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A Implantação das Vilas e Cidades no Brasil Colonial

No documento Posturas do Recife Imperial (páginas 84-91)

A CÂMARA MUNICIPAL DO RECIFE CONSAGRANDO A MEMÓRIA PORTUGESA

2.1 O MUNICÍPIO NO BRASIL COLÔNIA

2.1.1 A Implantação das Vilas e Cidades no Brasil Colonial

O processo de colonização brasileiro promoveu, ao lado da criação das vilas e cidades, inicialmente, a divisão das imensas terras em Capitanias Hereditárias. Dois aspectos se distinguem nesse processo: a base institucional e jurídica que deu suporte ao desenvolvimento colonial e os padrões urbanísticos adotados na implantação das vilas.

No contexto da administração colonial, o município ou “termo” - território delimitado para o município – era a menor divisão administrativa do Brasil Colônia, dirigido por um órgão

colegiado – a Câmara Municipal, com suas funções político-administrativas, judiciais, fazendárias e de polícia. 150

No âmbito jurídico, dois instrumentos conferem, de início, suporte à ocupação e à colonização brasileira - as Cartas de Doação de Capitanias, pelas quais o território brasileiro era dividido em unidades administrativas, elementarmente organizadas e entregues a donatários para promover a ocupação, e os Forais das Capitanias, que figuravam como códigos tributários. Com o fracasso deste empreendimento, poucos anos depois, a autonomia das Capitanias foi substituída pela centralização administrativa do Governo Geral (1549).

Para implantação e administração das vilas, foram utilizados diplomas legais - os

Regimentos, as Cartas Régias e os Forais das vilas151 - todos subordinados às disposições das

Ordenações do Reino Português, em vigor, porém com algumas diretrizes específicas para a realidade brasileira. É através destes tipos de legislação, que se destinavam a complementar e a esclarecer alguns pontos omissos ou menos claros das Ordenações, que se podem perceber aspectos particulares do processo de urbanização e das morfologias urbanas brasileiras. Apenas nos locais com o estatuto de vila ou cidade152 poderiam instalar-se Câmaras Municipais, sendo

que, segundo G.SALGADO(1985), algumas receberam o título honorífico de Senado da Câmara,

embora tal título não as diferenciasse quanto às suas atribuições e competências administrativas153.

Em termos urbanísticos, a implantação das cidades no Brasil Colônia se deu em processos diferenciados. A organização espacial de pequenas cidades era de responsabilidade dos donatários, embora subordinadas aos termos das Cartas de Doação e dos Forais. Nos núcleos

150 Para um aprofundamento da questão do Município no Brasil Colônia ver: C.M.ALMEIDA (1870), C.LAXE

(1885), E.ZENHA (1948), R.FAORO(1975), G.SALGADO(1985), entre outros.

151 Os Regimentos eram uma sistematização de determinações, contidas nas Ordenações, relativas a uma

determinada atividade ou circunscrição territorial. As Cartas Régias eram determinações reais, dirigidas a autoridades incumbidas de tarefas específicas – Governadores, Capitães Generais, Ouvidores – ordenando a fundação de cidades e, por vezes, descrevendo as características urbanísticas e arquitetônicas que essas novas fundações deveriam obedecer. Os Forais destinados às vilas, à imagem da legislação do Reino, estabeleciam os direitos públicos dos Concelhos, bem como os foros e os tributos devidos. (L. DELGADO, 1974 )

152 Segundo J.A.G.MELLO (1981, p. 255), baseado na “Informação Geral da Capitania de Pernambuco” (p. 235),

atribuía-se a categoria de “vila” àqueles núcleos urbanos que se situavam em território pertencente a donatário e não à Coroa. Foi o caso de Olinda (1537), e, posteriormente, Recife (1710). Todas as cidades que, antes de 1709, houve no Brasil, foram de fundação oficial em territórios da Coroa: Salvador (1549), Rio de Janeiro (1565), São Luiz (1612) e Belém (1616).

153 Isto levava a que, muitas vezes, houvesse referência à Câmara como Senado, a exemplo de F.A .P.COSTA

de menor expressão, essa organização era, muitas vezes, deixada aos cuidados dos próprios habitantes portugueses, daí resultando, em muitos casos, núcleos urbanos com traçados irregulares, onde os modelos de referência remetiam à cidade portuguesa medieval, que esses habitantes conheciam através de sua própria experiência de vida. Em cada sítio, tais conhecimentos eram adaptados às condições locais. Sem a promoção direta da Coroa portuguesa, os conjuntos urbanos de menor dimensão, tinham à frente de sua urbanização as respectivas autoridades municipais, as que se apoiavam em mestres ou arruadores. Mesmo quando planejadas de início, segundo uma estrutura regular, como muitas vezes ocorria nas cidades a cargo dos donatários, os modelos de referência eram os traçados regulares das cidades medievais planejadas, não eram as cidades renascentistas, apesar da incorporação de alguns princípios da Renascença italiana no urbanismo português.154

