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CINEMA E IMAGINÁRO

5.5. RITMO E SENTIDO

A enorme quantidade de imagens, sons e inscrições gráficas que um filme mobiliza, implica um grande trabalho de combinação e disposição desses vários elementos. Trata-se da montagem, ou seja, da “organização dos planos de um filme segundo determinadas condições de ordem e duração” (Martin, 2005, p. 167). Constitui um processo complementar ao da planificação46: enquanto a planificação constitui um processo analítico, a montagem é um processo sintético. Constituindo um dos traços específicos mais evidentes do cinema, a arte da montagem cumpre dois objetivos principais: por um lado, criar sentido e, por outro, dar ritmo ao filme.

i. Ritmo e tonalidade psicológica

Para além do movimento na própria imagem, da sua organização plástica (em termos de luz, cor, configuração dos elementos, etc.) e da banda sonora, o ritmo é criado pela duração e pela grandeza dos planos.

O comprimento dos planos, percecionado pelo espetador como duração, constitui uma resposta à necessidade de manter a atenção do espetador; como observa Vincent Amiel (2008), tal facto tem levado à progressiva redução do comprimento dos planos: com uma duração média de 8 segundos no cinema clássico, os planos tornaram-se cada vez mais curtos até atingirem 1 segundo ou menos nos vídeos publicitários ou musicais. Por outro lado, refere Martin (2005), o comprimento dos planos é menos determinado pela necessidade de perceção, do que pela adequação do ritmo à dominante psicológica que o realizador deseja criar. Assim, enquanto planos geralmente longos criam um ritmo lento, planos curtos criam um ritmo rápido e dinâmico; se planos cada vez mais curtos originam uma impressão de tensão crescente até ao clímax, planos cada vez mais

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A planificação (découpage) ou script é a última fase antes da rodagem do filme e serve de referência à equipa técnica; trata-se de um texto normalmente dividido em colunas que apresentam, plano a plano, as imagens e os sons do argumento, podendo adquirir a forma de storyboard – uma espécie de banda desenhada que mostra as imagens do filme antes da rodagem, segundo uma planificação técnica (Journot, 2005).

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longos expressam o regresso a uma atmosfera calma; uma mudança brusca de ritmo provoca efeitos de surpresa; um plano muito curto causa uma impressão de choque, ou uma sensação de agressão pela dificuldade em compreender a imagem, enquanto um plano muito longo cria um sentimento de espera e de interrogação.

ii. A impressão de continuidade e metamorfose

A par da tonalidade psicológica gerada pelo ritmo, a montagem visa igualmente criar um sentido, uma impressão de continuidade. Para tal, refere Martin (2005), a sucessão de planos de um filme deve basear-se numa relação de tipo dialético, em que cada plano deve preparar o seguinte.

A continuidade visual e diegética entre dois planos é criada pelas ligações (raccords). As principais são sistematizadas por Journot (2005): ligações de olhar (a um primeiro plano da personagem sucede um contracampo que mostra o que ela vê; deste modo, o ponto de vista é diegetizado, passa para o lado da personagem, assegurando o encadeamento dos acontecimentos e favorecendo a identificação do espetador);

ligações de movimento (o movimento ou gesto é iniciado num plano e continuado no

seguinte); ligações de direção (as deslocações efetuam-se no mesmo sentido no decurso de planos sucessivos); ligações no eixo (mudando a escala de plano a câmara conserva o mesmo eixo de ponto de vista para não perturbar a perceção do espetador);

ligações de ordem plástica (jogam com a metonímia, um efeito de contiguidade entre

formas e cores; por exemplo, no Citizen Kane de Orson Welles, 1941, o papel branco transforma-se em neve, para se tornar novamente papel no fecho da sequência). Martin (2005) identifica também as ligações de ordem psicológica: podem ser de conteúdo nominal (os elementos evocados num plano aparecem no seguinte) ou intelectual (o meio termo pode ser o pensamento de uma personagem – por exemplo, n’ O anjo azul, de Josef von Sternberg, 1930, a governanta ao entrar de manhã no quarto do professor fica espantada por encontrar a cama vazia e interroga-se, e o plano seguinte mostra o professor estendido sobre a cama da cantora). Defende ainda que a impressão de continuidade implica que uma cena ou sequência se inicie sobre uma ação já em curso e termine sobre uma ação que prossegue, para sugerir que a ação continua, apesar de a câmara a abandonar; grandes planos finais visam manter o espetador na plenitude do encanto dramático, mesmo depois do final da história.

