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IMAGINÁRIO, IMAGEM E IMAGINAÇÃO

3.1. PRESENTAÇÃO E SIMULACRO

O regime da presentação constitui-se, antes de mais, sobre a morte da imagem tal como se assumia até ao século XIX. Contrariamente à ideia de que cada vez mais vivemos na era da imagem, o facto é que, observa Bragança de Miranda (2002, p. 2), “a época da imagem foi aquela, teológica, onde a imagem de Deus organizava todas as outras, mas também todas as coisas, e que, secretamente, nos dizia que o «existente» na sua imensa proliferação era sempre o mesmo, uma pálida imagem de algo mais essencial, a salvação, para que tudo o mais remetia, ou testemunhava.” A par do nihilismo moderno, que ao operar um descentramento radical do mundo, reduz essa imagem a uma entre outras, a reprodutibilidade técnica realçada pelo filósofo Walter Benjamin (1987) abala as distinções entre coisa e imagem, presente e ausente, original e cópia, de que dependia o ordenamento do mundo.

O grande comércio da imagem coletiva consequente à reprodutibilidade técnica constitui também para Rancière (2011, p. 22) uma das causas do fim da era da imagem. A par do comércio das imagens, o novo regime estético das artes é estruturado pela emergência das grandes hermenêuticas e pelas alterações nas operações da arte: “a imagem já não é a expressão codificada de um pensamento ou de um sentimento. Não é já um duplo ou uma tradução, mas uma maneira pela qual as próprias coisas falam ou se

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calam. A imagem vai, de certo modo, alojar-se no seio das coisas como uma sua palavra muda.”

O novo regime estético das artes, o projeto de uma arte liberta das imagens, liberta não só da figuração antiga com também da tensão entre as operações da arte e as formas sociais da semelhança e do reconhecimento, afirma-se entre os anos de 1880 e 1920, entre os tempos do simbolismo e do construtivismo. Tal projeto ganhou forma em duas grandes manifestações: “a arte pura, concebida como arte cujos desempenhos não constituiriam já imagem, realizando diretamente a ideia numa forma autosuficiente; e a arte que se realiza ao suprimir-se, que suprime o desfasamento da imagem para identificar os seus procedimentos com as manifestações de uma vida inteiramente em ato, e que já não separa a arte do trabalho ou da política.” (Rancière, 2011, pp 29-30). A primeira destas ideias propõe uma arte totalmente separada do comércio social da imagética: é com este projeto que se identifica, por exemplo, o teatro de Edward Gordon Craig, um teatro que já não representa peças, mas cria as suas próprias obras. A segunda forma é concretizada pelos programas da época simultaneísta, futurista e construtivista: uma pintura à maneira de Balla ou Delaunay, cujo dinamismo clássico desposa os movimentos acelerados e as metamorfoses da vida moderna; uma poesia futurista em sintonia com a velocidade dos automóveis; um teatro como o de Meyerhold, inventando as formas da biomecânica para homogeneizar os jogos cénicos com os movimentos da produção socialista; um cinema do olho-máquina vertoviano, tornando síncronas todas as máquinas; uma arte gráfica à maneira de Rodchenko, conferindo aos carateres e aos aviões representados o mesmo dinamismo geométrico. Ambas as formas propõem suprimir a mediação da imagem, isto é, não só a semelhança mas o poder das operações de deciframento e de suspensão, bem como o jogo entre as operações da arte, o comércio da imagens e o trabalho das exegeses; e suprimir tal mediação consiste em realizar a imediata identidade do ato e da forma.

Mais do que a não-figuração, prossegue o autor, a rutura com a representação traduz- se na emancipação da semelhança em relação ao triplo constrangimento da representação (regulação do visível através da palavra, regulação das relações entre saber e não saber, e regulação da realidade), ou seja, a antirepresentação emancipa a semelhança das conveniências representativas, tal como o realismo romanesco de Flaubert antecipara; doravante já não há bons temas artísticos, tudo está em pé de

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igualdade, já não há regras de conveniência entre um certo tema e uma certa forma, mas uma disponibilidade de todos os temas para qualquer forma artística. “À cena representativa de visibilidade da palavra opõe-se uma igualdade do visível que invade o discurso e paralisa a ação. Porque este novo visível (…) não faz ver, impõe uma presença” (Rancière, 2011, p. 161).

