• Nenhum resultado encontrado

A imigração, a etnografia e a Análise de Discurso Crítica

Considerando que a imigração é uma rede complexa conforme explicado nos capítulos anteriores, dividirei a análise a seguir em três capítulos. O primeiro procura contextualizar a imigração no Brasil e também analisar trechos do Estatuto do Estrangeiro em relação a outros documentos e comentários da área de imigração e, particularmente, em relação à nova proposta da Lei do Estrangeiro. Esse primeiro capítulo (3) deve servir como base contextual para os outros passos da pesquisa em que as experiências de representantes do Estado e de imigrantes são consideradas. O segundo capítulo (4) focaliza as experiências e as vozes de representantes do Estado em análise de entrevistas realizadas com os mesmos. Com o intuito de revelar o espaço intersticial no discurso imigratório do Estado, este capítulo explora também o dia-a-dia dos agentes policiais que têm contato direto com imigrantes.

O terceiro capítulo (5) representa uma vertente distinta na pesquisa, pois aqui são apresentados pequenos relatos das experiências de imigrantes sem documentos na cidade de São Paulo e também de imigrantes documentados. Ainda, procuro aqui analisar trocas de experiências entre imigrantes que participam na Associação Nacional de Estrangeiros do Brasil (ANEIB). Esse capítulo procura considerar as vozes dos (as) imigrantes em relação às vozes do Estado. Além disso, mostra o espaço complexo de imigrantes, pois não representam um grupo homogêneo devido a fatores sociais e econômicos. A opção de divisão da análise em 3 capítulos decorre das questões principais da pesquisa:

1. Quais são as pressuposições, as nominalizações, as formas pronominais, as contradições, e outros elementos lingüístico-textuais que definem a política de imigração brasileira e os depoimentos de autoridades de imigração no Brasil? 2. Como se define a relação entre o discurso institucional e as experiências de imigrantes e de grupos relevantes da sociedade civil?

3. Como funcionam discursivamente a hegemonia e o poder em um país pós- colonial e plural em relação à imigração?

A análise dos dois primeiros capítulos se baseia na Análise de Discurso Crítica, com menção específica aos trabalhos de Fairclough (2003, 2000), Cillia & Reisigl & Wodak (1999) e Wodak & Meyer (orgs., 2001). Além disso, proponho desenvolver essa análise com referências à discussão sobre a ‘globalização’, o Estado-nação, a

hegemonia e o poder, conforme Bourdieu (2001), Fairclough, 2000 e Chouliaraki & Fairclough (1999).

O terceiro capítulo remete principalmente a estudos sobre a narrativa (ou relato no caso desta pesquisa) como argumento (ver Capítulo 2), pois são nos relatos em que se faz a crítica mais aguda ao sistema de imigração. São os relatos, como experiências humanas, que desafiam as práticas sociais e as desigualdades. Uma análise crítica com base na teoria social não é sempre convincente, certamente explica como o poder opera, mas não o desafia. A narrativa, em que as vozes dos(as) imigrantes são ouvidas, pode chegar a ser mais mobilizadora, é o contraponto ao discurso institucional (Scatamburlo-D’Annibale & Mclaren, 2003).

De fato, esta pesquisa surge de uma preocupação no tocante ao uso retórico da linguagem e a sua distância da realidade social. Desse modo, propõe investigar os vários contextos em que o discurso ocupa um espaço fundamental na compreensão da prática da imigração e dos (as) imigrantes. De certa forma, existem vários discursos em que são embutidas múltiplas relações. Fairclough observa:

Diferentes discursos representam diferentes perspectivas do mundo e são associados às diferentes relações que as pessoas têm com o mundo, dependentes das suas posições no mundo, das suas identidades sociais e pessoais e das suas relações sociais em relação a outras pessoas (2003: 124).

Portanto, o discurso burocrático-institucional da imigração baseia-se em uma prática na qual os(as) imigrantes são tidos como ‘processos a serem analisados’, os(as) imigrantes são aceitos uma vez que se enquadrem nas normas e nos critérios do Estatuto do Estrangeiro. O(a) imigrante é legitimado uma vez que seja bem apresentado no processo legal, ou que se comprove que tenha algum investimento financeiro ou científico a oferecer ao país.

