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O Disciplinamento das “Terras de Marinha”

No documento Posturas do Recife Imperial (páginas 137-141)

AS POSTURAS MUNICIPAIS DO RECIFE INTEGRANDO A LEGISLAÇÃO URBANA IMPERIAL

3.1 A LEGISLAÇÃO IMPERIAL REGULAMENTANDO A TERRA URBANA Os instrumentos legais estabelecidos, ao longo do século XIX, para regulamentar as

3.1.1 O Disciplinamento das “Terras de Marinha”

Até o início do século XIX, a titularidade sobre a terra das cidades brasileiras era concedida por sesmarias260 - instituto jurídico de apropriação de terras expresso por “termos” da

Câmara Municipal, a qual representava o poder público e administrava o patrimônio da Coroa Portuguesa. Seguia os mesmos critérios261 da doação de terras por “sesmarias” para produção

agrícola, o que significa que aquele que requeria, à Câmara Municipal, a posse da terra na cidade tinha a obrigação de construir, num período determinado (cinco anos), caso contrário, seria

260 Ao introduzir na Colônia o sistema donatarial, D. João III determinou aos capitães que dessem terras de

sesmarias “na forma que tem na minha Ordenação”. Por sua vez, as Ordenações Filipinas definiam as sesmarias como “as dadas de terras, casais ou pardieiros que foram ou são de alguns senhorios e que já em outro tempo foram lavradas e aproveitadas e agora o não são.” (C. PORTO, 1980 p. 30).

Inicialmente implantadas no Brasil para terras de produção agrícola, as “sesmarias” são doações de terras feitas pelos Donatários das Capitanias e pelos Governadores Gerais, no período colonial, em regime de “uso fruto” , que implica a contrapartida do sesmeiro (adquirente das sesmarias), ou seja, o retorno para o doador das terras da sexta parte dos frutos das terras doadas, chamadas sesmas. (R. C. LIMA, 1988).

261 A doação das “sesmarias” implicava o cumprimento de condições que, não satisfeitas, tornavam sem efeito a

concessão das terras. Era exigido: o aproveitamento da gleba em prazo determinado, o registro da carta ou “termos”, o pedido de confirmação ao Rei, o pagamento do “foro” (nos casos em que a dada das terras assim o

obrigado a restituí-la. Vigora, desse modo, a idéia de um domínio relativo do ocupante sobre a terra.

As terras de praia, de margem, de beira-mar, de mangue e de maré, posteriormente, denominadas “terras de marinha”, não interessavam, no início da colonização, por ser o solo vizinho do mar, alagadiço, coberto pela maré, imprestável para agricultura e que exigia serviços pesados de aterro, de drenagem e de consolidação, no caso de utilizá-lo para construção. Por esta razão, a primeira notícia que se tem desse instituto em terras brasileiras, data de meados do século XVII, quando o Governador do Rio de Janeiro, em 1646, autorizado pela Coroa Portuguesa, propôs à Câmara Municipal a venda dos chãos de praia, com ou sem foro, sendo a proposta atendida262.

Pela solicitação do Governador à Câmara Municipal, ficou expresso que tais terrenos fossem chamados de “marinha” da cidade e eram reconhecidos como de domínio público (propriedade do Município). Por outro lado, o processo proposto de alienação das terras através da constituição do aforamento 263, estabelecia que tal alienação se dava, unicamente,

em relação ao domínio útil, conservando ao Estado o domínio direto das terras.

Decorridos pouco mais de trinta anos, iniciaram-se as disposições do reino sobre os “terrenos de marinha”. Em 1678, uma Carta Régia dispunha que os mangues eram de regalia da Coroa, por serem necessários para o povo, os engenhos e os navios 264. Já no século XVIII,

outra Carta Régia de 1710 estabelece que as sesmarias nunca deveriam compreender as marinhas, para preservá-las para serviço do Rei e defesa da terra265. Quinze anos depois, a Carta

Régia de 1725 impede edificações em marinhas266.

requeresse) , a medição e a demarcação. Não cumprindo qualquer uma dessas exigências, a doação se tornaria sem efeito e as terras deveriam ser devolvidas, nascendo daí o termo “devolutas”.