Trata-se da passagem da interdependência entre a linguagem e o mundo, que dominou nos séculos XVII e XVIII, à separação entre as coisas e as palavras, considera Foucault (1998); foi graças à sua própria autonomia, que a literatura, desde Hölderlin a Mallarmé e Artaud, logrou existir; foi quando se tornou contradiscurso e quando passou da função representativa ou significante da linguagem, a esse ser bruto, esquecido desde o século XVI, que a literatura se libertou da servil função de nomear; na idade moderna, a literatura é o que compensa a função significativa da linguagem. No teatro da crueldade de Antonin Artaud (1896-1948) é o corpo que deve canalizar e transmitir todas as emoções da peça, exigindo do ator um envolvimento visceral e ritual com a cena. Inspirado no teatro oriental, Artaud defende um teatro da não representação, liberto do texto; a expressão através dos gestos, ruídos, cores, etc., reconduziria o teatro ao seu destino primitivo, ao seu aspeto religioso e metafísico, e à sua reconciliação com o universo. Na pintura, René Magritte explora esta clivagem entre as palavras e as coisas, nomeadamente em obras como A traição das imagens (isto não é um cachimbo) (1929) ou A chave dos sonhos (1930), nas quais as palavras evidenciam a sua autonomia perante o que nomeiam. E é a autonomização da palavra face à imagem o que torna o cinema moderno verdadeiramente audiovisual, como veremos na segunda parte.

O mundo nascido das cinzas da representação e da falência das ideias da identidade e do mesmo constitui para o filósofo pós-estruturalista Gilles Deleuze (2000) o mundo dos simulacros. Todo o ser é único, singular por excelência; ao submeter as coisas a um modelo, a um centro único de avaliação, a representação impede a apreensão da

diferença, cavando assim a sua própria ruína e dando lugar ao simulacro. Não se trata de

abolir a representação, a recognição (artifício da razão para não se perder no caos e na diferença), mas de dar azo à potência criadora do pensamento, para apreender as coisas na sua singularidade; no simulacro a relação essencial já não é entre o modelo e a cópia, mas entre o diferente e o diferente. Porque todos os seres são diferentes entre si e independentes da tirania de um modelo, o próprio ser é um simulacro. A univocidade do

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ser significa que cada ser é um transmundo para o outro; é para vencer a solidão inerente ao abismo entre os seres, que são criadas pontes imaginárias, como a linguagem e arte.

Também o sociólogo e filósofo Jean Baudrillard (1991) caracteriza o mundo contemporâneo como a era dos simulacros e da simulação. Porque dissimular é fingir não ter o que se tem e simular é fingir ter o que não se tem, a dissimulação deixa intacto o princípio da realidade, enquanto a simulação põe em causa a diferença entre o verdadeiro e o falso, entre o real e o imaginário. Assim, ao contrário da representação, que parte do princípio de equivalência do signo e do real, a simulação parte da negação radical do signo como valor, parte do signo como reversão e aniquilamento de toda a referência; enquanto a representação tenta absorver a simulação, interpretando-a como falsa representação, a simulação envolve todo o edifício da representação como simulacro.

Do ponto de vista histórico, continua Baudrillard, a emergência do simulacro coincide com a quarta e terminal fase da imagem:

1ª) A imagem é o reflexo de uma realidade profunda; ela é uma boa aparência, a representação é do domínio do sacramento.

2ª) A imagem mascara e deforma uma realidade profunda; é uma má aparência, situa-se no domínio do malefício.

3ª) A imagem mascara a ausência de realidade profunda; finge ser uma aparência, é do domínio do sortilégio.

4ª) A imagem não tem relação com qualquer realidade, ela é o seu próprio simulacro puro; já não é do domínio da aparência, mas da simulação.

