que na ocidental cultura mecânica da causalidade.

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o mesmo com os próprios sonhos, fantasias secretas que formam o cerne inconfessado das nossas vidas.”

A ideologia da transparência – a crença, fundada na suposta neutralidade da objetiva da câmara, de que as imagens cinematográficas oferecem duplos fiéis e naturais da realidade – é desconstruída sobretudo nos anos de 1970. Mas já na década anterior, e com influência da teoria lacaniana do imaginário, começa a ser questionada. Assim, o cineasta e crítico de cinema Jean Mitry (1963-65), pressupõe uma ponte que liga o real ao imaginário, e propõe um cinema a meio caminho entre o realismo revelatório de Bazin e o cinema-discurso do semiólogo: no cinema o real organiza-se em discurso, e nessa organização algo se acrescenta (uma intencionalidade) e algo se perde (o real não mediado). Contudo, admite a clivagem entre dois tipos de cinema: o cinema realista, fiel à imanência, e o cinema irrealista, à procura de essências; se o primeiro constitui o lugar da desdramatização, o segundo é o lugar da obra fechada, de um espaço dramático semelhante ao teatral. A corrente desconstrutivista da transparência, comenta Aumont et al. (2008), demonstra, por um lado, a artificialidade da impressão da realidade e, por outro lado, a importância ideológica, para o cinema da transparência, da camuflagem do trabalho de produção em prol de uma naturalidade aparente. Com efeito, porque a representação cinematográfica está sujeita a vários constrangimentos técnicos (película utilizada, iluminação disponível, definição da objetiva, seleção e hierarquização dos sons, tipo de montagem, etc.) e estéticos, o realismo das matérias de expressão não é mais do que o resultado de um grande número de convenções e regras; a realidade ecrãnica, ou melhor, a sua verosimilhança, é estruturada na relação com a opinião comum, com o funcionamento interno da história, com outros filmes, e com o género de filme. Aliás, observa o cineasta e crítico de cinema Pascal Bonitzer (1982), a inicial reivindicação por parte da Nouvelle Vague de um cinema realista (dos temas e da linguagem) transformou-se, sobretudo graças a Jean-Luc Godard, na reivindicação da liberdade da escrita (da libertação da mise-en-scène relativamente ao guião e à própria realidade), do cinema como espaço de criação.

Também Metz (1968) questiona o real criado pelo filme, e centra a noção de real no espetador, diferenciando entre “impressão de realidade” e “perceção da realidade”: a impressão de realidade é provocada pela diegese, pelo mundo ficcional representado, enquanto a perceção da realidade tem a ver com a realidade do material empregue para

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os fins da representação. Há um ponto ótimo (representado pelo cinema), aquém ou além do qual a impressão de realidade gerada pela ficção tende a diminuir: aquém, situam-se a pintura realista e a fotografia, cujo material demasiado pobre não chega a constituir um universo diegético; além, temos o teatro, cujo material demasiado real faz fugir a ficção; o segredo do cinema é inserir muitos índices de realidade nas imagens que, no entanto, continuam a ser vistas como imagens, potenciando o imaginário do espetador.

A inscrição total do espetador na cena é operada por Oudart (1971), através do conceito “efeito de real”, distinguindo-o do “efeito de realidade”: o efeito de realidade é o resultado de uma tecnologia e dos seus códigos de representação (nomeadamente o sistema perspético herdado da pintura ocidental); o efeito de real deriva da inscrição do espetador no interior do sistema representativo, como se ele fizesse parte do mesmo espaço. Esta inclusão, a sutura do espetador na cena leva-o a não percecionar os elementos da representação enquanto tais, mas como sendo as próprias coisas (a representação transforma-se em ficção).

Na sua proposta de uma filmologia pós-semiológica, Jean-Louis Schefer (1979) questiona também a analogia enquanto gesto fundador do cinema, defendendo que o que constitui a especificidade da imagem é o facto de que, a partir do momento em que ela se configura, entra numa zona de dependência da perceção, da imaginação, da memória e dos afetos de qualquer sujeito; no cinema, o único real são os efeitos que as imagens produzem no espetador; na sala de cinema, o espetador é a única real ficção do espetáculo. Em oposição ao “homem imaginário” de Morin, Schefer propõe um “homem imaginado”: mais do que o desejo de identificação com um mundo imaginário diferente, o espetador deseja um outro mundo no seu mundo; o cinema constitui-se como um ser-olhar, que nos olha e organiza a relação entre as imagens.

Em suma, a análise da relação do cinema com o real (real imaginado) evidencia, por um lado, uma evolução do conceito de “real”, evolução estruturada por correntes (teóricas e práticas) opostas e, por outro lado, o deslocamento da relação cinema-real para a relação cinema-espetador. Assim, até meados do século XX, a relação assenta na oposição entre o realismo impressionista e o expressionismo, o surrealismo, o realismo poético, entre o olho-câmara e a montagem, entre a realidade espacial e social, e o realismo crítico, entre a imanência e a essência, entre o documentário e a ficção.