262 Estas informações foram extraídas do documento: “Razões Finaes Offerecidas perante o Supremo Tribunal Federal

sobre a Questão dos Terrenos de Marinha”, de 1904, citado por V. CAMPOS (1980 p.2)

263 “Aforamento” é a concessão do domínio útil do solo ao ocupante, mediante o pagamento à União (detentora

da propriedade da terra) de uma taxa anual (o “foro”), em regime de “enfiteuse”, que dissocia o regime jurídico (cedido ao aforante) e o domínio político (reservado à União). O instituto do aforamento é utilizado em terras sujeitas a senhorio, em que só se aliena o domínio útil do solo, preservando-se o domínio direto ao proprietário das terras.

264 Carta Régia de 4.12.1678: “... esses mangues erão de Minha regalia, por nascerem em salgado, onde só chega o mar e

com a enchente, e serem muito necessários para a conservação desse povo, engenhos e navios”. Citado por V. CAMPOS

(1980 p. 4)

265 Carta Régia de 21.10.1710: “...as sesmarias nunca devião comprehende a marinha, que sempre deve estar desempedida

para qualquer incidente do Meu serviço e defensa da terrar”. Citado por V. CAMPOS (1980 p. 4)

266 Carta Régia de 7.05.1725: “... impedir semelhantes edifícios nas marinhas, por serem livres para o Meu serviço e uso

Uma série de diplomas legais se segue disciplinando o assunto, cuja razão básica consiste na necessidade enfrentada pela Coroa Portuguesa de prover a defesa da vasta costa brasileira, alvo constante de incursões de corsários e de invasões estrangeiras. O instituto jurídico dos “terrenos de marinha” 267 fica definido expressamente, pouco anos antes da independência do

Brasil, através do Aviso de 18 de Novembro de 1818, do modo a seguir:

“...Tudo que toca a água do mar e acresce sobre ella é da Coroa, na forma da Ordenação do Reino; e que da linha d’água para dentro sempre são reservadas 15 (quinze) braças pela borda do mar para serviço público, nem entrão em propriedade alguma dos confinantes com a marinha, e tudo quanto allegarem para se apropriar do terreno é abuso e inattendivel; pois que, se pode haver posses de uns vizinhos para outros, nunca a pode haver contra a Coroa, que tem o domínio e a sua intenção declarada em Lei”.268

Após a instalação do Brasil Império, é mantida a legislação colonial naquilo que não conflitasse com a soberania do novo Estado. Nesse sentido, a Lei Orçamentária de 15 de Novembro de 1831 (art. 51, § § 14 e 15) dispõe sobre os “terrenos de marinha”, incorporando ao patrimônio nacional todas as terras da costa brasileira inundadas pela preamar média daquele ano. Consolida, assim, o instituto no direito brasileiro e passa a se constituir o marco inicial para a perfeita delimitação dos referidos terrenos. As Instruções publicadas pelo governo imperial, sob o n.º 348, de 14 de Novembro de 1832269, normatiza a demarcação das referidas

áreas e, posteriormente, o Decreto n.º 4.105, de 22 de Fevereiro de 1868, regulamenta a matéria em toda a sua abrangência, dispondo em seu art. 1º, § 1º:

“São terrenos de marinha todos os que, banhados pelas águas do mar ou dos rios navegáveis, vão até a distância de 15 braças craveiras (33 metros) para a parte da terra, contados desde o ponto a que chega o preamar médio. Este ponto refere-se ao estado do lugar no tempo da execução da lei de 15 de novembro de 1831, art. 51, § 14. (Instruções de 14 de Novembro de 1832, art. 4º)”.270

Conforme as Instruções do Império de n.º 348 de 1832, fica estabelecido que o Inspetor das Obras Públicas deveria fazer reconhecer, medir e demarcar os “terrenos de marinhas”

267 Virgílio CAMPOS (1980), em Parecer sobre o assunto, considera os “Terrenos de Marinha” como “categoria impar

de bens imóveis”. Segundo ele, constituem criação singular do Direito Público Brasileiro, uma vez que nenhuma legislação estrangeira contempla instituto idêntico ou semelhante. Nem mesmo Portugal, fonte da legislação colonial que lhe deu origem, o conhece ou conheceu em seu disciplinamento jurídico interno. (V.CAMPOS,