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O crítico de cinema Jean Pierre-Oudart (1969) aplica a noção lacaniana da sutura aos enunciados cinematográficos, caracterizando uma forma de articulação entre dois planos sucessivos que, em vez de se basear no significado das imagens a articular, assenta no significante fílmico e na relação campo – fora de campo; a sutura é o processo que, para o espetador, suprime a falta em questão por qualquer coisa que acontece no segundo plano.

A par da continuidade, a montagem também cria ruturas. Trata-se da função sintática da montagem, equivalente à da pontuação na escrita, separando planos para evitar falsas ligações. Martin (2005) sintetiza os principais processos de transição: mudança

de plano por corte brusco (substituição de uma imagem por outra, utilizada quando a

transição corresponde a uma simples mudança de ponto de vista, sem expressão de tempo decorrido nem de espaço percorrido, e sem interrupção da banda sonora),

abertura em fusão e fecho em fusão ou fusão a negro (separam uma sequência da outra

e servem para marcar uma importante mudança de ação, para assinalar a passagem do tempo ou a mudança de lugar), fusão encadeada (substituição de um plano por outro através da sobreposição momentânea de uma imagem que aparece sobre a precedente, a qual desvanece lentamente, e tem como função marcar uma passagem de tempo),

cortinas e íris (uma imagem é substituída por outra, que desliza sobre ela, quer

lateralmente, quer à maneira de leque, ou então o aparecimento de uma imagem faz-se sobre a forma de uma abertura circular que aumenta ou diminui; estes processos materializam perante o espetador a existência do ecrã como superfície quadrangular).

A montagem constitui para Morin (2011) a técnica suprema do cinema por metamorfosear o universo: ela transforma o tempo cronológico num tempo psicológico, subjetivo, tempo cujas dimensões – passado, presente e futuro – se encontram indiferenciadas no espírito humano; juntamente com o movimento da câmara, a montagem opera saltos descontínuos, diferentes pontos de vista, cria a ubiquidade, que se traduz na metamorfose dos objetos. E a fluidez do tempo e do espaço, a metamorfose e a ubiquidade, constituem os fundamentos da visão do cinema.

Segundo Deleuze (2006), o cinema apresenta o tempo de duas formas principais: direta e indireta. O cinema clássico dá-nos apenas uma imagem indireta do tempo, porque este decorre da montagem que liga uma imagem-movimento a uma outra, dá- nos uma imagem do tempo cronológico; pelo contrário, o cinema moderno, o cinema

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do tempo (de Orson Welles, Robbe-Grilhet, Alain Resnais, entre outros) revela o fundamento escondido do tempo, ou seja, a sua diferença em dois jatos, o dos presentes que passam e o dos passados que se conservam (imagem-tempo).

iii. Expressividade e transparência

Sendo uma das principais especificidades do cinema, a montagem constitui uma dimensão fundamental da teoria cinematográfica, estando no centro de conceções opostas do cinema: a do cinema da expressão, dialético e a do cinema narrativo, da transparência.

Como refere Aumont et al. (2008), de um lado temos os cineastas e teóricos que elegem a montagem como princípio central que rege toda a produção de significado; a soberania da montagem predomina nos anos de 1920, no período áureo do cinema mudo, e é desenvolvida no seio da escola soviética. Serguei Eisenstein, o seu principal representante, entende que o filme não deve reproduzir o real mas sim refleti-lo, fazendo um juízo ideológico sobre ele. Fiel às leis do materialismo dialético, o autor pensa a produção de sentido, sobre o modelo do conflito (gráfico, de luz, de ritmo, de som, etc.), quer entre fragmentos sucessivos, quer dentro do mesmo fragmento47: é do choque entre dois fragmentos independentes que nasce uma ideia. Influenciado pela reflexologia pavloviana, Eisenstein concebe a forma fílmica como um meio de influenciar o espetador, de o conduzir ao êxtase através da sua adesão afetiva e intelectual ao filme.