Para M. TEIXEIRA. & M. VALLA (1999), a especificidade do urbanismo português reside,

em muitos de seus aspectos, na síntese de duas concepções de espaço:

x de um lado, a cultura mediterrânea grega (que mais tarde se expressa através da cultura

muçulmana, ela própria herdeira da tradição do mundo mediterrânico), associada a uma cultura tradicional e vernácula, que resulta em modelos de cidade que tendem a ser menos regulares, estruturados fundamentalmente a partir das funções e edifícios singulares – sejam de natureza cívica ou religiosa – situados em locais proeminentes da malha urbana; e,

x de outro lado, a cultura romana, mais tarde reafirmada e consolidada nas culturas

renascentistas e iluministas, associada a uma cultura erudita do poder, que resulta em modelos de cidade que tendem a ter um traçado mais regular e planejado, concebido a partir de uma ordem geométrica pré-definida.

A dualidade que resulta de tal síntese vai, também, se expressar nas cidades coloniais portuguesas, inclusive aquelas implantadas no Brasil, ao contrário das cidades coloniais espanholas que adotam como referência a quadrícula romana, sistematicamente aplicada155.

A análise que N.G.REIS Fº(1968, p. 16) faz da evolução das cidades coloniais no Brasil

segue nessa mesma direção, contrapondo-se a autores que situam a formação e evolução

154Tais afirmações se baseiam em M. TEIXEIRA. & M. VALLA (1999), que desenvolveram um estudo que busca

as bases urbanísticas de tradição portuguesa em cidades brasileiras.

155 M. MARX (1991) afirma que não houve uma “codificação colonial portuguesa”, que referenciasse o desenho das

cidades brasileiras, como o tiveram as cidades coloniais espanholas, respaldadas pela “Recopilación de lãs leys de los reynos de Índias”, que continha um modelo urbanístico a ser empregado e repetido obrigatoriamente.

urbana como obras do acaso. Segundo ele, a regularidade com que certos elementos se repetem nas vilas e cidades brasileiras, em condições determinadas, exige, pelo menos, que se abandone a idéia de um fenômeno aleatório e força a aceitação de alguns condicionamentos:

“a) o condicionamento do traçado impunha-se através de uma tradição, que estaria ou não presente na consciência de todos os indivíduos;

b) o condicionamento do traçado alcançava-se através de um plano, que o indivíduo ou conjunto de indivíduos tenderia a impor à comunidade;

c) o condicionamento do traçado impunha-se através de uma conjugação das duas alternativas anteriores, o que nos colocaria, finalmente, a necessidade de compreender até que ponto um plano é inferido pelas condições da realidade e até que ponto a comunidade conseguiria cumprir sua tradição sem ter um plano válido coletivamente consciente.”

Essa questão, levantada por Reis, é de grande importância, uma vez que se encontra nas cidades do Brasil Colônia essas três alternativas. Aquelas mais importantes eram promovidas diretamente pelo poder real e beneficiavam-se de um plano e do apoio de engenheiros militares para seu traçado156, os quais desempenharam papel proeminente nesse processo, bem como no

planejamento das cidades coloniais, a partir do XVI. Como a construção de fortificações se impunha como uma condição necessária no momento da fundação dessas cidades, esses engenheiros encontravam-se naturalmente envolvidos em ambas as tarefas. Mesmo porque, o ideário urbanista renascentista associava, quer conceitualmente, quer no plano físico, o perímetro fortificado da cidade com o seu traçado interior.

A fundação de cidades, enquanto componente essencial do empreendimento colonial, bem como a premência de defesa do território conquistado, justificavam para o reino português que as atividades desses profissionais, bem como a sua formação fossem coordenadas de perto pela Coroa, o que reforçava, ainda mais, o prestígio por eles desfrutado. Envolvidos com a construção de fortalezas e de fortes, como também de edifícios públicos e edifícios religiosos, a atuação de engenheiros militares foi de grande importância para a estruturação das cidades brasileiras157.

156 Não só M. TEIXEIRA. & M. VALLA (1999), como também H. CARITA (1999), destacam que, a partir do século

XVI e do reinado de D. Manuel I, o urbanismo português incorporou os princípios renascentistas Os construtores das cidades – arquitetos e engenheiros militares - através de sua formação teórica, se beneficiavam da rica experiência científica e dos conhecimentos profundos desenvolvidos, na época, pelos matemáticos e cosmógrafos envolvidos no empreendimento das descobertas marítimas.

