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Exemplo 3g: Artigos do Estatuto do Estrangeiro

Na primeira parte do trecho, há uma lista de critérios usados na aplicação da Lei, todos em forma de nominalizações qualificadas ou termos técnicos. Esses termos são listados, mas não explicados, porque pressupõe-se que todos entendem quais são os interesses políticos, socioeconômicos e culturais do país, mesmo que esses interesses sejam diferentes da época do regime militar. Dessa forma, há uma relação entre eles que é estabelecida por pressupostos de senso comum ideológico.

Além disso, faz-se referência ‘à defesa do trabalhador nacional’, pressupondo- se aqui pelo uso do termo ‘defesa’ que o(a) trabalhador(a) nacional pode sofrer alguma ameaça do(a) estrangeiro(a) ou do(a) imigrante. Não há comprovantes concretos de que o emprego de imigrantes mina o papel ou rouba o trabalho do(a) trabalhador(a) local. A propósito, Milesi comenta:

O migrante tornou-se um verdadeiro ‘bode expiatório’, sendo considerado o principal culpado por um conjunto de problemas que afetam a nossa sociedade, como a violência e o desemprego. Esta culpabilidade da vítima visa ideologicamente esconder as verdadeiras causas estruturais da exclusão social e, ao mesmo tempo, inculcar no próprio migrante um sentimento de frustração, e fracasso, de

Na aplicação desta Lei atender-se-á precipuamente à segurança nacional, à organização institucional, aos interesses políticos, sócio-econômicos e culturais do Brasil, bem assim à defesa do trabalhador nacional.

Art. 3º A concessão do visto, a sua prorrogação ou transformação ficarão sempre condicionadas aos interesses nacionais.

A imigração objetivará, primordialmente, propiciar mão-de-obra especializada aos vários setores da economia nacional, visando à Política Nacional de esenvolvimento em todos os aspectos e, em especial, ao aumento da produtividade, à assimilação de tecnologia e à captação de recursos para setores específicos. (Redação dada pela Lei nº 6.964, de 09/12/81)

Art. 17. Para obter visto permanente o estrangeiro deverá satisfazer, além dos requisitos referidos no artigo 5º, as exigências de caráter especial previstas nas normas de seleção de imigrantes estabelecidas pelo Conselho Nacional de Imigração.

Art. 130. O Poder Executivo fica autorizado a firmar acordos internacionais pelos quais, observado o princípio da reciprocidade de tratamento a brasileiros e respeitados a conveniência e os interesses nacionais, estabeleçam-se as condições para a concessão, gratuidade, isenção ou dispensa dos vistos estatuídos nesta Lei. (Renumerado pela Lei nº 6.964, de 09/12/81)

inferioridade que, não raramente, inibe seu potencial de resistência e reivindicação (In: Marinucci & Milesi, orgs. 2002: 3).

O argumento de Milesi sugere que a mera deslegitimação dos(as) trabalhadores(as) estrangeiros(as) não resolve os problemas causados pela exclusão social de segmentos da população. Parece que o(a) estrangeiro(a) termina sendo deslegitimado(a):

A deslegitimação é um contra-ponto essencial: outros (estrangeiros, ‘inimigos internos’, a oposição institucional, a oposição não oficial) precisam ser apresentados negativamente e as técnicas incluem o uso de idéias de diferença e fronteiras (Chilton & Schäffner, in: Van Dijk, 1997: 213).

A enumeração de critérios nominalizados deriva de um discurso hegemônico e nacionalista de exclusão, em que o(a) imigrante parece ser uma mercadoria a ser aceita ou rejeitada conforme os interesses do Estado. Na segunda parte do trecho (Art. 3), repete-se o uso de ‘interesses nacionais’; porém, novamente, esses interesses não são explicitados. Existem crenças ou pressupostos subjacentes em que o(a) estrangeiro(a) é visto de uma maneira negativa; de fato, esse é um pensamento que permeia as atitudes da Polícia Federal:

Em outras palavras, os significados implícitos são relacionados a crenças subjacentes, porém, não são aberta, direta, completa, ou precisamente asseverados devido a várias razões contextuais, inclusive o objetivo ideológico bem conhecido de não enfatizar nossas qualidades ruims e os pontos positivos deles (Van Dijk in: Wodak & Meyer, orgs. 2001: 104).

Na terceira parte, faz-se menção da mão-de-obra especializada, mas como ela é definida? Quais são os(as) imigrantes que se enquadram nessa definição? O quarto trecho refere-se às normas de seleção estabelecidas pelo Conselho Nacional de Imigração. Quais são essas normas? Não constam no formulário de pedido de permanência preenchido pelo(a) imigrante. Por que será que não constam? Será que o imigrante não precisa ter conhecimento dessas normas?

O Artigo 130 destaca a reciprocidade, mas o que ela significa73? De acordo com

as estatísticas (ver Figura 3.1 e o Exemplo 3p), a maior parte dos imigrantes ou da

73 Em um momento posterior da pesquisa, durante a observação da reunião do Conselho Nacional de Imigração, tornou-se evidente que a reciprocidade não é tão simples. Faço o seguinte comentário nas notas de campo de 21/3/05: Outro ponto que me ocorreu agora é que a reciprocidade parece ter como base a idéia de que em casos em que os brasileiros são bem tratados (por exemplo, aceitos legalmente em casamentos gay fora do Brasil; ou regularizados em Suriname, Guyana, Paraguai, entende-se que os outros devem ser bem tratados. A perspectiva foi um pouco diferente na entrevista com o representante

mão-de-obra especializada é oriunda da Europa e da América do Norte – será que essas regiões são receptivas aos brasileiros? Será que existe a verdadeira reciprocidade nesse caso?

