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O Movimento Codificador no Século

No documento Posturas do Recife Imperial (páginas 120-126)

A CÂMARA MUNICIPAL DO RECIFE CONSAGRANDO A MEMÓRIA PORTUGESA

2.3 OS MOVIMENTOS DE CONSTITUIÇÃO DO BRASIL NAÇÃO

2.3.2 O Movimento Codificador no Século

Iniciado na França, com o Código de Napoleão (1804), o movimento de codificação das leis se instala em meio a uma grande polêmica acerca do direito232. Tem, por sua vez, uma

repercussão significativa no Brasil, que se encontra em processo de constituição da Nação, sendo, também, expressivo em Portugal. Um aspecto importante a destacar é a semelhança do processo instalado simultaneamente nos dois países, seja no aspecto da delegação de poderes às Câmaras Municipais, seja no processo de codificação das posturas municipais, que ambos os países iniciam.

A garantia dos direitos individuais, assentados na organização política, constituía-se a base da delimitação de poder, consagrada no Código de Napoleão e nas Constituições dos países que o adotaram como modelo. Nesse sentido, a Revolução Francesa, que inaugurou as mudanças políticas do século XVIII, representou um marco divisório no exercício do direito. Instaurou uma forma escrita e solene – adequada à mentalidade da época – de exercício do direito, em contraposição àquela regida pela tradição e exercida por uma assembléia de homens

bons (mesmo quando representados através de vereadores). Um direito que se transmitia através

dos costumes e se refletia na vivência geral.

x A Codificação das Leis Portuguesas

Sob a influência dos legisladores franceses, Portugal inicia a elaboração de um código civil, a cargo de uma comissão nomeada por D.Maria I, ainda em finais do século XVIII. Contudo, esse processo foi interrompido, devido ao período de turbulência política que o país vivenciou, que culminou com a transferência da família real para o Brasil, em 1808, seguida da ocupação napoleônica.

Após o retorno da família real, em 1821, em face da revolução liberal portuguesa de 1820, é promulgada a Constituição Portuguesa de 1822, que dedica um de seus títulos ao

governo administrativo e econômico, regulando a competência dos Administradores Gerais e as

231Para uma análise aprofundada desses conflitos, ver A. LEAL (1915), M.O.LIMA (1989), G.L.LEITE (1987),

B.LIMASOBRINHO (1985 e 1998) , I.A. MARZON (1987), e outros.

232 Foge ao âmbito deste trabalho aprofundar a polêmica acerca do direito, que o movimento de codificação das

atribuições das Câmaras (arts. 216 e 223), concedendo grande liberdade a esses Concelhos, no governo municipal econômico e lhe atribuindo a competência de fazer posturas ou leis municipais (art. 223, inciso I).

Uma seqüência de leis e decretos posteriores passa a regulamentar a atuação das Câmaras, reduzindo paulatinamente a sua autonomia. A nova Carta Constitucional de 29 de Abril de 1826, bem como o Decreto de 16 de Maio de 1832, o qual especificamente regulamenta o exercício das funções municipais, definem nova organização administrativa, pautada no sistema francês e na excessiva centralização, constituindo-se o primeiro golpe contra as liberdades municipais. Posteriormente, o Decreto de 7 de Maio de 1834, que passa a vigorar em todo o território, expressa a redução da competência das Câmaras em matéria de posturas:

“Fazer com a sanção do provedor e nos limites da lei, posturas para o bom regimento da terra, as quais não terão efeito sem a confirmação do prefeito que a não concederá quando contrariarem o bem geral” (art. 28, inciso 11).233

Este mesmo decreto de 1834 estabelece uma separação de poderes entregando a execução das deliberações das Câmaras ao provedor municipal (art. 27). Sem executarem suas próprias deliberações, as Câmaras ficaram com sua atuação reduzida e os reais interesses dos

concelhos foram relegados ao segundo plano, a fim de dar lugar aos interesses dos partidos

políticos.

Impondo à Nação um sistema que vinha contrariar as antigas liberdades municipais, essa experiência centralizadora levantou em toda parte protestos que se converteram em movimentos de rebeldia. Deste estado de espírito aproveitaram-se aqueles partidários da Constituição de 1822 – os setentristas – que se colocavam como adversários da Carta Constitucional de 1826, fazendo brotar o movimento revolucionário conhecido como

Setentrismo. Os setentristas inseriam no seu programa uma ampla reforma administrativa, inspirada

nos ideais democráticos, em que se resguardava a liberdade dos concelhos. Assumindo o Governo, procuraram por em prática o plano liberal, que se expressa no Código Administrativo de 1836 e no Decreto de 18 de Novembro do mesmo ano, os quais abrem uma nova perspectiva para o direito municipal.