Do lado oposto situam-se aqueles que desvalorizam a montagem enquanto tal, e a submissão estrita dos seus efeitos à instância narrativa ou à representação realista do mundo, consideradas como a missão essencial do cinema. Esta tendência, que se torna dominante com o advento do sonoro, faz da montagem um processo mais democrático, menos visível, e é especialmente teorizada, nos anos de 1950, por Bazin (1992) sob a ideologia da transparência do discurso fílmico. A transparência desejada, a impressão de continuidade e de homogeneidade, surge da invisibilidade da montagem, da interdição da montagem sempre que destrói a ambiguidade que caracteriza o real. Criticando simultaneamente a montagem da fase do cinema mudo, por assentar num

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O fragmento é, para Eisenstein, a unidade fílmica; é menos o plano do que o que está dentro do plano (luminosidade, contraste, duração, sonoridade gráfica, etc.).

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princípio abstrato de argumento ou de forma, como a montagem psicológica (a prática da fragmentação dos factos, emergente com o cinema sonoro), por servir apenas para antecipar os ritmos naturais da atenção e perceção do espetador, Bazin propõe a restrição da montagem às ligações e advoga a valorização do plano-sequência e da profundidade de campo porque, não só permitem produzir representações com a mesma ambiguidade do real, como também se adequam melhor à nossa forma de assimilação do real; porque acredita mais na realidade do que na imagem, defende que o filme deve dar a ver os acontecimentos representados, mais do que dar-se a ver a si próprio.

Em síntese, ao cinema materialista, discurso articulado, que se baseia apenas numa referência figurativa ao real, contrapõe-se o cinema da transparência, pretensa reprodução fiel e objetiva de uma realidade, que encontra todo o seu sentido nela própria. A prática destas ideologias é menos polarizada, não existindo uma rutura nítida entre os dois tipos de montagem; para além do mais, importa ter em conta que, se a organização do filme sugere um determinado sentido, é o espetador que cria a unidade, como veremos no próximo capítulo.

A sequência de sínteses parciais (encadeadas num perpétuo ultrapassar dialético) operada pela montagem, aparece como narrativa fílmica, sobre a qual nos detemos seguidamente.

5.6. “ERA UMA VEZ…”

Ir ao cinema é normalmente ir ver um filme que conta uma história. Apesar de não ter nascido com uma vocação propriamente narrativa, rapidamente o cinema se cruza com a narração48; para tal, observa Aumont et al. (2008), muito contribuíram três fatores principais: em primeiro lugar, se qualquer objeto é já ele próprio um discurso, toda a figuração ou representação apela ainda mais à narração; depois, dado que toda a história pode reduzir-se a um percurso de um estado inicial até um estado final, pode

48 Embora o cinema experimental, underground ou avant-garde se pretenda não-narrativo, é difícil estabelecer uma fronteira entre o cinema narrativo e o cinema não-narrativo, argumenta Aumont et al. (2008): por um lado, nem tudo no cinema narrativo é necessariamente narrativo-representativo (como é o caso dos fundos negros, dos jogos estéticos de cor e de composição, etc.); por outro lado, o cinema que se proclama não-narrativo utiliza sempre alguns traços do filme narrativo, dando normalmente a impressão de um desenrolar lógico conducente a um fim.

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ser esquematizada por uma série de transformações encadeadas, o cinema, enquanto imagem em movimento, coloca à disposição da ficção a duração e a transformação; por fim, a procura inicial de uma legitimidade, de um estatuto artístico, conduz o cinema a colocar-se sob os auspícios das artes nobres de então – o teatro e o romance – e a desenvolver as suas capacidades narrativas.

O despertar da vocação narrativa do cinema é também assinalado por Moscariello (1985, p. 50): “como grande máquina fabuladora, o cinema é chamado a desempenhar nos nossos dias a mesma função mitopoiética que na Idade Média era confiada às «canções de gesta» e no século XIX ao «romance realista». De facto, à semelhança destes dois géneros, também o cinema se propõe satisfazer aquela fome de narrativas que é tão antiga como o homem e que constitui a manifestação mais elementar da nossa insuprimível necessidade de «imaginário».”

A vinculação do cinema ao livro é igualmente defendida pelo teórico da comunicação Marshall McLuhan (1996): para além de exigir a capacidade de fixação da vista, de linearidade e fragmentação típicas da racionalidade do homem tipográfico, muitos dos maiores sucessos cinematográficos derivaram de novelas.

i. Narrativa fílmica, literária e teatral

Mas se o objetivo do cinema e do romance é o mesmo, a sua substância de expressão, o seu procedimento escritural, é diferente, observa e justifica Moscariello (1985). Assim, o romance consiste na narração escrita de um acontecimento unitário expresso na primeira ou na terceira pessoa (o que significa que o ponto de vista adotado pelo romancista pode ser subjetivo, ao identificar-se com a personagem narrante, ou objetivo, contando a história do exterior, de um exterior que se traduz numa posição de superioridade relativamente às criaturas poéticas, face às quais é omnisciente como um deus); além disso, o espaço do romance é um lugar puramente abstrato (em virtude do caráter arbitrário e convencional do código verbal), ligado à capacidade evocadora das palavras e à sensibilidade do leitor (ao qual requer uma maior imaginação). Pelo contrário, o filme lida sobretudo com imagens capazes de evocar uma impressão de realidade inacessível às palavras (como as imagens não se podem conjugar, o único

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tempo que o cinema tem à sua disposição é o presente)49; o espaço fílmico é percebido globalmente (e não de modo analítico e setorial como no romance); quanto ao ponto de vista, no cinema a narração é simultaneamente subjetiva e objetiva (não se pode narrar exclusivamente na primeira pessoa, devido ao caráter objetivo da imagem, nem na terceira pessoa, devido à mudança de planos e dos ângulos que origina uma variação contínua da perspetiva no interior da sequência).

Apesar do parentesco dramático entre o cinema e o teatro (ambos se baseiam naquilo que Aristóteles definiu como a imitação de uma ação, a mimesis50), a ficção fílmica é diferente da teatral: se o centro de interesse do filme é o enredo, o relato, no teatro é a interpretação, a representação; enquanto a ação imitada no teatro “aconteceu de uma vez por todas”, a ação imitada no cinema “acontece pela primeira vez” sob os nossos olhos (como arte retrospetiva, o teatro reproduz uma ação memorizável que é trazida ao presente em cada récita, enquanto o cinema, como arte narrativa, produz uma ação irrepetível); daqui resulta que, ao contrário da obra teatral que é fechada, a obra fílmica torna-se aberta como o romance (ambos partilham a questão do “como acaba?”).

ii. Relato, narração e história

A narrativa cinematográfica envolve três dimensões principais – o relato, a narração e a história – que definimos a partir de Aumont et al. (2008).

O relato ou texto narrativo é o enunciado na sua materialidade, o texto que toma a seu cargo a história a contar; é um enunciado que se apresenta como um discurso, pois implica um enunciador e um leitor-espetador.

A narração engloba o ato narrativo produtor e o conjunto da situação real ou fictícia em que toma lugar. Dado que um filme é sempre a obra de uma equipa, a função narrativa é desempenhada por uma instância narrativa, o lugar abstrato onde se elaboram as escolhas para a condução do relato e da história; há que diferenciar a

49 Para Deleuze (2006) a imagem-tempo, imagem legível e imagem pensadora (dotada de cronosignos, lectosignos e noosignos), põe em causa a falsa evidência de que a imagem cinematográfica está necessariamente no presente.

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A mimesis é um termo de origem grega que significa imitação, opondo-se à diegesis que designa narração; no domínio narratológico, a mimesis designa uma forma de narração oral na qual se imitam as ações, os gestos e as palavras das personagens, enquanto a diegesis, se refere à narração na terceira pessoa; a sua atualização ao nível da filmologia foi desenvolvida nos anos de 1950 por Étienne Souriau, e é abordada mais à frente.

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instância narrativa real, aquela que fica fora de campo, típica do filme narrativo clássico, da fictícia, que é interna à história e é explicitamente assumida por uma ou várias personagens.