Cabe destacar que as nominalizações dos artigos (‘mão-de-obra especializada’, ‘os interesses nacionais’, ‘as exigências de caráter especial’, ‘a segurança nacional’) em conjunto com a escolha das modalidades deônticas74 (‘objetivará’, ‘deverá’,

‘estabeleçam-se,’ ‘[uma vez] estabelecidas’, ’observado’) implicam a obrigação de seguir e cumprir os objetivos e os critérios do Estatuto do Estrangeiro e contribuem para legitimar e naturalizar os pressupostos subjacentes às leis: os(as) imigrantes são uma ameaça ao mercado de trabalho e uma ameaça à segurança nacional. Por ser ameaça, o(a) imigrante é visto(a) em termos negativos; pressupõe-se que apenas o(a) imigrante com uma qualificação especializada é bem-vindo(a), ou seja, a lei não é neutra, mas reconhece apenas aqueles(as) imigrantes que fazem parte dos ‘interesses’ econômicos e científicos do Estado. Desse modo, os pressupostos, junto com a modalidade dos processos verbais, impõem valores preestabelecidos; não existe um espaço para diálogo, as vozes são apagadas, o outro já foi pré-escolhido. Como resultado, o direito de acesso do(da) imigrante ao país é limitado, sujeito à hegemonia do Estado.

do Ministério da Justiça – o Brasil quer mostrar uma maneira diferente de lidar com a imigração – uma de tolerância, mas ao mesmo tempo, o representante afirma que a “imigração está sob controle”. Também, houve outra questão, a questão da reciprocidade e a emigração, o que acontece com brasileiros no exterior, uma espécie de princípio de ‘toma lá, dá cá’: Se não houvesse nenhum brasileiro no exterior, será que não haveria nenhum interesse em resolver questões da imigração? A reciprocidade cria a impressão de que o(a) estrangeiro(a) será bem recebido(a), apenas se o(a) brasileiro(a) é bem tratado(a) no país do primeiro.

74 A modalidade se refere ao modo em que o(a) autor(a) apresenta uma proposição na oração. Há dois tipos de modalidades principais: modalidades epistêmicas, que implicam probabilidade; e modalidades deônticas, que implicam necessidade ou obrigação (Fairclough, 2003: 219).

(Exemplos 3h e 3i: Depoimentos na página do Ministério da Justiça)

na internet e no jornal Valor Econômico)

Nos exemplos 3h e i repete-se aqui a preocupação com ‘o trabalhador nacional’ e a ameaça representada pelo(a) imigrante. Além disso, há uma contradição entre o primeiro depoimento e o segundo: o controle do fluxo de imigrantes e a intenção de remover da lei (o Estatuto do Estrangeiro) ‘qualquer elemento de xenofobia ou discriminação’. Os depoimentos aqui servem para realçar a ambivalência da política de imigração. Por um lado, existem pressupostos não esclarecidos, como assinalado no Exemplo 3a e, por outro, existem contradições no discurso institucional. Por que será que não há uma posição nítida e explícita? Será que a oscilação faz parte da luta entre a ‘globalização’ e os interesses hegemônicos?75 A interpretação aqui é ambígua, há duas leituras: abertura moderada aos estrangeiros, mas uma grande preocupação com os interesses nacionais e os cidadãos brasileiros, como se nota no forte conselho transmitido na modalidade forte ‘devemos’.

75 Dupas escreve: definimos o Estado hegemônico como aquele que é capaz de fazer um discurso – e exercer ações coerentes – que, embora beneficie principalmente a ele, possa ser reconhecido pela comunidade de Estados como de interesse de todos (2005: 143).

BRASÍLIA (20/02/03) – pub. Pelo MJ:

" Não temos um problema de imigração de grande fluxo. O que devemos fazer é continuar controlando os que chegam e querem trabalhar.O Ministério do Trabalho tem cumprido o seu papel", anunciou Luís Paulo

Barreto, que como representante do Ministério da Justiça presidiu a 1ª reunião do Conselho Nacional de Imigração. A Coordenadora de Imigração Interina, Hebe Teixeira, apresentou um balanço dos 500 vistos concedidos nos últimos dias.

O Ministério do Trabalho e Emprego espera evitar que o Brasil seja um depósito de excedente de mão-de-obra estrangeira proveniente de outros países. O objetivo do governo é permitir a entrada de estrangeiros que venham contribuir para o desenvolvimento tecnológico, científico, cultural, artístico e outras áreas de conhecimento. Mas não para ocupar postos de trabalho que já estão escassos no país, afirmou a Secretária-Executiva do Ministério do Trabalho e Emprego, Sandra Starling, que comandou a cerimônia de início dos trabalhos.

O novo projeto de lei, que vem sendo elaborado pelo diretor do departamento de estrangeiros do ministério da Justiça, Luiz Paulo Teles Barreto, deve propor que o imigrante, mesmo sem documentos tenha acesso à saúde e educação. "Vamos retirar da lei qualquer elemento de xenofobia ou discriminação, que são sentimentos que contrariam o nosso passado de país formado por imigrantes" (Valor Econômico, 2002).

Exemplo 3j: Texto com critérios explícitos do Ministério do Trabalho e