157 N.REIS F.º (1968, p. 69) cita que, provavelmente em 1603, chega ao Brasil Francisco Frias Mesquita, que,

como Engenheiro-Mor do Brasil, aqui ficou até 1635, sendo responsável pelos projetos do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, o Forte dos Reis Magos de Natal e, provavelmente, o traçado de São Luiz do Maranhão.

Através desses profissionais, a tradição urbanística portuguesa foi transmitida para as cidades coloniais cuja fundação foi promovida diretamente pela Coroa portuguesa, entre as quais M.TEIXEIRA. & M.VALLA(1999) destacam Salvador, Rio de Janeiro, São Luiz. A respeito

destas cidades, P.SANTOS (1968, P.41) considera que a regularidade que elas apresentam é

relativa, sem a monótona repetição das quadrículas que se vêem nas cidades de colonização hispânica. Para ele, a organicidade do traçado de São Luiz, por exemplo, é de

“um sabor de modernidade a que o homem dos dias presentes não pode ser insensível, e assume um sentido de superior plasticidade urbanística, comparando-se com o convencionalismo das traças de Buenos Aires e Santiago do Chile.”

Em algumas cidades brasileiras encontram-se expressas as preocupações com a regularidade do traçado da nova cidade, que se devia estruturar de modo organizado e planejado, “conformando vos com as traças e amostras que levais” 158, segundo estava disposto no Regimento de D. João III entregue a Tomé de Souza, (em 1548), para a fundação da cidade de

Salvador, na Bahia.

A construção da cidadela ou do núcleo urbano no cume do monte, por exemplo, era uma característica fundamental das cidades portuguesas – Lisboa, Porto e Coimbra - que se iriam repetir em muitas das cidades do Brasil. Na cidade de Salvador, na Bahia, na cidade de Olinda, em Pernambuco, bem como em outras cidades brasileiras, M. TEIXEIRA. & M.VALLA

(1999) reconhecem os elementos-chave das estruturas urbanas portuguesas, que constituíam seus modelos de referência. Sempre que possível, e por motivos de defesa, os novos núcleos urbanos eram construídos no topo das colinas e bem adaptados à topografia do terreno. Nas cidades marítimas, a parte baixa era reservada para as atividades portuárias, que, no caso de Olinda, deu origem ao povoado do Recife.

Com respeito à constituição da paisagem urbana das cidades brasileiras, M.MARX (1991)

destaca a importância do papel desempenhado pela Igreja. Segundo ele, dois fatores concorreram para isso: de um lado, a generalidade das ordenações do reino quanto às normas relativas ao ordenamento urbano - ao traçado, à relação entre volumes e vazios, etc.; e, de outro, a clareza das normas e procedimentos eclesiásticos estabelecidos, referentes ao desenho urbano. Estas normas, por sua vez, não se contrapunham aos instrumentos do reino e, ainda, eram aceitas e incorporadas pelo governo da metrópole. Já as ordenações do reino português,

158 Citação apresentada por M. TEIXEIRA. & M. VALLA (1999, p. 218), extraída de Américo Simas Filho

apesar de serem generalistas, quanto às questões morfológicas das cidades, influíram na feição urbana através do regulamento da concessão de terras e da estruturação da gestão das vilas através das Câmaras Municipais.

Embora a expansão municipalista no Brasil tenha sido, de certo modo, restringida pela idéia centralizadora das Capitanias, as Câmaras Municipais tiveram inegável influência na organização política brasileira, assumindo relevantes atribuições de governo, de administração e de justiça. Desempenharam, também, um papel determinante na fundação e no ordenamento das cidades. Distribuíam terras, realizavam obras públicas, estabeleciam posturas, fixavam taxas, julgavam injúrias verbais, entre outras ações.

A repartição de terras era realizada em forma de “sesmarias”159 - concessão de terras feita

mediante o pagamento de um foro - que, na maioria das vezes, era muito oneroso, além de exigir a efetiva ocupação da terra em prazo determinado, sob pena de perder o direito à ocupação. Essa repartição das terras, feita pela Câmara Municipal, compreendia a parte propriamente urbana, sob forma de lotes, e as áreas extra muros, sob forma de pequenas sesmarias que iriam dar origem à formação das chácaras. Esta distribuição estava subordinada às disposições do reino, especificamente às do livro IV das Ordenações Manuelinas.