Ao mesmo tempo, as histórias dos(as) imigrantes não coincidem com essa prática. Reclamam da burocracia, dependem de advogados ou da boa vontade de amigos para entender a linguagem jurídica ou para redigir alguma documentação, uma vez que eles/elas não detêm o mesmo conhecimento dos funcionários da imigração70.

70 Cabe destacar que o discurso institucional-burocrático possui ambivalências não apenas para estrangeiros, mas para os leigos em geral, como se nota nos trabalhos de Martin-Jones & Jones, (orgs. 2000), de Barton, Hamilton e Ivanic (orgs. 2000) e Sarangi & Slembrouck, 1999). Jones diz: reconhece-se que a burocratização da vida social tem conseqüências importantes nas relações sociais, pois essas relações são constituídas em sistemas burocráticos deslocados, ...aquelas pessoas empregadas por organizações burocráticas para atender ‘o público’ desempenham um papel significativo na negociação das dinâmicas das relações sociais, pois operam no ponto de encontro entre os sistemas burocráticos abstratos e os mundos locais (2000: 210).

Os (as) imigrantes com baixa escolaridade, os(as) costureiros(as) bolivianos(as) e outros grupos de imigrantes mais desprivilegiados vivem às margens da sociedade brasileira. Trabalham ilegalmente, são rotulados de ‘ilegais’, ‘sem documentos’, ‘não regularizados’. A sua visão do mundo, as suas experiências são distintas dos funcionários da imigração. Portanto, existe uma grande distância entre a burocracia da imigração e as experiências dos(as) imigrantes, como noto durante a observação de uma reunião do Conselho Nacional de Imigração, em que os processos mais complexos de estrangeiros(as) são analisados:

Foi uma experiência interessante – um pouco cansativa, um ingresso em um novo mundo, é um mundo distinto, não me identifico, identifico-me até certo ponto com alguns dos estrangeiros discutidos nos processos. Bom, foi interessante notar uma percepção que foi mais marcante, também devido ao comentário sussurrado de R. H. (Conselheiro da Divisão de Imigração da Itamaraty): é a separação entre o aspecto legal e a questão humanitária. Além disso, as vozes se tornaram mais claras: o mundo do estrangeiro é outro; particularmente o mundo dos estrangeiros sem documentos; não- regularizados - novo termo (nota de campo, 1/3/2005).

Desse modo, opõem-se os discursos e as vozes da imigração. Embora os funcionários do Estado tenham uma preocupação com os (as) imigrantes sem documentos, o seu trabalho principal é de manter os interesses do Estado: investimentos, proteção do mercado de trabalho, o bom tratamento do brasileiro no exterior (a reciprocidade), o desenvolvimento tecnológico do país. Para o(a) imigrante, a preocupação é construir uma vida melhor e resolver a sua situação legal.

Dessa forma, a imigração oscila entre dois mundos paralelos. Os funcionários da imigração legitimam a sua posição mediante a lei e o seu discurso institucional, culpam a ‘globalização’ e as pressões ou as forças econômicas do mercado, ora para justificar a proteção do mercado de trabalho, ora para não resolver a situação de imigrantes sem documentos (ver Capítulo 4). Os (as) imigrantes querem ser reconhecidos legalmente, sua preocupação é de construir o seu espaço, conseguir a sua aceitação legal no país.

De certa forma, o terreno comum entre os(as) imigrantes e o Estado é a ‘globalização’ e as questões econômicas do mercado: as mudanças na produção levam o(a) imigrante a sair de seu lugar de origem; ao mesmo tempo, o Estado procura proteger a mão-de-obra local, mas não consegue se fechar às forças do mercado e de produção: precisa de dois grupos de imigrantes: investidores/técnicos; e mão-de-obra barata. O primeiro grupo é aceito, porém o segundo grupo, embora necessário, não recebe o mesmo acolhimento. Desse modo, o discurso institucional se torna discriminatório, prestigia o valor econômico e/ou o conhecimento científico do(a)

imigrante: o poder e a diferença se sustentam no discurso (Wodak, in: Wodak & Meyer, orgs. 2001:11).