As reformas administrativas, produzindo sucessivamente vários sistemas de organização e competência dos órgãos locais, criaram uma jurisdição complexa que, também, atingiu a

matéria das posturas. Entre os Códigos Administrativos de 1832 e 1836, surge uma seqüência de atos234, que versam sobre a divisão do território, sobre a organização administrativa e sobre

posturas propriamente.

O Decreto de 18 de Novembro de 1836, publicado pouco antes do Código Administrativo do mesmo ano, teve uma importância decisiva na história das posturas portuguesas, ordenando a sua codificação e reforma235, representando não apenas o início legal

de todos os códigos de posturas, mas, também, o início da codificação do direito administrativo e do saneamento legislativo por que passou todo o direito português. Os códigos passaram a ser concebidos segundo doutrinas e tendências diversas, conferindo aos órgãos locais faculdades mais ou menos extensas, de acordo com a tendência menos ou mais centralizadora que esses códigos apresentassem.

Foi no meio de grande atividade jurídica, entre discussões de teóricos, disputa política, projetos, relatórios, artigos da imprensa que, por todos os concelhos de Portugal, começaram a ser

codificadas as posturas, conforme a determinação do Decreto de 18 de Novembro de 1836.

Segundo F.P.LANGHANS (1937), muitos códigos, nos preâmbulos ou nas atas das sessões das

Câmaras, citando expressamente ou aludindo ao seu espírito, referem-se ao Decreto. Essas coleções sistematizadas de posturas acompanham o ritmo do movimento codificador, que se estendia, progressivamente, a todos os ramos do direito.

O Código Administrativo de 1836 enumera as atribuições das Câmaras Municipais, não especificando os assuntos em relação às posturas. Contudo, o seu artigo 82 especifica as atribuições das referidas Câmaras, das quais algumas se revestem de caráter preventivo, referindo-se à segurança, à tranqüilidade e à higiene, reduzindo, praticamente, a esfera da atividade normativa policial das Câmaras ao setor de polícia urbana. As referências feitas à polícia rural e à polícia das águas atendem mais ao aspecto urbano que à natureza dessas atividades, o que demonstra a importância do fenômeno urbano no início do século XIX, em

233 Citado por F.P.LANGHANS(1937 p. 153), com grifo nosso.

234 F.P.LANGHANS(1937 p. 163) apresenta uma análise detalhada desses atos: o Decreto de 28.01.1833, a Carta

de Lei de 25.04.1835, o Decreto de 18.07.1835, o Decreto de 6.11.1836, e o Decreto de 18.11.1836.

235 De acordo com este Decreto, ao serem elaboradas as compilações das posturas, estas seriam submetidas à

aprovação de instâncias superiores - ao Delegado do Procurador Régio da cabeça do julgado, ao Administrador Geral do Distrito para as submeter à aprovação do Concelho do Distrito – sendo depois devolvidas às Câmaras respectivas. Verificados estes trâmites, as compilações de posturas seriam impressas e publicadas, remetendo-se um exemplar para a Torre do Tombo, outro para o Ministério do Reino e ainda outro para o Administrador Geral do Distrito, procedendo-se em seguida à distribuição dos que fossem necessários pelas autoridades encarregadas de fazer executar as posturas.

face do crescimento populacional e do progresso da ciência, com os benefícios introduzidos pela técnica – a iluminação pública, o trânsito, a canalização e os esgotos, a limpeza urbana, os abastecimentos, etc., que então começavam a ser utilizados nos grandes centros.

Segundo este Código de 1836, as Câmaras poderiam fazer posturas e no exercício de sua competência só encontravam limites na Constituição e nas leis gerais (Art. 82 § 27). Atribuíam, assim, aos municípios uma ampla autonomia, que veio a ser mais restringida pelo Código Administrativo de 1842, que, além de definir melhor a competência das Câmaras sobre posturas, limitou-as, também, aos regulamentos do Governo. No entanto, quanto às atribuições da Câmara que se constituiriam matérias de posturas, o Código de 1842 repete todas as mencionadas no Código anterior e acrescenta uma, referente ao regulamento do prospecto dos edifícios dentro das povoações (Art. 120, Inciso VII).

F.P.LANGHANS (1937) chega a afirmar que a codificação das posturas começou com a

codificação do direito administrativo e que durante toda a vida agitada do Código de 1836, deram-se a

grande revisão e a compilação das posturas, o que fez reviver, por momentos, o espírito cívico municipal, procedendo dentro dos concelhos um verdadeiro interesse à volta dos direitos locais236.