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Evidencia-se nestas oposições a velha dialética entre o visível e o visível: o real, a realidade é a concordância entre a matéria e a imagem (fotogenia), é a imanência da vida, a realidade social e espacial (transparência), é o atual; o imaginário é a intimidade mais secreta dos seres (surreal), é o discurso criado pela montagem, é o lirismo metafórico e alegórico, é o passado e o futuro. Tanto o real como o imaginário sempre estiveram, em maior ou menor grau, presentes no cinema clássico, mas como dimensões opostas; pelo contrário, no cinema moderno tornam-se indiscerníveis, trocando mesmo de papéis. A partir da década de 1960, a reflexão ontológica do cinema alarga-se à sua relação com o espetador, através da diferenciação entre a impressão de realidade e a perceção de realidade, entre o efeito de realidade e o efeito de real, da circunscrição do real aos efeitos produzidos pelo cinema no espetador, e da redução da realidade à ficção.

Mais do que uma inversão semântica real-irreal, estamos perante a fusão da ficção com a realidade, a ficção é a realidade e a realidade é ficcional. Importa, contudo desambiguar a relação entre o conceito de real e o de realidade, tomados por vários autores como sinónimos. Adotando a conceção lacaniana, o real é o não mediado, a realidade é o imaginário simbólico, é o real que se torna realidade. A expressão Oudartiana de “efeito do real” traduz isso mesmo: a realidade criada pelo cinema é apenas um efeito, um reflexo, uma aproximação do real, jamais uma captura; o real é o que o cinema sempre perseguirá. Tal perseguição é evidenciada pelo desenvolvimento tecnológico do dispositivo cinematográfico (ao nível do sistema sonoro, da tridimensionalidade, do odor, etc.), uma procura crescente do realismo da imagem cinematográfica, potenciando o efeito de simulacro de uma experiência realizada. Nesta nova era é a vida que as imagens perseguem, observa Teresa Cruz (2003), e não já a aparência das coisas ou a certificação da forma; as imagens criam uma intimidade total com as coisas, com os sonhos e a fantasia. Como tal, a relação do cinema com o real e consigo próprio não pode ser dissociada da relação com o homem imaginativo (realizador ou espetador). É adotando o ponto de vista do espetador que prosseguimos.

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6.2. “VAMOS AO CINEMA?”

Ir ao cinema, até a algumas décadas atrás um ritual como ir ao teatro (só que mais democrático) ou como ir à missa (embora talvez menos católico), é agora maioritariamente uma etapa da ida à catedral do consumo (a outra face da crescente festivalização do cinema, e da sua expansão para outros contextos, uma libertação do lugar equivalente à operada pela pintura renascentista). A romântica situação de

cinema descrita por Barthes (1984) – o vazio, a disponibilidade mental e a escolha mais

ou menos fortuita do filme, condições que criam uma situação pré-hipnótica – deu lugar ao consumo de cinema por orientação do marketing inerente à indústria cinematográfica, o que significa a perda do valor de culto do cinema em prol do valor de exposição61. Metz (1980) apelida de instituição cinematográfica a interação entre a indústria do cinema (que funciona para encher salas) e a maquinaria mental (a psicologia do espetador, os mecanismos psicológicos que os espetadores habituados a ir ao cinema historicamente interiorizaram, e que os torna aptos para consumir filmes); assim, a vontade de ir ao cinema é uma espécie de reflexo a que a indústria do filme deu forma, mas é igualmente um elo real no mecanismo de conjunto desta indústria.

O dispositivo cinematográfico – a sala, o ecrã e a cabina de projeção – uma organização material que faz lembrar as condições do mito da caverna de Platão, refere Journot (2005), produz efeitos ao nível da receção do filme. O clima particular que reina em qualquer sala de cinema – sala às escuras, ausência de interferências sonoras e isolamento psicológico dos demais – constitui para Moscariello (1985) a aura do filme. Assim, enquanto um espetáculo teatral pode tirar partido das luzes acesas na sala, o acender das luzes durante a projeção esvaziaria o filme da presença das personagens, transformando-as em simples manchas desbotadas; por outro lado, vamos ao cinema para ver sem sermos vistos, enquanto no teatro é importante estar frente a frente com os atores. Se a representação teatral (arte mais aristocrática do que o cinema) suporta condições ambientais não ideais, o cinema exige ser fruído em condições mais aristocráticas. Sendo uma arte coletiva por excelência, o cinema dirige-se à pessoa

61 É no quadro de uma estratégia de recuperação do valor de culto do cinema que podemos compreender a peregrinação de João Botelho com o seu Filme do desassossego (2010) por várias salas de cinema clássicas.

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singular numa relação privada que não tolera intromissão (excetuando a gustativa relação com a pop corn!).

O espetador de cinema é um sujeito passivo em estado puro, considera Morin (2011). Ao contrário do que acontece no teatro, no cinema não há cerimonial, isto é, não há cooperação prática do espetador no espetáculo. A atrofia da participação prática determina uma intensa participação afetiva; correlativamente, a passividade e impotência do espetador, colocam-no numa situação regressiva, o que conduz o espetáculo do grau afetivo ao grau mágico. A obscuridade dissolve as resistências diurnas, o relaxamento da postura favorece o devaneio, o isolamento do espetador no coração de um ambiente humano favorece a sugestão.

O escuro da sala de cinema é para Barthes (1984) o suporte do fascínio do filme: