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CINEMA E IMAGINÁRO

5.4. A INCORPORAÇÃO SONORA

O final dos anos de 1920 constitui um marco fundamental na linguagem do cinema, com a passagem do cinema mudo ao cinema sonoro. Tal mudança, observa Mário Grilo (2008), não significa que o cinema mudo fosse silencioso (sendo mais correto apelidá- lo de “surdo”): para além dos ruídos da sala e do projetor, era frequente o acompanhamento da projeção por um pianista, um violinista, ou mesmo uma pequena orquestra; por outro lado, a própria imagem se encarregava de sugerir um determinado som, nomeadamente através do grande plano e de um determinado ritmo.

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Mas a partir de 1927, a película cinematográfica incorpora, a par da imagem e de modo síncrono, a música, as falas e os ruídos, o que abala consideravelmente a estética do cinema42. Várias foram as reações à nova possibilidade de que o cinema passa a dispor. Como recorda Aumont et al. (2008), Charlie Chaplin recusou terminantemente um cinema falante, porque destruiria a arte mais antiga do mundo – a arte da pantomima – e a grande beleza do silêncio. Por sua vez, e com efeitos bem mais fecundos, a atitude de Alexandrov, Eisenstein e Poudovkin, expressa no manifesto de 1928, foi a de uma aceitação condicional: sendo uma arma de dois gumes, o filme sonoro poderia constituir uma ameaça da invasão do cinema pelo teatro e pelos dramas da literatura, destruindo a arte da montagem; só a utilização do som como contraponto da imagem poderia desenvolver a montagem. Trata-se, observa Mário Grilo (2008, p. 44), da oposição entre um cinema sonoro naturalista e um verdadeiro cinema sonoro, o qual vê o som “não como uma forma de adicionar uma nova dimensão a uma imagem muda, de a libertar do seu mutismo, mas como um meio de problematizar a imagem, impondo entre coluna sonora e coluna visual um princípio de tensão fundamental. Em suma, a ideia de cinema sonoro implica a evidência de um imaginário sonoro. Um imaginário que (…) estava já realizado (e de que forma) no próprio cinema mudo”.

O universo sonoro do cinema é constituído por dois grandes géneros de sons, observa ainda Mário Grilo (2008): as palavras e os ruídos, que são diretamente aferidos a um conteúdo diegético, e a música, apenas referenciada ao universo fílmico de uma forma global, quase aleatória, atmosférica. À impressão da palavra e dos ruídos, contrapõe-se a expressão da música atmosferizada. Analisemos mais em pormenor cada um destes dois tipos de sons.

O potencial realista da palavra e dos ruídos é destacado por Morin (2011): dado que os ruídos e as vozes impressionadas na película são os ruídos e as vozes reais (o som não é uma imagem, desdobra-se, mas não é uma sombra nem um reflexo do som original, é o seu registo), eles orientaram o filme para um realismo acrescentado, e daí o seu papel no cinema neorrealista. Por outro lado, o cinema falado dá realidade ao

42 O papel do som no cinema comparativamente à imagem prende-se com as diferenças entre a experiência visual e a auditiva: enquanto a visão é seletiva, a audição é total (podemos fechar os olhos, mas não os ouvidos); a visão é unidirecional, ao passo que a audição é omnidirecional; se a visão implica exterioridade, a audição cria interioridade (o espaço traçado pelo ouvido torna-se uma cavidade esculpida no interior da mente); por último, enquanto o olhar isola, o som incorpora. Contudo, tendemos a ligar a audição à visão: localizamos a fonte sonora na boca da personagem e não nas colunas ao lado do ecrã, do mesmo modo que ouvimos a voz do ventríloquo saindo do boneco.

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mito da voz interior; uma voz recitante conduz a interpretação como um fantasma que conta, como uma voz do além. A voz off43 apresenta três contributos importantes: em primeiro lugar, torna mais fáceis as manipulações do tempo, os relatos do passado e a sua mistura na mesma temporalidade imaginária; depois, economizando ligações e transições, permite acelerar o ritmo das imagens e estimular o dinamismo da participação; por último, o discurso verbal pode agregar e inclusive substituir a sua própria lógica no discurso das imagens. A palavra pode ordenar o filme com um discurso, coroá-lo com um discurso ou expressar ideias no filme, abrindo o cinema à linguagem concetual.

O papel da palavra é também realçado por Martin (2005): a utilização normal da palavra liberta a imagem não só da praga das legendas mas sobretudo da sua função explicativa, permitindo-lhe consagrar-se à função expressiva; a voz fora de campo torna possível a exteriorização dos pensamentos mais íntimos. O próprio silêncio é promovido como valor positivo, sublinhando com força a tensão dramática de um momento, expressando a solidão, o perigo, a angústia, a ausência, a morte. A par da sua dimensão verbal, expressando um conceito, concretizando ou ancorando o significado das imagens, a palavra na sua dimensão não-verbal (tom, volume e ritmo) expressa o estado emocional e a personalidade da personagem ou do narrador.

A música, como vimos, não esperou pela banda sonora da película para se impor no cinema. Segundo Morin (2011), o cinema é musical como a ópera, necessita de uma música integrada, misturada ao filme, que seja o seu banho nutritivo. Entre o cinema e a música há um parentesco: tal como a continuidade musical se baseia na descontinuidade das notas, o cinema introduziu no lugar da simples fotografia animada, a fluidez, uma continuidade fundada na descontinuidade dos planos. Juntamente com o movimento, a música constitui a alma da participação afetiva do espetador no cinema44.

43 O compositor, realizador e crítico de cinema Michel Chion (2011) diferencia o som off, do som in e do

som fora de campo: este é o som acusmático (isto é, cuja fonte é invisível num dado momento,

temporária ou permanentemente) relativamente àquilo que é mostrado no plano; pelo contrário, o som in é aquele cuja fonte aparece na imagem e pertence à realidade que esta evoca; por sua vez o som off é aquele cuja suposta fonte não só está ausente da imagem, mas que é também não-diegética, ou seja, situada noutro tempo e noutro lugar que não a situação diretamente evocada (é o caso das vozes de comentário ou de narração e da música de fosso).

44 Tal facto não é alheio ao caráter arcaico da música na nossa ontogénese; tal como em termos filogenéticos a primordial predominância da audição foi gradualmente substituída pela visão (em correlação com a passagem da comunicação oral à escrita), também ao nível do indivíduo, a audição é a

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A música é considerada por Martin (2005) como a mais importante contribuição do filme sonoro, sendo vários os papéis que ela é chamada a desempenhar:

- papel rítmico: trata-se do contraponto música-imagem no plano do movimento e do ritmo, e de uma correspondência métrica exata entre o ritmo visual e o ritmo sonoro; assim, a música pode substituir um ruído real ou virtual, sublimar um ruído ou um grito, e destacar um movimento ou um ritmo visual ou sonoro45;

- papel dramático: aqui a música intervém como contraponto psicológico, fornecendo ao espetador um elemento útil para a compreensão da tonalidade humana do episódio;

- papel lírico: a música pode reforçar a importância e a densidade de um momento ou de um ato, conferindo-lhe uma dimensão lírica.

Opondo-se à utilização da música-paráfrase (aquela que acompanha servilmente a imagem, que se limita a dobrar e a amplificar os efeitos visuais), o autor defende o conceito de música-ambiente: a música deve atuar como totalidade, deve participar discretamente na criação da tonalidade estética e dramática do filme. Tal discrição dramática e neutralidade afetiva são conseguidas sobretudo pela música clássica e pelo

jazz: a primeira porque é muito pouco lírica, pouco marcada por uma tonalidade exata

ou pouco comprometida na expressão de sentimentos; também o cool jazz apresenta a austeridade e objetividade requeridas a uma atmosfera afetiva independente da tonalidade psicológica e moral do filme.

O valor acrescentado pela música é descrito por Chion (2011) em termos dos efeitos emocionais. A música pode criar uma emoção específica, relativamente à situação mostrada, de duas formas: numa delas, a música exprime diretamente a sua participação na emoção da cena, dando o ritmo, o tom e o fraseado adaptados; trata-se de música empática; na outra forma, pelo contrário, a música manifesta uma

primeira sensação que o feto tem; como descreve o diretor e teórico de teatro Augusto Boal (2007), o feto não vê porque tem os olhos fechados (pelo menos durante o primeiro mês), não sente odores porque não respira, não tem gosto pois é alimentado pelo cordão umbilical, tem poucas sensações tácteis porque toca sempre o mesmo líquido amniótico. Assim, as primeiras sensações são acústicas: para além de sons externos, o feto ouve os próprios batimentos cardíacos e os da mãe, constituindo o ritmo base para integrar outros sons; escuta os ruídos gástricos e o sangue da mãe correndo nas veias como música melodiosa, o que faz da música a arte mais enraizada em nós.

45 Importa lembrar que para além de ser ouvida, e sentida de forma cenestésica (os baixos são sobretudo sentidos ao nível do abdómen), a música é percecionada essencialmente em termos de esquemas cinestésicos e gestuais.

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indiferença ostensiva em relação à situação, desenrolando-se de maneira igual, impávida e inexorável – música anempática; é sobre esse fundo de indiferença que se desenrola a cena, o que tem por efeito não a suspensão da emoção, mas o seu reforço, inscrevendo-o num fundo cósmico.

Para além de unir o espetador ao filme numa participação amável e lúdica, acrescenta Morin (2011), a música ascende à superfície racional do discurso: fruto da sua consanguinidade, a música e o cinema complementam-se, isto é, a música significa a imagem (anuncia o que a imagem não mostra ainda ou não mostraria nunca sozinha, desempenha o papel de subtítulo que nos dá o significado da imagem – meditação, recordação, sonho, desejo) e a imagem significa a música; a música do filme, linguagem inefável do sentimento, realiza-se como linguagem inteligível de signos.

Deleuze (2006) sublinha, ao nível do cinema moderno, o impacto do som na imagem visual: a autonomização do ato relativamente à palavra (que já acontecera com a música) torna a palavra uma imagem sonora e, consequentemente, a imagem visual torna-se arqueológica, estratificada, tectónica; deste modo, o cinema torna-se verdadeiramente audiovisual, um trabalho de divisão entre a imagem apresentacional e a voz representacional. Por exemplo, no The only son (1936) do precursor Yasujiro Ozu, assistimos à disjunção entre o acontecimento falado e a imagem fixa, vazia de acontecimentos; também o primeiro aspeto da obra de Jean-Marie Straub e de Danièle Huillet é extrair o ato da palavra pura, é extrair da representação um ato cinematográfico e arrancar do texto um ritmo e uma batida. Portanto, o que constitui a imagem audiovisual é uma dissociação do visual e do sonoro, cada um «héautonome», mas ao mesmo tempo uma relação incomensurável ou um irracional que os liga, sem formar um todo.

Em suma, já adolescente, o cinema incorpora em si próprio o som, ao mesmo tempo que promove a participação afetiva do espetador, incorporando-o no seu banho nutritivo. Se as palavras acentuam o potencial realista do cinema, elas também permitem dar realidade ao mito da voz interior e do além, constituindo-se como uma nova ferramenta de manipulação do tempo. Por sua vez, a música dá às imagens um ambiente, envolve-as numa atmosfera com um determinado ritmo, exaltando o dramatismo e o lirismo. Como consequência, a imagem liberta-se da função explicativa para se tornar essencialmente expressiva; surgindo sobretudo como contraponto e

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problematização da imagem, o som rapidamente se autonomiza, acrescentando uma nova face à imagem cinematográfica, a imagem sonora, e com isso o cinema torna-se audiovisual.