A partir de 1840, comissões encarregadas de prepararem a codificação de vários institutos sucedem-se umas após outras. No largo período que decorre de 1850 a 1867, prepara- se, entre controvérsias de juristas, o Código Civil português. As atribuições conferidas às Câmaras Municipais e as matérias a serem por elas regulamentadas foram objeto dos diversos Códigos Administrativos promulgados no século XIX, nos anos de 1836, 1842, 1868, 1870, 1878, 1886, 1895 e 1896. Com a advento do governo republicano, sucederam-se a Lei n.º 88 de 1913 e o Código Administrativo de 1936, que inicia um novo ciclo na história das instituições locais portuguesas, com maior autonomia das Câmaras Municipais nas suas atribuições de polícia através das posturas.

O período do liberalismo ou da codificação das leis portuguesas estendeu-se, portanto, por um século, terminando com a publicação do Código Administrativo de 1936. Considerando o progresso das instituições jurídicas que lhe são inerentes, este período, segundo F.P.LANGHANS (1937, p. 282) pode ser dividido em três ciclos:

236Os códigos de posturas das cidades portuguesas, elaborados ao longo do século XIX, guardam muito das

características das posturas municipais dos séculos XV a XVIII, inclusive quanto ao seu conteúdo e forma, embora apresente atualizações face à evolução da vida social e econômica. Estes códigos serão tratados em comparação às posturas do Recife do século XIX, no momento de seu detalhamento no capítulo 3.

x O ciclo da adaptação, que vai da reforma de 1832 ao Código Administrativo de 1870 e se caracteriza pelas reformas revolucionárias, em que o político domina o pensamento dos legisladores;

x O ciclo do apogeu, que se inicia com o Código de 1870 e termina com o final da vigência do Código de 1896, quando o aspecto político cede perante o aspecto científico, quando surgem as primeiras tentativas de doutrina portuguesa;

x O ciclo da decadência, que se instala com o novo regime e o aspecto político torna a dominar; perde-se a unidade de disciplina, porque ao invés de um Código, passaram a vigorar fragmentos de várias leis estabelecidas ad hoc.

No âmbito das posturas, as diferenças não foram sensíveis de Código para Código. Todos eles impunham que no exercício das respectivas competências as Câmaras podiam fazer posturas sobre os assuntos enumerados, acabando sempre por estabelecer uma regra genérica. À exceção do Código Administrativo de 1836, os demais Códigos submeteram as posturas à aprovação de uma entidade tutelar, o que conferiu maior ou menor liberdade de empreendimento concedido às Câmaras em função do órgão sancionador. Quanto à sua natureza, a postura condensa-se, especializando-se mais no decurso deste período, sob a pressão da lei geral e o crescente predomínio do direito privado, que o individualismo elevou em detrimento do interesse coletivo.

x A Codificação das Leis do Brasil

Elaborada no contexto do movimento codificador, que marca a passagem do século XVIII-XIX na França, a Constituição Imperial de 1824 estabeleceu as garantias dos direitos políticos e civis dos cidadãos brasileiros (Título VIII) e definiu uma nova ordem jurídica e administrativa, que foi regulamentada, posteriormente, por uma série de leis e códigos.

No âmbito da divisão dos poderes políticos, a Carta Constitucional de 1824 instituiu a separação do exercício das funções de administrar, de legislar e de julgar. Tal disposição repercutiu diretamente nas Câmaras Municipais, que perderam a função judiciária, restando-lhes a administrativa, na qual se inseria a sua atribuição de formar suas posturas municipais (art. 169).

Não bastava elaborar regras de policiamento ao sabor dos episódios. A Constituição criou um Poder Judicial independente, em que Juízes e Jurados teriam lugar no âmbito civil e do crime, naquilo que os “códigos” determinassem (art. 151). Na seqüência de leis que regulamentaram a nova ordem constitucional brasileira, a Lei de 15.10.1827 aboliu as

corporações de ofícios, seus juízes, escrivãos e mestres, passando a jurisdição judicial a cargo do eletivo Juiz de Paz. No âmbito da área criminal, o império instituiu o Código Criminal de 1830237 e o Código de Processo Penal de 1832, que estabeleceram a organização judiciária e

extinguiram os juízes de fora, os ouvidores e a jurisdição criminal das autoridades administrativas. A Lei de 03.12.1841 criou funções de chefe e delegado de polícia que, além das atribuições propriamente policiais, dispunham, também, de poderes judiciais. Por fim, a Lei de 20.09.1871 estabeleceu que as funções judiciais ficassem pertencendo exclusivamente às autoridades judiciárias.