A viragem decisiva é marcada pela passagem dos signos que dissimulam alguma coisa para os signos que dissimulam que não há nada: os primeiros referem-se a uma teologia da verdade e do segredo; os segundos inauguram a era dos simulacros, onde já não existe Deus para reconhecer os seus, nem o Juízo Final para separar o verdadeiro do falso.

Na era do simulacro já não se trata de simular um território, um ser referencial, mas de gerar, através de modelos, um real sem origem nem realidade. Tal não significa falsidade nem irrealidade: os simulacros são experiências, digitalidades, objetos sem

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referência, mas que se apresentam mais reais do que a própria realidade, isto é, são hiper-reais. Exemplos abundantes são apresentados por Baudrillard: a Disneylândia, espaço imaginário para fazer crer que o resto é real, quando toda a América é do domínio do hiper-real e da simulação (qual Portugal dos Pequeninos para nos fazer crer que somos grandes!); o holograma, que já não é uma imagem (o médium é o laser, luz concentrada, quintessenciada, que não é uma luz visível ou reflexiva, mas uma luz abstrata e de simulação), não tem o valor de reprodução mas de simulação, já não é real mas hiper-real; é também o caso dos remakes cinematográficos – o cinema recopia-se, refaz os seus clássicos, retroativa os mitos originais.

Quando o real já não se distingue do irreal, prossegue o autor, a nostalgia assume todo o seu sentido: sobrevalorização dos mitos de origem e da moda retro; escalada do verdadeiro, do vivido, ressuscitando o figurativo onde o objeto e a substância desapareceram; produção desenfreada de real e de referencial, paralela ao desenfreamento da produção material. A impossibilidade de voltar a encontrar um nível absoluto do real tem como reverso a impossibilidade de encenar a ilusão, colocando-se todo o problema político da paródia, da hiper-simulação ou da simulação ofensiva.

A condição simulacral da imagem contemporânea é centrada pela teórica dos media e da imagem M. Teresa Cruz (2003, pp 60-61) na relação com a vida. “Nesta nova era, é a vida que as imagens perseguem e não a aparência das coisas ou a certificação da sua forma. Aliás, elas terão perdido, a esse respeito, o poder de que estavam investidas quer pela metafísica quer pela teologia e, ainda, pelo pensamento da representação: o de serem cópias ou signos credíveis de algo. Foi sobre esse poder que se edificou, na verdade, o que podemos chamar uma «civilização das imagens». (…) O simulacro representaria, então o fim da «civilização das imagens» ou a condição da imagem depois da perda de toda a transcendência, ou deste fundamento metafísico e teológico que alimentou o próprio pensamento da representação. (…) A era do simulacro é a era da intimidade total das imagens com as coisas, os corpos e a matéria, e ainda com os sonhos, a fantasia e o ideal.”

Tal aproximação à vida realiza-se sobretudo pela condição cinemática da imagem moderna: os dispositivos de projeção produzem aparições fantásticas, imagens que apresentam a consistência de seres vivos. A máquina fantasmática – simuladores,

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ambiente virtual, realidade virtual – é um gerador de experiências e de vivências (cujo processo é idêntico ao da tecnologia química das drogas alucinogénicas), nas quais a dimensão dominante já não é necessariamente a do olhar. Através da interatividade está- se como que a habitar na imagem, instaurando um mundo; mais do que a questão da sua semelhança com o mundo que conhecemos, o importante é que é possível habitar, existir dentro desse mundo18.

O programa do simulacro tecnológico, defende a autora, visa dotar as imagens de qualidades cada vez mais próximas das da vida, e as imagens que aspirem a ser confundidas com a vida devem forçosamente incarnar, ou seja, inscrever-se na carne, afetá-la; o corpo assim inscrito torna-se um corpo biotecnológico, cyborg, pós-humano. A cultura do simulacro não é uma cultura onde tudo se tornou aparência, é uma cultura em que os fantasmas ganham vida, na medida em que não apenas aparecem, como incarnam ou se revelam por meio da afeção da carne.