A história é o significado ou conteúdo narrativo; a completude e coerência interna da história tornam-na autónoma, independente do discurso que a constrói, apresentando-se como um universo, pelo que o termo é amplificado pelo de diegese – o mundo ficcional que o espetador constrói a partir dos dados do filme: dados espaciotemporais, personagens, lógica narrativa definida dentro de um género que assenta na verosimilhança e em determinadas regras estéticas. A história diferencia-se ainda do

argumento, a descrição da história na ordem do relato, e da intriga, a indicação

sumária, na ordem da história, do quadro, das relações e dos atos que reúnem as diferentes personagens.

No cinema clássico temos a impressão que a história se conta sozinha, que o relato e a narração são neutros; através da ocultação das marcas da instância narrativa, o filme de ficção clássico é um discurso que se disfarça em história.

Com base na abordagem estruturalista de Gérard Genette (1969 e 1972) à narratologia literária, podemos identificar três tipos de relação entre o relato e a história: a ordem, a duração e o ponto de vista. A ordem diz respeito às diferenças entre o desenrolar do relato e o da história; por razões de interesse dramático ou de suspense, a ordem de apresentação dos acontecimentos não é aquela na qual eles acontecem, como nos casos do flashback e do flashforward. A duração prende-se com a relação da duração suposta da ação diegética e a do tempo do relato que lhe é consagrado; o relato é geralmente mais curto do que a história (através da utilização das elipses), mas certas partes podem durar mais tempo (como quando é utilizado o ralenti)51. O ponto de vista regula a quantidade de informação dada sobre a história pelo discurso, o que depende da flutuação da focalização ao longo do filme, ora sobre uma personagem, ora por uma personagem (manifesta-se normalmente sob a forma da câmara subjetiva, o que estimula o processo de identificação, que abordaremos no próximo capítulo).

51 Raramente a duração do relato coincide com a da história; uma das famosas exceções é o filme La

114 iii. Mito e ritual

Ver um filme de ficção52 é sempre, simultaneamente, ver o mesmo filme e um filme diferente. Tal facto prende-se com duas razões, justifica Aumont et al. (2008): por um lado, todos os filmes contam, sob aparências e peripécias diferentes, a mesma história, a do confronto entre o Desejo e a Lei, e a da sua dialética com surpresas inesperadas; por outro lado, todo o filme de ficção dá a impressão de um desenvolvimento regulado e de um surgimento devido ao acaso, o que coloca o espetador numa posição paradoxal: poder prever e não poder prever o seguimento, querer conhecê-lo e não o querer. Com efeito, o desenvolvimento do filme de ficção é modulado por dois códigos: a intriga de predestinação, que consiste em dar (explicita, alusiva ou implicitamente) nos primeiros minutos o essencial da intriga e a sua resolução ou a sua resolução esperada; a frase hermenêutica (na terminologia barthesiana), que consiste numa sequência de etapas que nos leva da apresentação do enigma até à sua resolução, através de falsas pistas, logros, suspensões, revelações, rodeios e omissões, em suma, todo um arsenal de retardamento do desfecho final.

Como tal, o filme de ficção tem algo de ritual: quer porque a história que veicula obedece a programas, quer porque as intrigas sobre as quais se constrói se restringem a um número restrito, ou seja, tal como o mito ou o conto popular, apoia-se em estruturas de base cujo número de elementos é finito e cujo número de combinações é limitado. Trata-se dos lugares (os topoi) da fábula53, como refere Moscariello (1985): são as configurações que o material narrável pode adotar no plano da dispositio (disposição); enquanto as estruturas narrativas têm a ver com a organização do discurso, os lugares interessam às modalidades em que a história é representada dentro das coordenadas espaciotemporais do texto fílmico. Os topoi são os arquétipos do género fabulístico e

52 Aumont et al. (2008) argumenta que todo o filme é um filme de ficção. Ao contrário do teatro, onde o que representa (atores, décors) é real, mesmo quando o que é representado é fictício, no cinema, tanto o representante como o representado são fictícios. Nem o filme científico ou documentário escapam totalmente à ficção: primeiro, porque todo o objeto é já signo de outra coisa, é já tomado num imaginário