As funções administrativas e legislativas, exercidas pelas instâncias de governo províncias e municipais, foram regulamentadas através da Lei de 1º de Outubro de 1828 e da Lei n. 16 de 12 de Agosto de 1834, complementadas, posteriormente, por outras leis sobre aspectos específicos238. Estas leis pautaram, no império brasileiro, a atuação das Câmaras

Municipais, dos Conselhos Gerais de Província, posteriormente Assembléias Legislativas Provinciais e dos Presidentes de Província.

Ao contrário de Portugal, que promulgou sucessivos Códigos Administrativos, ao longo de todo o século XIX, regulamentando a atuação das Câmaras Municipais e obrigando a codificação de suas posturas, o Brasil não elaborou um Código Administrativo específico, bem como não deixou expressa a obrigatoriedade da codificação das posturas municipais. Em 1850, foi publicado o Código Comercial brasileiro, atendendo às mudanças verificadas na sua economia e na economia mundial. Este Código, não era apenas compilação, mas incorporava o pensamento de juristas brasileiros da época, dentro de padrões e sistemas jurídicos da ciência jurídica. Ainda em 1850, a Lei Imperial n.º 601, denominada Lei das Terras, regulamentava a titularidade das terras, cedidas por sesmarias, e dispunha sobre as terras devolutas, sobre as colônias nacionais e estrangeiras, entre outras disposições.

Estabelecendo um paralelo com o processo codificador português, no século XIX, constata-se, em Portugal, a publicação dos códigos Comercial (1833), Penal (1837),

237 Segundo L. DELGADO (1974 p.160), esse Código Criminal de 1830 teve uma repercussão além das fronteiras

do Brasil, chegando a influir em países europeus. Altera as linhas fundamentais do direito vigente no país. O avanço que se fizera ao longo do tempo de vig6encia das ordenações Filipinas, mantiveram-se dentro das linhas fundamentais até então fixadas, modificando apenas partes ou detalhes. Com a independência política, essas linhas fundamentais se alteram como decorrência de uma diversa concepção do universo e da sociedade.

238 A Lei nº 25 de 19.02.1836, dispõe sobre organização das contas e orçamentos das Câmaras Municipais; a Lei n.º 57 de 18.03.1836 regulamenta a desapropriação por utilidade pública; a Lei nº 142 de 09.03.1840 estabelece a aplicação do rendimento da décima urbana para iluminação das vilas, cadeias e matrizes; a Lei n.º

Administrativos (1836, 1842, 1868, 1870, 1878, 1886, 1895 e 1896) e Civil (1867) e os Códigos de Posturas de diversas cidades. Já no Brasil imperial, a elaboração de códigos específicos fica restrita aos Códigos Penal (1830), de Processos (1832) e Comercial (1850). A vida do país, de seu povo e de suas instituições foi sendo regulamentada por uma sucessão de leis, que atualizavam, revogavam ou complementavam o que estava disposto. E um grande número das cidades do país reuniram suas posturas em códigos, cumprindo a determinação constitucional. A ausência de um Código Civil brasileiro, só promulgado em 1917, levou a que a legislação portuguesa coordenada e atualizada em sucessivas edições das Ordenações Filipinas, permanecesse em vigor, como legislação ordenadora das povoações brasileiras, em paralelo às posturas municipais. A atualização desse corpo de leis e sua aplicação às novas condições nacionais, exigiram interpretação jurisprudencial que adaptasse aquelas normas antigas aos problemas atuais das vilas e cidades do país, realizada por alguns jurisconsultos brasileiros239.

Diante desse quadro, C.PRADO JR. (1985, p.191), ainda, considera que as realizações

mais brilhantes do Império foram em matéria de legislação.

“Encontramo-nos no segundo reinado já com um código criminal e de processo penal que tinha renovado inteiramente o passado.

O segundo reinado nos dará um magnífico código de processo civil que durará até poucos anos. O código comercial, promulgado em 1850, veio, embora modificado em parte, até hoje, e ainda se encontra, em seus traços essenciais, em vigor. A legislação civil teve uma elaboração mais lenta: somente a República conseguiu codifica-la, e durante o Império mantiveram-se em vigor as velhas ordenações do reino de Portugal que datavam de princípios do século XVII. Houve, contudo, paralelamente às obsoletas ordenações, um trabalho legislativo e de juristas considerável; pode-se dizer que o Império, embora sem codifica-la, chegara no seu termo a elaborar uma nova legislação civil. A República não terá mais que reuni-la em código.”

2.4 A CÂMARA MUNICIPAL NA CONSTITUIÇÃO DO IMPÉRIO

No documento Posturas do Recife Imperial (páginas 120-126)

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