No cerne do novo regime imagético, que visa criar um mundo novo, um mundo virtual interativo, encontra-se a digitalidade, a imagem digital. Comparativamente com a imagem impressa e a imagem projetada, a imagem digital tem propriedades radicalmente diferentes (E. Couchot, 1999; J. Jiménez, 1999; P. Weibel, 1996; L. Massou, 2007):

a) não depende de um original, mas apenas de um programa ou algoritmo; não é o registo de um traço deixado por um objeto pré-existente pertencente ao mundo real e que se interpõe entre o objeto e o sujeito, antes resulta de um processo em que o cálculo matemático se substitui à luz, e o tratamento da informação ao da matéria;

b) é manipulável (cada componente da imagem é variável e adaptável, oferecendo uma infinidade de faces), cambiante e fugaz (e, deste modo, incompleta e latente);

c) interage com o sujeito: o observador participa no sistema, cujos cenários virtuais reagem à sua presença e solicitam regimes de perceção complexos e associados sinestesicamente; ao invés da imagem-objeto, a imagem digital é uma imagem-

18 Veja-se os filmes The Truman Show, de Peter Weir (1998), cujo protagonista vive na realidade construída de um programa de televisão, e The Matrix, dos irmãos Wachowski (1999) que nos apresenta um futuro distópico em que a realidade percebida pela maioria das pessoas é uma realidade simulada.

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ambiente na qual podemos imergir, é um acontecimento-mundo de contexto controlado;

d) enquanto a imagem-objeto visa representar o mundo, a imagem digital visa simular um mundo.

O último grande obstáculo à criação de um mundo preponderantemente virtual, simulacral, observa o filósofo José Gil (2003), é a dependência de uma instância real, de um interface entre o homem e esse mundo. Os universos virtuais a criar futuramente, projeta Weibel (1996) supõem o desaparecimento (para a perceção) da fronteira que separa o virtual da vida real, ou seja, a ligação direta entre o cérebro e a esfera da imagem virtual, através de brainchips (microprocessadores a enxertar no cérebro) e

neurochips que conectem o cérebro com o mundo virtual19; surgiria assim, um corpo terminal, que separa o self (máquina interna) do corpo (máquina externa), cujos sentidos corporais seriam substituídos pelos sentidos imateriais – processos de receção e tratamento dos dados. Em tal cenário, as características do real transformar-se-iam radicalmente: as possibilidades de construção de mundos virtuais seriam ilimitadas, mas, alerta Gil (2003), à custa do empobrecimento da vida, devido à redução das reações humanas a estímulos pré-programados e consequente diminuição da imprevisibilidade dos acontecimentos.

Em suma, a era da imagem, que reinou durante longos séculos, deu lugar na pós- modernidade à era do simulacro; ostracizado desde a metafísica grega e diabolizado pelo dogmatismo teológico, o simulacro retorna refeito e com novas potencialidades. De cópia imperfeita ou sombra do ser, o simulacro passa a constituir-se como diferença pura, derrubando o regime da representação assente no modelo único, e aproximando-se da vida através da incarnação; mais do estabelecer qualquer relação com a realidade, o novo regime da imagem simula a sua própria realidade, uma realidade hiper-real, verdadeira por direito próprio, cria um mundo em que a imagem se confunde com a realidade e a realidade se funde com a ficção. Liberta das imagens, a arte cria uma identidade imediata entre o ato e a forma, funde-se com o trabalho e a política, deixa de “re-presentar” algo ausente para instaurar uma presença. Idêntica atitude é adotada pelas

19 Veja-se o filme Existenz, de David Cronemberg (1999), que narra um futuro próximo em que é inventado um jogo ligado diretamente ao cérebro – o eXistenZ – no qual os jogadores não distinguem os limites entre a fantasia e a realidade.

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hermenêuticas surgidas a partir da década de 1920, para as quais a imaginação não se reduz à memória de um ausente, pelo contrário instaura uma presença, como veremos já seguir.