Através de diversas posturas, as Câmaras Municipais procuravam regular o desenvolvimento e o aspecto da cidade. E, apesar da generalidade com que as Ordenações do reino tratavam as matérias das posturas municipais, estas se apresentam com fortes semelhanças em ambos os municípios – portugueses e brasileiros – o que expressa uma transmissão de cultura efetivada através de processos que estão além das especificações dos instrumentos legais, propriamente ditos. Os costumes e a experiência vivida pelos portugueses que aqui chegaram para ocupar e gerir o Brasil foram um fator de extrema relevância para a transmissão da sua cultura.

A tradição portuguesa se faz, então, sentir, na maioria das cidades brasileiras, fundadas no período colonial, através de três aspectos fundamentais:

159 O Capítulo 3 – Item 3.1, apresenta uma abordagem sintética sobre o processo de regulamentação das terras

x os princípios urbanísticos desenvolvidos em Portugal, desde o século XVI, e adotados no

Brasil, quer na fundação de algumas cidades, quer na gestão da expansão e do desenvolvimento de outras, como o Recife, por exemplo;

x a base institucional de gestão urbana, com a figura do município e da Câmara Municipal; e x as normas disciplinadoras da expansão e da vida das cidades – as posturas municipais - que

se constituem instrumento de gestão que consagram princípios urbanísticos desenvolvidos na metrópole, porém, com medidas adaptadas, requeridas em face das peculiaridades locais.

Para a constituição de um Município no Brasil Colônia se faziam necessárias determinadas providências160:

x a definição do termo – território do novo município e a definição de seus limites com outros

municípios mais antigos dos quais o novo estava sendo desmembrado, indicando que terras, que arraiais, além da nova sede municipal, iriam fazer parte do mesmo;

x a importante definição da gleba que pertenceria ao novo município como terra pública, ou

seja, o seu rossio, cujo fruto ou usufruto, de acordo com a orientação dos vereadores, iria redundar neste ou naquele desenho e traçado da cidade, à medida que sua expansão se desse;

x a constituição de uma administração provisória até a primeira eleição para a Câmara;

x a cerimônia acompanhada por autoridade especialmente designada de determinação dos

terrenos para a construção da Casa da Câmara e Cadeia e de erguimento do símbolo da autonomia municipal – o pelourinho.

A política urbanizadora da Coroa portuguesa, que vigorou até meados do século XVII, como uma parcela de uma política mais ampla de descentralização, concentrava atenção e recursos nos núcleos maiores e fez com que as responsabilidades da urbanização dos centros urbanos menores coubessem, quase inteiramente, aos donatários e aos próprios colonos. Por outro lado, fazia com que coubesse às Câmaras, como órgãos locais de administração, a totalidade ou a quase totalidade das tarefas de controle dos mecanismos do crescimento urbano. Mecanismos estes que, em fins do século XVII, conservam-se, em seus fundamentos, como aqueles herdados da organização municipal portuguesa.

Em meados do século XVII, alguns fatores contribuem para transformação das bases do processo de colonização e do sistema social da colônia: o fim da União Ibérica, levando a importantes perdas para a Coroa Portuguesa nas regiões orientais de seu império ultramarino; a

queda nos preços do açúcar e a divergência instalada entre os interesses dos proprietários rurais e os da Metrópole; e o interesse no incremento das atividades mineradoras como principal fonte de recursos para o Estado luso. Torna-se, então, necessário, por parte da Coroa, um controle mais direto da vida colonial e, como conseqüência, da urbanização correspondente161.

Desenvolveu-se, aos poucos, uma política de controle sobre as transformações espaciais dos centros urbanos e procurou-se conferir monumentalidade aos edifícios públicos. Como destaca N.G.REISF.º (1968), organizaram-se novos quadros técnicos para o atendimento dessas

exigências com a Fundação das “Aulas de Arquitetura Militar”. A arquitetura civil, como a religiosa, reflete propensões semelhantes, comuns em centros urbanos maiores, assumindo, quando possível, características monumentais.

Essa nova complexidade da vida colonial implicou a diversidade dos grupos sociais urbanos e foi facilitada pela existência de capacidade ociosa de mão-de-obra escrava, que é transferida das lavouras para as construções. No caso de Pernambuco, desde a restauração do domínio português, após a expulsão dos holandeses, a Coroa passou a administrar a Capitania, afastando a ingerência do Donatário. Neste contexto o Recife se transforma em vila e instala a sua Câmara Municipal, que participa, a partir de meados do século XVIII, do reforço da tendência centralizadora da Coroa Portuguesa162, com impacto ainda maior de restrição à

expansão municipalista. O aguçamento da crise econômica na sociedade lusa e o declínio das rendas geradas pelas principais atividades econômicas da Colônia, especialmente a mineração, levam à crise o próprio regime colonial.

No documento Posturas do Recife Imperial (páginas 84-91)

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