1980 p. 2)

268 Citado por V.CAMPOS, 1980 p. 5

269 Instrucções para reconhecimento, medição e demarcação dos terrenos de marinhas.n.º 348 de 14.11.1832 (art. 4º): “Hão de considerar-se terrenos de marinhas todos os que, banhados pelas águas do mar, ou dos rios

navegáveis, vão até a distância de 15 braças craveiras para a parte da terra, contadas estas desde os pontos que chega o preamar médio”. Colleção das Decisões do Governo do Império do Brasil. 1832, p. 342-343.

270 Citado por V.CAMPOS, 1980 p. 6, que também afirma que toda a legislação sobre “terrenos de marinha” que

compreendidos nos termos da cidade (art.1º), ficando a Câmara Municipal incumbida de fornecer ao Inspetor as confrontações dos terrenos reservados para logradouros públicos, além dos títulos das concessões feitas aos particulares, bem como os requerimentos dos novos pretendentes (art. 2º). À medida que fossem feitas as medições e demarcações dos terrenos ocupados ou pedidos para este fim, seria feita a respectiva avaliação (art. 9º), com a finalidade de estabelecimento da taxa do foro, que seria estipulada à razão de 2 ½ % sobre os preços das avaliações feitas, devendo esta taxa ser imposta pelo Fiscal da Thesouraria da Província aos “enphiteutas” (art. 11). Os terrenos aforados teriam, a partir dessa demarcação, marcos numerados, sendo registrados em livro próprio os termos resultantes das medições e demarcações, com as precisas declarações e o despacho do Presidente do Thesouro, a quem competia emitir os títulos (art. 12). Dirigidas para a cidade do Rio de Janeiro, sede do Império, essas Instruções tornam-se extensivas às demais vilas e cidades litorâneas do país (art. 15).271

A delimitação das “terras de marinha”, bem como a regularização de sua posse, não é feita de imediato, após as Instruções do Império de n.º 348 de 1832, como, também, não é realizada de forma regular, nem mesmo eficiente. A infra-estrutura institucional precária dificulta, não apenas o delineamento preciso das terras, como a sua medição e confirmação. O próprio registro de terras se processa com a participação das entidades religiosas que assumem o papel hoje desempenhado pelos cartórios de registro de imóveis. A desordem criada nesse setor administrativo, pelo regime das posses, abandonado à livre iniciativa dos povoadores, é, de certa forma, remediada pela instituição do registro paroquial de terras, que, mesmo não possuindo função cadastral, adquire uma importância expressiva como órgão de informação e estatística272. Além disso, mudam as relações de domínio da Câmara Municipal com a terra que,

até então, lhe pertencia como terra pública – o seu rossio.273

Durante mais de um século, os “Terrenos de Marinha”, que tiveram regulamentação especial, tornam-se motivo de controvérsia entre Municípios e Governo Imperial e,

271 Esta disposição sugere que no Rio de janeiro, à época da elaboração desse instrumento normativo, já haviam

pedidos de aforamento concedidos pela Câmara Municipal, como se tem notícia desde o final do século XVII. No caso do Recife, não foram encontrados estudos que indiquem, com precisão, o início da ocupação formal dos “Terrenos de Marinha”, mediante pedidos de aforamento, evidenciando a necessidade de um estudo aprofundado que recupere esse processo para a história da cidade.

272 Murillo MARX (1991) analisa a importância da Igreja no processo de estruturação das cidades brasileiras. 273 Como se constatou no capítulo 2 – item 2.1.2 – deste trabalho, a Câmara do Recife cobrava foro das terras de

posteriormente, da União, em torno do domínio das terras, para efeito alienação274. As normas

que disciplinam as “terras de marinha”, nas primeiras décadas do regime imperial brasileiro, se somam àquelas que passam a regulamentar a titularidade da terra no Brasil, após a metade do século XIX, consolidando o aparato legal do processo de ocupação e de expansão das cidades costeiras275.

No documento Posturas do Recife Imperial (páginas 137-141)

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